Por Arthur Moura
Leia AQUI a quarta parte do artigo.
O cinema é uma arma política. Disso é bom que ninguém tenha dúvidas. Pensemos, por exemplo, a série O Mecanismo dirigida por Padilha. Para aqueles que acreditam que cinema é mero entretenimento está de ingenuidade no jogo do poder. O cinema não é neutro, como nenhuma arte ou ciência pode ser. Ele serve, de um modo geral, a um determinado fim, qual seja, os objetivos centrais da classe dominante. Nesse sentido, o cinema reforça o status quo. Por outro lado ele pode ser uma ferramenta que resista ao que está estabelecido e por isso luta para desestabilizar a ordem ao passo que defende um projeto revolucionário não dissimulando os antagonismos, motor da luta de classes. O que envolve a indústria na sua quase totalidade serve para reforçar o que está estabelecido, ainda que pareça carregar certo teor crítico. O cinema industrial também tem sua cara progressista, mas o pior é quando a direita propriamente dita se apropria dessa ferramenta invertendo as pautas na defesa de uma sociedade fascista. Neste caso, a série “O Mecanismo” fala de tudo, menos do tal mecanismo, muito menos sua superação. O mecanismo é como se fosse um espantalho, um simulacro. O que está por trás é o mais relevante. É como se fosse um romance da sociedade burguesa que se recupera apesar das fissuras causadas por evidentes disputas. Aponta para determinados elementos já demasiadamente explorados pela mídia burguesa, políticos e intelectuais progressistas como principalmente a crença no equilíbrio e justiça da república. “Aqui, todos somos iguais”, diz um personagem do Ministério Público. Não é bem assim, sabemos. Toda a trama envolvente com uma narrativa cheia de aventuras e momentos de tensão não se desenvolve na suposta defesa da república, mas do capital, este sim o dono do jogo e deve ser defendido custe o que custar. A Polícia Federal aparece como o suprassumo da justiça, incansável, guerreira. Chega a dar pena do personagem de Selton Melo, que ganha pouco, trabalhou anos e só comprou um sítio e um carro velho com o salário de policial federal. É injustamente afastado, mas continua a sua saga pela busca da verdade, ainda que no fundo saiba que está em desvantagem, pois é neutralizado por forças mais agressivas; num devaneio na garagem com sua esposa descobriu que o mecanismo é o funcionamento de toda a máquina e que ele é infinito, como uma espiral que anestesia a sua filha que por vezes entra em colapso. Esse mecanismo envolve tudo, desde o Seu João ao empresário mais poderoso. E ele luta contra isso. A última cena, no bingo clandestino mostra que sua determinação o persegue, deixando a coisa em aberto.
Ora, fora a parte todo o espetáculo banal da narrativa batida do cinema comercial, numa sociedade altamente estratificada onde uma ínfima parcela concentra boa parte das riquezas, e se tem o monopólio dos meios de produção, há de se admitir que sem corrupção nada disso funciona e a Polícia Federal (assim como todo o conjunto das forças repressivas e da burocracia estatal) faz parte desse mecanismo funcionando como um amortecedor que regula os excessos não deixando o leite derramar evitando o colapso. A corrupção na sociedade capitalista é o modo pelo qual as coisas funcionam, sobretudo quando se envolve o poder econômico. Todo o tratamento cuidadoso quase afetivo com os “corruptos” mostra uma particularidade dessa força que é onde e como atua. Ela é muito diferente, por exemplo, da polícia militar, que não trata os seus inimigos por senhor ou entra na casa com mandado, bota algema e produz todo aquele espetáculo como se fosse possível acreditar naquilo. Numa leitura direta, não há nada mais corrupto que o conjunto das forças repressivas, que defendem de forma intransigente os interesses do capital e seus pressupostos como a propriedade privada e os privilégios da classe dominante. Essa justiça do alto escalão não se reflete nas lutas populares, pois onde há polícia há repressão. Ali há negociações. Ou seja, está fora de questão resolver o problema porque ele não pode ser resolvido nos moldes da justiça burguesa tampouco dos acordos internos.
