Por Lina Maria Brandão de Aras e Rafael Sancho Carvalho da Silva
A guerra de Canudos foi um episódio marcante na história dos sertões brasileiros. A voracidade do exército brasileiro diante de uma comunidade sertaneja e a capacidade de resistência desta ainda hoje é lembrada. A guerra de Canudos não foi um episódio cujas ações e memórias ficaram restritas à microrregião do que Wálney da Costa Oliveira (2000) definiu como sertão de Canudos.
Em outro sertão, mais precisamente o do rio São Francisco, as lembranças da guerra podem ser observadas. No romance Porto Calendário, de Osório Alves de Castro (2017), a preocupação com o que aconteceria com a virada do século XIX para o século XX em Santa Maria da Vitória (situada nas margens do rio Corrente, a cerca de 1.000 km de Canudos) revelava memórias de situações tensas para a população como as epidemias e o recrutamento para lutar na guerra de Canudos.
O recrutamento de combatentes para as forças armadas brasileiras lutarem em Canudos colocava sertanejos pobres contra outros tantos numa guerra atiçada por coronéis e por parte da Igreja Católica. O conflito em Canudos contou com vários elementos políticos, sociais e culturais nos quais o Estado brasileiro e suas elites buscavam exercer o controle do regime republicano instalado em 1889.
A separação entre Estado e Igreja não foi bem aceita por parte dos seguidores de Antonio Conselheiro e condenada por este, que apontava o novo regime como seguidor da “Lei do cão”, numa alusão à demonização da laicização feita pela República brasileira (GUERRA, 2000). Além disso, agentes vinculados com a Igreja Católica colaboraram com a perseguição a Antonio Conselheiro, numa tentativa de coibir lideranças religiosas católicas fora da estrutura institucional da Igreja. Nesse sentido, tratava-se da tentativa da regulação da fé sob os ditames institucionais, que deveriam ser regulados por padres, bispos e missionários.
A formação do arraial de Bello Monte (como os conselheiristas identificavam o arraial de Canudos) envolvia um quadro de sérias dificuldades econômicas impostas por fenômenos naturais, como a seca, pelas estruturas fundiárias, que concentravam as terras nas mãos de poderosos locais, e pelas relações políticas, moldadas pelo mandonismo nos sertões. Segundo Manoel Neto (1996), a conjuntura política baiana contava com uma tensa disputa de força política em cada pedaço do Estado por grupos ligados ao então governador Luiz Vianna e pelo ex-governador Rodrigues Lima.
Tais fatores, somados com uma cidadania incompleta, agravou as tensões no sertão baiano. A limitação da cidadania era outro fator, conforme demonstrado por Wálney Oliveira (2000), que ficava latente na nascente República, uma vez que a carta constitucional de 1891 garantia a participação política apenas aos homens alfabetizados, deixando a maioria da população, analfabeta, com uma cidadania reduzida aos direitos civis.
A população, que vivia as dificuldades dos rigores climáticos e fiscais e das diversas formas de expropriação da cidadania, seguiu um líder religioso que condenava uma estrutura de Estado a partir do conservador prisma religioso. A repressão não tardou a chegar e, de acordo com Wálney Oliveira, serviu para o exército, que fora um dos principais agentes no golpe que resultou a Proclamação da República, realizar uma demonstração de força perante parte da população brasileira. Ainda de acordo com Wálney Oliveira, a presença militar no sertão baiano servia como propaganda do novo regime e, consequentemente, da intolerância a qualquer manifestação contrária ao status quo dos grupos hegemônicos no Brasil do final do século XIX (OLIVEIRA, 2000).
A formação de uma comunidade ao redor de Conselheiro e no meio do sonho de um modo de vida no qual as dificuldades e opressões praticadas por grandes mandões proprietários de terras seriam amenizadas numa estrutura condizente com a que os habitantes do Arraial de Bello Monte estariam construindo.
A guerra de Canudos representou o choque de percepções de mundo e a imposição de um modelo de Estado construído sem a participação da população em geral — desde a Independência. Defender o arraial não tinha o mesmo significado que defender o país numa guerra distante, mas representava a luta por um modo de vida mais viável do que aquele imposto pelo Estado brasileiro desde a Independência e repaginado com a Proclamação da República.
Muitos sertanejos refugiados de Bello Monte migraram para os vários sertões brasileiros. Entre os destinos está o sertão do rio São Francisco e, mais precisamente, o que é conhecido atualmente como Oeste da Bahia. As memórias de geraizeiros do Alto Rio Preto, em Formosa, e na fronteira da Bahia com o Piauí e Tocantins, conta com alguns desses descendentes enfrentando uma nova guerra, desta vez contra a grilagem e a ocupação do agronegócio, em suas diversas vertentes, no Oeste da Bahia.
O curta produzido pela 10envolvimento (2017) chamado “Gerações Geraizeiras” mostra uma parte desse conflito contemporâneo e evidencia uma parte da memória comunitária imbricada com a Guerra de Canudos; um dos depoentes afirma que seus antepassados se fixaram na região após a fuga do conflito em Bello Monte. 125 anos após a última trincheira ser bombardeada, os descendentes de conselheiristas continuam lutando contra as diversas formas de opressão de uma sociedade construída a partir de um modelo excludente e explorador da classe trabalhadora e camponesa.
Referências
10ENVOLVIMENTO. Gerações Geraizeiras. 27’50“. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gKXH06e3mEI . Acesso em 31 mar. 2022.
CASTRO, Osório Alves de. Porto Calendário. 4ª edição. Salvador: Assembleia Legislativa, 2017.
GUERRA, Sérgio Armando Diniz. Universos em confronto: Canudos x Bello Monte. Salvador: UNEB, 2000.
NETO, Manoel. De Juazeiro à ladeira da Barra: a inusitada trajetória da expedição Pires Ferreira. Revista Canudos. Salvador, UNEB, v. 01, n. 01, p. 55 – 63, jul/dez 1996. (Disponível para baixar em PDF clicando aqui.)
OLIVEIRA, Wálney da Costa. “Sertão virado do avesso”: a República na região de Canudos. Dissertação (mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000. (Disponível, na íntegra, clicando aqui.)
Sobre os autores:
Lina Maria Brandão de Aras é professora titular do Departamento de História, da Universidade Federal da Bahia.
Rafael Sancho Carvalho da Silva é professor de História do Brasil e da Bahia, da Universidade Federal do Oeste da Bahia.
As xilogravuras que ilustram este artigo pertencem a Adir Botelho.