Cibernéticas Proletárias

Por Grevo de Vergere

 

§0. A Cibernética como perigo de extinção, apenas?

Não há notícias de que o ano de dois mil e dezenove tenha presenciado uma rebelião de seres conhecidos como “replicantes”, uma espécie de androide, que eram utilizados para trabalhos forçados e uma “colonização” extraterrenas. Não há notícias de que esses seres, meio humanos, meio máquinas, tenham buscado seu criador para prolongar seus tempos de vida em um mundo quase apocalítico. Tampouco há notícias de que esses seres tenham desenvolvido capacidades emocionais, afetivas, sentimentais para se imaginarem humanos… Ridley Scott, então, esteve sempre equivocado em seu Blade Runner ao prognosticar essa revolta de seres quase humanos… em 2019 outras revoltas aconteciam, mas não essa…

Em 2023 ainda não é possível dizer que as máquinas tenham sido tornadas humanas, ainda que há muito tempo o ser humano tenha se tornado apêndice de máquinas. Ainda assim, o chamado Vale do Silício na Califórnia estadunidense tem sido alvo de especulações a fim de avaliar até que ponto o desenvolvimento de uma Inteligência Artificial (IA) pode ser perigosa para a vida humana na terra. Em um texto publicado em fevereiro de 2018, chamado Inteligência Artificial e Capital [1] , o teórico polonês Tomasz Konicz, próximo do pensamento ligado ao grupo Krisis [2], descreve como poderia se dar essa possibilidade de mudança de polos em que a IA ultrapassaria em muito a capacidade intelectual humana, se colocando de forma autônoma e em posição de dominância. Konicz cita o matemático Vernor Vinge, criador do termo singularidade, que entende ser possível e mesmo inevitável que a formação da inteligência artificial supere o potencial intelectual dos seres humanos em todas as áreas relevantes, levando em consideração, inclusive, a extinção física da humanidade.

Diferente do cenário de Blade Runner, em que a singularidade seria a mescla entre seres humanos e máquinas, Konicz descreve a singularidade destes tempos no sentido de que a IA se tornaria uma “abstração real”, uma espécie de software que desenvolveria consciência e residira numa “nuvem global”. Uma inteligência artificial, portanto, que se desenvolveria exponencialmente e de forma autônoma. Esse desenvolvimento possibilitaria um avanço de inteligência e de progresso tecnológico sem precedentes, o que transformaria a humanidade de forma radical, podendo levar até mesmo a sua extinção. “Consequentemente, após o ato de singularidade, a IA tornar-se-ia independente, tenderia a escapar ao controle e superaria a capacidade intelectual da humanidade em pouco tempo”[3].

Nesse cenário a singularidade deste software não poderia mais ser controlada e, devida a sua capacidade intelectual muito superior a humana, poderia assumir o controle do processo de civilização. Seria nesse momento em que a anunciada Matrix se faria verdadeira, ou seja, o tempo histórico em que ao contrário de as máquinas-humanas serem controladas e escravizadas em função da sobrevivência humana, seriam os seres humanos escravizados em função de produzir energia para o funcionamento das maquinas inteligentes? Este software singular seria então a “mente” dominante que levaria adiante, se necessário fosse, uma guerra física contra seres humanos rebeldes, afim de manter a dominação política e social, como aquele desenhado na película das irmãs Wachowski?

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Konicz, ainda que adepto de uma certa teoria do colapso, não acredita muito nessa espécie de fantasia hollywoodiana, na medida em que destaca que a ironia contida nessa transformação tecnológica é o fato de que estaríamos vivendo o tempo em que supostamente veríamos ser cumprida a “profecia” ou a “fantasia” do “sujeito automático” de Marx lá nos Grundrisse. Neste cenário, muito mais realista do que o dos filmes, Konicz entende que justamente a IA daria vida ao “Sujeito automático”, por meio do movimento social global, cegamente desmedido, em busca da valorização do Kapital:

O absurdo escandaloso, em que ninguém repara, é precisamente o facto de as máquinas, cada vez mais inteligentes, poderem produzir cada vez mais bens, num tempo cada vez menor, com cada vez menos trabalho humano. O paraíso parece estar próximo, as necessidades básicas de todas as pessoas podem ser satisfeitas, mas, no entanto, o inferno irrompe na terra – surgindo com ele os cultos de morte correspondentes, como o islamismo, o fascismo e o transumanismo. A produção cada vez mais eficiente no capitalismo, toda a racionalidade do processo de produção, visa um propósito afinal irracional: a maior valorização possível do capital investido. O propósito próprio de obter o maior lucro possível por meio da produção de mercadorias torna-se independente no plano social global. Por trás das costas dos produtores, esse processo de valorização do capital desenvolve uma dinâmica própria, que enfrenta os seus sujeitos de mercado como um poder estranho, quase natural. Portanto, se a própria força de trabalho não pode mais ser vendida no mercado de trabalho, devido a um surto de racionalização, porque as novas técnicas de automação tornam o trabalho maciçamente supérfluo, então as máquinas já estão a roubar às pessoas os seus meios de subsistência. As máquinas já “dominam” sobre a humanidade capitalista tardia, fazem isso como concretização do movimento de valorização do capital, realmente abstrato e cego, que se torna cada vez mais eficiente por meio da concorrência, afastando cada vez mais o trabalho da produção de mercadorias, ao tornar-se cada vez mais “inteligente”.[4]

A cibernética seria, então, um processo necessário à lógica do Kapital que radicalizaria o senso de organização da sociedade capitalista: a unidade-em-separação. A separação [5] é a forma geral da sociedade capitalista que foi, ainda que instintivamente, pensada por Marx já lá nos Manuscritos de 1944 e que depois aparece melhor formulada na parte sobre o fetichismo da mercadoria em O Kapital. A lógica do Kapital, para promover sua existência e sua preponderância em relação a todas as outras formas de organização social que a precederam e que podem lhe suplantar promove uma unidade na separação em contraposição a uma unidade de contrários que poderia possibilitar uma síntese dialética geral entre formas particulares de organização ou modos de vida distintos. A unidade promovida pelo Kapital é aquela engendrada pela sociedade de mercado em que as pessoas se tornam cada vez mais interdependentes por meio das relações de troca. São essas relações, ainda que não apenas comerciais, que estimulam as relações entre os seres humanos e entre estes e a natureza. O Kapital reduz as pessoas, e, sobretudo, os trabalhadores a pequenos vendedores de mercadorias, principalmente a força de trabalho, proporcionando-lhes alguma autonomia, mas sempre dentro de certos limites. Qualquer forma de unidade real, tem sido prontamente incorporado à lógica do Kapital, exacerbando a separação, na forma de identidades ou mesmo no próprio movimento dos trabalhadores que entendeu, durante quase um século, que a unidade operária que se dava nas fábricas por meio de um desenvolvimento continuo das forças produtivas poderia levar a uma “unidade real”. Como pode ser constatado num breve percurso pela história do movimento operário, não foi isso que aconteceu [6].

Na linha de pensamento de Konicz, o cumprimento da fábula marxiana do sujeito automático, seria, portanto, algo como a cibernética ter elevado a unidade-em-separação da lógica do Kapital a níveis inimagináveis. De certa forma isso se assemelha ao pensamento de um grupo insurrecionalista francês ligado a revista Tiqqun e ao chamado Comitê Invisível [7]. Num texto, intitulado La hipótesis cibernética [8], em que o grupo propõe fazer uma genealogia da cibernética, a identificação máxima desse processo está no fato de que a cibernética seria uma nova e possivelmente mais avançada e bem elaborada forma política e social de dominação. Nesse sentido, ela teria em muito superado o que eles também chamam de hipótese liberal. A cibernética proporia uma forma de conceber e organizar os “comportamentos biológicos, físicos e sociais como totalmente programados e reprogramáveis”. O sentido desse controle estaria na necessidade de sobrevivência do “sistema”, por isso as formas de ação e organização dos seres humanos deveriam estar dentro de espaços de equilíbrio a fim de evitar as crises ou de serem facilmente manipuláveis durante uma crise. O fim último da atividade humana seria sempre a de impulsionar o “sistema” levando ao seu equilíbrio e desenvolvimento. Dessa forma, a “hipótese cibernética” não deveria ser apenas criticada, mas sim combatida e vencida pois, na medida em que conseguiu produzir suas próprias verdades, ela seria hoje o anti-humanismo mais consistente, seria algo como uma “guerra deliberada contra tudo o que vive e tudo o que dura”.