Esse tipo de cinema que ludibria produzindo heróis é um marco na produção cinematográfica brasileira e é reforçado por grandes estrelas, o que ajuda a convencer a população. A sua forma estética e narrativa também parece ser um modelo que deu certo e contribui para isso. O herói é o Estado. É nele que, em última instância, mora as esperanças de a justiça ser estabelecida. No entanto, o Estado não tem como função social defender a justiça senão os interesses da burguesia ao passo que contém as revoltas sociais na base da repressão e silenciamento dos trabalhadores organizados ou não. A corrupção não ameaça a integridade do Estado. Na sua ausência haveria uma grande inoperância das suas principais funções. Mais do que apontar críticas evidentes para qualquer olhar atento, é preciso pensar um cinema comprometido com pautas absolutamente outras. Em primeiro lugar, o cinema deve educar e não o contrário. Só assim ele contribui para o avanço das lutas populares que é onde realmente mora a justiça. A justiça não mora na burocracia estatal nem na cabeça de nenhum agente da lei. A justiça é resultado do enfrentamento inevitável entre a classe trabalhadora e a burguesia, sendo os trabalhadores os únicos capazes de fato acertar as contas contra quem manda no jogo. Nesse caso não há necessidade de delação, pois desde muito já se conhece as práticas do inimigo. Este cinema que aí está com larga difusão não deve ser visto com nenhum espanto pelas suas escolhas políticas. Ele está apenas fazendo a sua função. Ele é o cinema da ordem.
Há filmes, no entanto, que buscam denunciar as contradições da sociedade burguesa. O Homem do Ano, filme de José Henrique Fonseca, é uma adaptação para o cinema do livro de Patrícia Melo, O Matador. Máiquel, personagem principal interpretado por Murilo Benício, representa como síntese os valores da sociedade capitalista burguesa, seus conflitos, ambições e contradições. Ele representa a ideia de justiça defendida por conservadores e fascistas. É, pois, um filme elucidativo sobre os dias atuais. A sociedade burguesa está levando todos a uma completa loucura no pior sentido do termo. A vida é valorada de acordo com o poder. Ou seja, a vida não é nada. Matar ou morrer faz parte do próprio funcionamento da máquina societária burguesa. A vida é uma mercadoria. Ela chegou ao seu pior patamar desde tempos remotos. É impossível não chocar-se com a cena do assassinato de Cledir. Impossível não se revoltar com a ascensão social de Maiquel que se tornou o homem do ano por serviços prestados a empresários e demais homens bons basicamente eliminando a vida matável. A polícia, bom lembrar, sempre presente em tais esquemas. Maiquel se tornou popular e aceito pela sociedade, reconhecido pelo seu feito, passa pela rua e faz gesto de arma e crianças reproduzem. Alguma previsão? Não se pensarmos a política do medo como elemento sempre presente no neoliberalismo. O reconhecimento de Máiquel se deu após um brutal assassinato por motivo absolutamente banal. Ele matou aquele que podia e deveria ser matado. A consumação se dá pela aprovação direta da polícia. Sua vida a partir disso passou a fazer sentido ainda que cada vez mais entrando de cabeça numa decadência profunda. O discurso do dentista e dos outros figurões que contratam os serviços de Maiquel é o senso comum violento reproduzido infinitamente de forma automática por conservadores que defendem os bons costumes, mas que estão afundados na contradição social. O dentista e seus amigos empresários ali na sala bebendo whisky, por exemplo, seriam hoje tranquilamente eleitores e defensores de Bolsonaro. “Porque eles não são humanos os sequestradores, os estupradores…”. Mas seria o Estado dotado de qualquer humanismo? Seria a burguesia a classe capaz de eliminar as contradições de classe? Ou a classe média seria responsável por algum tipo de mudança? Obviamente que nenhuma dessas opções, pois estas são as que alimentam e garantem as contradições de classe. Se os bandidos não são dotados de humanidade, a burguesia e as forças armadas são completamente destituídas de tal qualidade. “Nós temos medo!”, diz o dentista. Mas este medo é mistificado a partir do espetáculo midiático e principalmente na forma como age a justiça burguesa. O filme também mostra a construção do medo e alienação gerada pela religião na figura do pastor que aliciou a mente vazia de Érica que num momento de completa cegueira compara-se com Jesus Cristo. Maiquel por mais que goze de reconhecimento não consegue explicar porque agiu assim matando Suel. Mas agora que aprendeu a odiar, parece ter tomado gosto e é contratado pelo dentista para se vingar de um possível estuprador. O seu vazio parece ter sido preenchido pela nova figura que se tornou: um justiceiro. A partir daí, matar torna-se o seu ofício.
O vazio da sociedade e suas contradições também foi bem retratado por Win Wenders em seu clássico filme Paris, Texas. Poucos filmes nos causam tantos efeitos colaterais. É claro que cada filme toca a pessoa de uma forma, dependendo de uma série de questões como o capital cultural ou simplesmente a sensibilidade de cada um. Cada um decodifica as imagens e informações de uma forma e a partir do seu lugar. Por isso os bons filmes precisam ser vistos sempre que possível, revisitados e reinterpretados. Dependendo da época que se vê há coisas mais evidentes que outras, coisas que marcam e outras que passam batido. E o que nos diz Paris, Texas? A metáfora do deserto, já explícito no início do filme é um caminho para se começar a pensar o universo dos personagens que se desvendam ao longo da narrativa. O deserto simboliza não só essa vastidão onde os pontos cardeais são invisíveis e qualquer direção é válida. Ele representa o próprio universo de Travis Clay Henderson. É um universo sem idiomas e sem ruas. Sua memória é um deserto e precisa ser preenchida ou repreenchida. Travis apenas anda pelo deserto e no limite da sua sede após frustrar-se com a ausência de água numa torneira encontrada em alguma propriedade, entra num estabelecimento e abocanha algumas pedras de gelo e simplesmente desmaia. O primeiro encontro com seu irmão, Walt, é marcante. Travis simplesmente passa sem reconhecê-lo. Está um maltrapilho. Nenhum laço parece ter restado. Walt precisa lembrar que é seu irmão. Insisti para que entre no carro. Walt é um publicitário que mora em Los Angeles com sua esposa Anne e o filho, o pequeno Hunter de sete anos que na verdade é filho biológico de Travis e Jane, que também sumiu deixando apenas uma pista que será decisiva para um possível reencontro. Eles não se vêem a quatro anos. Pode parecer pouco, mas não para uma criança. O que houve afinal? Por que Travis sumiu e caminha indiscriminadamente pelo deserto? Qual a natureza do seu vazio? Ao reencontrar novamente o irmão dessa vez na linha do trem, Walt pergunta: “importa-se de dizer para onde vai? O que há lá?” Nada se vê além de uma paisagem infinita. Não há nada lá, diz Walt. Ao olhar-se no espelho novamente, Travis vê uma nova imagem mais confortante do que a que viu no chalé. Há uma tristeza profunda e inexplicável em Travis. O silêncio ensurdecedor do irmão deixa Walt inconsolável, até que Travis pronuncia a primeira palavra aparentemente sem sentido: “Paris”. A relação com o tempo e espaço, com as coisas e as pessoas e consigo mesmo ganhou outras proporções em Travis. Tudo parece estranho, desconfigurado, embaralhado. Ele rejeita sair do chão entrando em pânico numa simples viagem de avião. Quer o mesmo carro que antes para viajar à “L.A”., mesmo que aparentemente todos sejam iguais. Na verdade não são iguais. Cada um possui uma história e não importa se a viagem vai durar muito mais tempo. A viagem à Los Angeles também é uma parte muito bonita do filme de Wenders. Walt é um homem muito sensível e ajuda o irmão a investigar a natureza da sua ausência, aproveitando-se do reestabelecimento da fala e do diálogo. É como se Travis aos poucos estivesse retornando ao mundo dos vivos buscando desde as entranhas a sua origem, sua gênese. Mas ao mesmo tempo em que comemora, Walt sabe bem da condição do irmão e desconfia quando este pede para dirigir o carro para que Walt possa descansar. Inevitavelmente o caminho escolhido por Travis foi qualquer outro menos a rota programada. Paris, Texas é um filme sobre perdas, descaminhos, reencontros, tempo e vida. A forma como Hunter se aproxima novamente de Travis é a partir da memória através das imagens de Super 8 ou fotografias antigas. As imagens revelam novos sorrisos, mas também trazem dor. A dor de perder Jane parece ser grande em Travis. Mas aquilo que Travis viu sendo projetado, como muito bem coloca Hunter, agora é apenas uma imagem congelada que diz respeito a um tempo distante. O devir permanente da realidade parece ter modificado muitas coisas, mesmo que num curto tempo de quatro anos. Travis resgata, mesmo que temporariamente (pois não sabemos o desfecho final da sua vida), a racionalidade e até mesmo a dignidade na busca por não deixar Hunter cair no mesmo abismo do vazio existencial. A viagem em busca de Jane é outro ponto alto do filme, pois transforma-se numa verdadeira aventura. E é então que vem o ápice do filme, uma das cenas mais fortes