Mas como se deu esse processo em que a cibernética teria despontado como grande inimigo dos seres humanos? De acordo com Tiqqun, ela teria surgido sob a abordagem inofensiva de uma simples teoria da informação, uma informação sem origem precisa que poderia estar já no ambiente de qualquer situação cotidiana. Voltada para o controle de um determinado sistema, essa teoria da informação postulava que isso só poderia ser obtido por meio de um grau “ótimo” de comunicação entre as partes envolvidas. Por isso, seria preciso, antes de tudo, a contínua extorsão da informação, um processo de separação entre as entidades e suas qualidades, de produção de diferenças. Essa teoria da informação que desenvolveu-se como cibernética, buscava então, administrar as incertezas de múltiplos processos e por isso requereria a representação e a memorização do passado. Na sequência, a cibernética engendraria um discurso que postularia uma analogia de funcionamento entre organismos vivos e máquinas que seriam reunidos sob a ideia de um “sistema”. Perdida sua aparência inofensiva, a “hipótese cibernética” proporia dois tipos do que Tiqqun entende como “experimentação científica e social”: a primeira, estaria situada no campo do controle e teria como objetivo uma espécie de domesticação dos seres vivos, estabelecendo uma mecânica do seu funcionamento, buscando “gerir, programar e determinar o homem e a vida, a sociedade e o seu ‘devir’”. A segunda experimentação, estaria no campo da comunicação e teria como proposta imitar a forma de viver dos seres humanos com a fabricação de máquinas “inteligentes”, daí a busca pelo desenvolvimento de robôs e da Inteligência Artificial, chegando a rápida circulação de informações que desembocou na constituição das chamadas “redes sociais” [9] . Tiqqun destaca que essas duas propostas de experimentação científica e social estariam ligadas diretamente pela ideia fantasiosa de uma “Autômato Universal”, demasiado semelhante ao Estado como o Leviatã de Hobbes.

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A trajetória de “hipótese cibernética” desembocaria para o grupo numa espécie de “capitalismo cibernético” a partir dos anos de 1970 [10]. Essa forma de organização do Kapital, teria se sobreposto ao fordismo e teria se desenvolvido para, nas palavras de Tiqqun, “permitir que o corpo social devastado pelo Kapital se reforme e se ofereça por mais um ciclo ao processo de acumulação”. Nessa forma de “capitalismo cibernético”, a cibernética teria como uma das suas funções principais, se não a principal, impedir a reprodução das crises do Kapital, garantindo uma coordenação entre a produção e a circulação, eliminando ao máximo o tempo desta última, permitindo, inclusive que o centro de gravidade da valorização do valor desloque-se para a circulação, na medida em que poderia acelerar o ciclo produção-circulação-consumo. Tiqqun determina, portanto que “o cibercapitalismo tende a abolir o próprio tempo, a maximizar a circulação fluida até seu ápice, a velocidade da luz, como já costumam fazer certas transações financeiras. As categorias de ‘tempo real’ ou ‘just in time’ são testemunho suficiente desse ódio à duração” [11].

Qual a alternativa que esse grupo ativista propõe a essa forma social organizada em torno e pela cibernética? Sabemos que eles dizem ser necessário não apenas criticá-la, mas combatê-la. Combater a cibernética antes de ser um “cibernético crítico”, repetem eles. Mas como se daria esse combate? Para Tiqqun, o combate à “hipótese cibernética” pode ser dar através do pânico, visto que a cibernética tem obsessão pela organização de sistema controláveis, o pânico deve ser entendido como uma mudança no estado do sistema autorregulador.

Para frustrar o processo de cibernetização, para derrubar o Império, é necessário um pânico aberto. […] Em situação de pânico, as comunidades rompem com o corpo social concebido como totalidade e querem escapar dele. Mas como ainda estão fisicamente e socialmente cativos dele, são forçados a atacá-lo. Mais do que qualquer outro fenômeno, o pânico manifesta o corpo plural e inorgânico da espécie […] A busca do pânico ativo — “a experiência mundial do pânico” — é, portanto, uma técnica para assumir o risco de desintegração que cada pessoa representa para a sociedade como um indivíduo que assume riscos. É o fim da esperança e de qualquer utopia concreta que assume a forma de uma ponte lançada para não esperar mais nada, não ter nada a perder. E é uma forma de reintroduzir, através de uma sensibilidade particular às possibilidades das situações vividas, às suas possibilidades de colapso, à extrema fragilidade do seu ordenamento, uma relação serena com o movimento de fuga para a frente do capitalismo cibernético. No crepúsculo do niilismo, trata-se de tornar o medo tão estranho quanto a esperança [12].