do cinema, na minha avaliação. Recontar uma trágica história a partir de um difícil reencontro, num local onde os dois não se tocam e Travis fala ao telefone virado de costas contando a história dos dois a partir de um relato entre supostos dois desconhecidos. Travis amava tanto aquela mulher que não suportava um segundo de ausência. O fato de o trabalho tirar tempo de vida conjunta o perturbava. Os pontos se ligam para Jane quando o cenário do relato se revela: “o trailer”. É a primeira vez que a câmera entra no ambiente de Jane, mas ela não vê nada além da sua própria imagem. As coisas não voltam ao que era antes. Mas nem por isso a memória deve ser apagada. No filme, Wenders resgata a memória como elemento de emancipação, ainda que em contradições evidentes ou condições precárias para esta realização. Por isso, não existe lugar para nostalgia. Talvez Travis via algo além de um horizonte infinito e aparentemente vazio no deserto. Talvez a ausência dos pontos cardeais fosse o mais irrelevante. A sua busca continua ainda que com difíceis perdas, não se sabe ao exato para onde, mas os rastros que deixou foram suficientes para não ampliar o desastre para além de um momento.
Pensemos agora o cinema dito de esquerda que vem ganhando certo destaque e não deixa de ter papel importante na disputa por consciências. Dentro deste amplo espectro da esquerda existe o cinema progressista que adota uma compreensão dos fatos longe dos antagonismos de classe denunciando mais os rompimentos democráticos da ordem burocrática e há o cinema independente que tem suas várias particularidades e que na maioria das vezes busca um rompimento com a desgastada narrativa reformista. O cinema reformista retrata o estado atual de coisas envergando-se para os limites do próprio capital, não tratando da natureza da contradição entre capital e trabalho, das lutas de classes a partir de uma leitura histórico-dialética e da organização dos trabalhadores limitando-se a denunciar o autoritarismo da direita como um retrocesso numa democracia conquistada a duras lutas o que acaba por funcionar como um marketing ancorado no espetáculo. De fato as lutas foram acirradas e a perseguição deu fim a muitas vidas dedicadas a lutar por um mundo mais justo. No entanto, essa democracia continua fielmente comprometida com os mesmos historicamente, qual seja, os interesses da burguesia. Os destinos dessa democracia não têm qualquer relação com as necessidades dos trabalhadores, mas sim com os interesses e necessidades da burguesia e suas classes auxiliares, a burocracia, a justiça, a repressão, etc. Pensemos, por exemplo, algumas obras como Democracia em Vertigem, Excelentíssimos, O Processo e No Intenso Agora. A maioria desses filmes se coaduna com uma perspectiva político partidária com partidos como o PT adotando o discurso da democracia representativa, da cidadania e dos direitos fundamentais. É o caso do novo filme de Petra Costa, por exemplo, que traz uma narrativa melancólica com grave sentimento de perda, mas que ainda assim mantém uma esperança frente aos desafios. Petra vem sendo construída como uma cineasta revelação. Produziu Elena, filme que retrata uma experiência trágica familiar, de forma poética e esteticamente muito bonito. Isso quer dizer que a esquerda está construindo seus ícones e o critério é a repercussão que determinada obra ou cineasta oferece o que viabiliza financiamento e distribuição das produções. Democracia em Vertigem é notadamente marcado por uma leitura quiçá ingênua sobre o funcionamento da política, da função da economia, da burocracia e estrutura jurídica do Estado burguês e tem como defesa de projeto de sociedade um governo reformista como uma linhagem atual da social-democracia o que não compromete as bases do capitalismo dando-lhe sobrevida. É relativamente fácil produzir uma análise crítica contundente ao filme de Petra, mas não deve ser somente este o objetivo de quem busca construir um cinema verdadeiramente crítico ou se quiser revolucionário. Para resumir a ópera, numa democracia burguesa é impossível a horizontalidade e a participação popular a não ser pela imposição das massas. Lula e Dilma foram chefes de Estado igualmente comprometidos com o capital; nem de longe buscaram qualquer rompimento com a ordem burguesa até porque essa nunca foi sua função. O governo do PT ao passo que promoveu uma determinada distribuição de recursos ainda que limitada também reprimiu de forma firme os movimentos populares, as greves e ocupações. Em Excelentíssimos de Douglas Duarte em nenhuma fala de Lula ou Dilma está presente os termos “burguesia”, “classe social”, “contradição”, muito menos “comunismo” ou “socialismo”. “Democracia” é um termo genérico que nada explica se não pensarmos o contexto sócio-histórico. A burguesia domina por meio da sua força econômica que é garantida pelos Estados modernos de caráter predominantemente capitalista. Por isso Estado e capital estão embrenhados e são interdependentes. Os golpes por sua vez se dão para garantir a manutenção histórica dos Estados. A democracia, portanto, é burguesa; opera por meio da representatividade excluindo a participação popular a não ser em períodos eleitorais que na verdade é uma participação forçada e meramente simbólica. Isso quer dizer que não se espera nenhum tipo de avanço substancial da sociedade além de reformas que ainda assim manterá os trabalhadores sob domínio total, escravos da produção de mercadorias. Neste sentido, o filme de Petra Costa na verdade denuncia a completa negação da crítica estando em vertigem nada mais que o cinema como ferramenta política contra o status quo. É um cinema-propaganda nostálgico que pergunta “O que você sentiu” ao invés de “O que pensa sobre este assunto?” A voz lamuriosa em off lamenta algo que supostamente se perdeu ou que poderia avançar para estágios mais avançados não fosse a direita vil atrapalhar o processo. Ainda que não ofereça perigo à ordem burguesa, obviamente há um valor histórico nessa obra, mas não é somente para isso que devemos voltar nossa atenção e sim para a intenção ou proposta central do filme. Para onde ele aponta? Que interesse tem? Lamentar a morte da democracia num país onde nunca em sua história houve qualquer resquício de democracia real é na verdade uma falsificação da realidade. Tudo isso nem é novidade. Apesar de termos de lutar contra as forças reacionárias isso não quer dizer que devemos afirmar o projeto de sociedade reformista de “esquerda”. Essa esquerda lembrada em tom choroso não diferencia-se da direita quando o assunto é manter a estrutura intocável. Enfim, o filme aponta (do ponto de vista político) para um mais do mesmo. Essas são reflexões que vão aparecendo quando analisamos este documentário. Mas outra questão nos parece igualmente importante: que cinema se quer construir em alternativa à crítica arrefecida deste cinema progressista? Que relações são necessárias para se criar condições à produção de um cinema que pense a história de forma comprometida com a emancipação humana e a revolução social? Nada no cinema progressista deve nos espantar. No entanto, há um outro cinema que deve surgir sob outras bases e que não se resumirá somente em criticar o modelo existente.
No Intenso Agora, novo filme de João Moreira Salles, tem uma abordagem sociológica mais avançada; já nos primeiros frames o diretor descreve o central da contradição social num vídeo familiar em que a empregada sai de cena dando protagonismo a quem deve ser protagonista:
“A câmera pensa que está registrando apenas os primeiros passos de uma criança. Sem querer, mostra também as relações de classe no país. Quando a menina avança, a babá recua. Ela não faz parte do quadro familiar e muito provavelmente sem que ninguém peça vai ocupar o fundo da cena onde se confunde com os passantes. Nem sempre a gente sabe o que está filmando.”
No intenso agora trata do Maio de 68 na França, da Revolução Cultural maoísta na China e da ditadura no Brasil.
“Maio em Paris, do acervo de gestos de 68 esse é o mais marcante. O corpo vergado para trás, o braço em estilingue, a energia represada a um segundo da descarga, o giro de atleta olímpico e quase sempre o recuo.”
Resgatando imagens amadoras que sua mãe fez em viagem à China na década de 60, o diretor contextualiza as imagens do momento histórico de lutas populares como o colapso da sociedade francesa do final da década de 60 que começou com intensa luta estudantil alastrando-se para o restante da sociedade. Salles, a partir de olhar crítico, coloca-se também como parte da contradição. É um cinema que analisa com criticidade mostrando os confrontos sociais sem mistificá-los, pois todos os processos analisados envolveram organização popular e a defesa de um projeto de sociedade emancipador ainda que tenha reproduzido contradições no interior dos seus processos.
Econômica e politicamente caminhamos a passos largos para um modelo de sociedade cada vez mais repressora, ultra-liberal e absolutamente selvagem (movimento necessário à recuperação da dinâmica predatória do capital) radicalmente contra qualquer projeto de esquerda (progressista ou revolucionário) com forte viés fascista o que resulta em intenso acirramento das lutas de classes colocando os trabalhadores frente a seu maior desafio. O aumento da repressão é uma demonstração de força e poder do Estado e do capital com o objetivo claro em evitar qualquer dissenso sob forte ameaça das oposições. A repressão estatal de uma forma geral vem cometendo todo tipo de atrocidades na defesa dos interesses econômicos do capital colocando-se como fiel capataz da burguesia, como em toda sua história se propôs a ser. O capitalismo está apenas assumindo sua face mais crua sem muitos floreios. Neste sentido a escolha por Bolsonaro não foi acidental. Não fossem as articulações que resultou em notório golpe de Estado institucional-jurídico-midiático seu mandato não teria êxito. O golpe de Estado de 2016 é analisado em detalhe no filme de Douglas Duarte e também n´O Processo de Maria Augusta Ramos que mostra perfeitamente bem que Bolsonaro é um golpista descarado, neofascista que não esconde suas intenções; mas ainda assim é necessário, visto os desafios do capital que optou por um governo mais radical na garantia das reformas e cortes de todas as ordens sem comprometer os lucros patronais deixando o ônus aos mais pobres convencendo estes com falsos argumentos reproduzidos por figuras compradas como apresentadores de TV, modelos e outras figuras de certo prestígio na sociedade. As articulações fizeram inclusive com que a esquerda parlamentar burguesa permitisse o golpe sem qualquer alteração dos ânimos em troca de continuar gozando dos benefícios da vida democrático institucional acreditando em sua regeneração. Foi a forma que encontrou de não ser totalmente expulsa do jogo. Mas será, aos poucos. Enquanto isso os trabalhadores são duplamente massacrados. De um lado pela burguesia e seus aparatos e de outro pela neutralização de partidos políticos de esquerda, sindicatos e demais burocracias. Isso fez com que o discurso contra o fascismo eclodisse com força como um berro agora na garganta dos partidos de esquerda, das Universidades e sindicatos que também praticam seus autoritarismos contra os trabalhadores historicamente inclusive impedindo sua auto-organização.
Por mais que tenhamos que reconhecer que a repressão assola professores universitários, sindicalistas e parlamentares, não podemos esquecer que estes mesmos setores são absolutamente contrários a qualquer movimento radical contra o capital e que sua função institucional é regular as contradições de classe não deixando o leite derramar. Em Utopia e Cidade, um dos filmes que produzi, por exemplo, é possível ver a reação conservadora de professores da UFF contra piquetes e ocupação do campus pelo movimento estudantil em período de greve. Aqui na prática percebemos que o progressismo/reformismo é nada mais que uma ala do conservadorismo. Os mesmos professores que são contra piquetes e greves mostram-se fraternos com figuras como Manuel Rolph Cabeceiras, professor ultra-conservador do departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) que convidou e articulou com Sara Winter eventos no interior da universidade com a finalidade de disseminar o neofascismo. Como todos sabemos Sara Winter é uma figura abjeta coadunada com todo tipo de ódio contra esquerda. Ela se diz anti-feminista. É como uma reprodução jovem da atual ministra de Bolsonaro que afirma todo tipo de sandice. O discurso da esquerda contra o fascismo, no entanto, não se conciliou com a prática principalmente no que diz respeito ao combate ao fascismo que tanto se denuncia. É muito mais um discurso sem lastro na prática que busca negociar e dialogar com o poder ou promover manifestações de indignação contra o estado atual de coisas, mas sem comprometer as “opiniões” contrárias, respeitando a democracia como o bem mais precioso do mundo mesmo que a força contrária queira aniquilar o adversário. É aí que devemos pensar: a esquerda reformista é realmente contra o fascismo e demais formas autoritárias de poder? A resposta é obviamente não! Que formas de lutas este setor vem empreendendo no sentido de combater este fascismo? Na verdade o reformismo é a cama onde deita o fascismo. Jean Barrot faz importante crítica contra este antifascismo calcado na democracia burguesa incapaz de rompimento radical contra o capitalismo e a ordem burguesa.
Numa época de inflação verbal, “fascismo” é apenas uma palavra-chave usada pelos esquerdistas para ostentar radicalismo. Seu uso indica, além de confusão mental, uma importante concessão teórica ao Estado e ao Capital. A essência do antifascismo consiste em lutar contra o fascismo apoiando a democracia. Em resumo, o antifascista não luta contra o capitalismo, mas para impedi-lo de assumir uma forma totalitária. Ao identificar o socialismo com a democracia total, e o capitalismo com o crescimento do fascismo, os antifascistas abandonam a contraposição proletariado/capital, comunismo/trabalho assalariado, proletariado/Estado em favor da oposição democracia/fascismo, que apresentam como a quintessência da perspectiva revolucionária. (Fascismo e antifascismo – Jean Barrot)
O desafio colocado para o cinema neste momento não é simples. É necessário haver um estímulo à produção dando condições materiais para que isso ocorra. Nesse sentido, a esquerda de uma forma geral tem que pensar formas de financiamento e distribuição. Superar uma série de contradições colocadas obviamente não depende exclusivamente do cinema, mas sua importância para o momento político é central, pois é eficiente arma de comunicação e que a partir disso torna-se força importante na mudança das mentalidades na busca por um caminho emancipatório que envolverá lutas árduas. A esquerda de uma forma geral ainda não pensa o cinema como arma política. Por outro lado poucos são os produtores que se associam de forma a potencializar as produções. Isto ainda ocorre por falta de organização. Qual a importância da comunicação num processo social antagônico ao capitalismo? É possível pensar e efetivar uma integração da comunicação por hora existente (me refiro aqui à comunicação de esquerda que se fragmenta aos montes)? Qual é o papel da comunicação nos processos das lutas sociais? Sob quais aspectos gerais políticos e estruturais se dá o processo de consolidação de uma unidade? Pensemos que a unidade faz parte de um longo processo que não está apartado da formação contínua de uma comunicação verdadeiramente autônoma que expresse as necessidades concretas do operariado e dos diversos setores precarizados, enfim, daqueles que produzem riqueza.
A unidade não se dá sem a luta contínua e crítica no interior da própria esquerda. É mera ilusão crer numa integração automática entre mídias e produtores que defendem projetos de sociedade antagônicos. Isso nos coloca diante de um importante debate histórico e teórico sobre os diversos caracteres da esquerda brasileira e daquilo que defendem. Se estes setores historicamente divergem e se antagonizam nas lutas pela direção do movimento operário, sindicatos e outras organizações é natural que o processo na comunicação não seja diferente. Mesmo que em alguns pontos essa comunicação dialogue e produza muitas vezes leituras aproximadas sobre determinadas contradições, as estratégias e defesa de um programa podem não só divergir, mas distanciar-se abissalmente. Todas as questões colocadas com diversos pontos de interrogação acima dependem (para uma leitura e ação propositiva correta) não só do enfrentamento contra o inimigo comum, mas principalmente da auto-organização da classe trabalhadora em estruturas montadas para manutenção de um poder amplo e popular distante dos oligopólios e corporações que desestimulam as lutas criminalizando-as antes mesmo que qualquer ação jurídica e policial. A comunicação revolucionária nasce concomitante ao processo revolucionário. Isso não quer dizer que antes disso não haja saída. A comunicação integrada pré-revolucionária que surge antes da etapa decisiva das lutas entre trabalhadores e capitalistas, faz parte do ascenso das lutas sociais que fomentará sobretudo a formação e organização dos trabalhadores. Por isso, essa comunicação é imprescindível a todo o processo revolucionário evitando deixar a organização se engessar nas estruturas patronais, sindicais e partidárias. Os sindicatos são estruturas formais, mas que ainda assim guardam algum tipo de disposição ou disputa no seu interior favorecendo sua mudança radical de orientação, diferente dos partidos que desde sua gênese se comportam como forças contrárias à emancipação da classe que afirma defender.
As imagens que ilustram este artigo são do filme “O Bandido da Luz Vermelha” (1968).