A linha ofensiva de Tiqqun segue pela intersecção do pânico com o caos e pelo irromper de uma suposta “revolta invisível” que, por meio de uma “guerrilha difusa”, na forma de luta que deve produzir tal invisibilidade aos olhos do inimigo, poderia propagar uma guerra civil contra o Kapital e sua cibernética.

“A revolta invisível, a guerrilha difusa, não sancionam uma injustiça, criam um mundo possível. Na linguagem da hipótese cibernética, sei como criar a revolta invisível ou a guerrilha difusa, ao nível molecular, de duas maneiras. Primeiro gesto, eu fabrico algo de real, desarticulo e me desequilibro desarticulando. Toda sabotagem começa aí. O que meu comportamento representa naquele momento não existe para o dispositivo que está desequilibrado sobre mim. Nem 0 nem 1, sou o terceiro absoluto. Meu gozo ultrapassa o dispositivo. Segundo gesto, não respondo aos loops retroativos humanos ou das máquinas que tentam me cercar, como Bartleby “prefiro não”, fico fora disso, não entro no espaço dos fluxos, não me conecto, Eu fico e descanso. Eu uso minha passividade como um poder contra os dispositivos. Nem 0 nem 1, sou nada absoluto. Primeiro tempo: gozo perversamente. Segundo tempo: me reservo. Mais Além. Mais aquém. Curto-circuito e desconexão. Em ambos os casos não há feedback, há uma linha de fuga. Linha externa de fuga de um lado que parece vir de mim; linha interna de fuga do outro lado que conduz a mim mesmo. Todas as formas de distorção partem desses dois gestos: linhas externas e internas de fuga, sabotagem e recuo, busca de formas de luta e assunção de formas-de-vida. O problema revolucionário de agora em diante consistirá em combinar esses dois momentos” [13].

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Podemos perceber que tanto Konicz, ligado à Crítica do Valor, como o grupo da revista Tiqqun de perspectivas insurrecionalistas, compartilham de uma mesma perspectiva crítica sobre a Cibernética. Em última instância, como técnica apurada de dominação, a cibernética tenderia a subjugar a humanidade até o ponto de sua possível eliminação. Não podemos discordar desse sentido geral da crítica, compreendemos que as técnicas desenvolvidas pelo Kapital, ainda que por acaso ou de forma espontânea, tendem a tornar-se instrumentos de organização social no sentido de impulsionar a valorização do valor, ao mesmo tempo em que forjam novas formas, cada vez mais eficazes, de controle dos seres humanos e da natureza. No entanto, não nos parece que o combate a cibernética se dê apenas com o alarmismo de uma denúncia como faz Konicz ou, em pior caso, como abstrações distantes da realidade cotidiana dos trabalhadores como faz a revista Tiqqun. Pensemos, em que medida, diante dos processos de trabalho e de organização social pressupostos pela cibernética, poderíamos incentivar as pessoas em geral e os trabalhadores em particular a promover o “pânico”. Ou em que medida poderíamos pensar que pessoas que dependem da sua sobrevivência mediada por um aplicativo algorítmico possam apenas decidir “descansar” e se isentar de participar da lógica 0 e 1, pressionando o “sistema” com a ideia de ser um “nada-absoluto” na busca por provocar um curto-circuito e uma desconexão?

Entendemos que essas abstrações são pouco propositivas na busca do enfrentamento à cibernética e mesmo na vida real podem provocar apenas o descrédito de quem as propõe . Ao contrário, questionamos se não teria, a mesma cibernética, nenhum sentido próprio em função do outro polo da luta de classes. Questionamos se ela não serviria, em nenhuma hipótese, para um processo de luta de trabalhadores ou numa perspectiva mais ampla, num sentido de planejamento e organização de uma sociedade que rompesse e superasse a lógica do Kapital. Historicamente não estivemos sozinhos nesses questionamentos, houveram companheiros e pesquisadores que já nos inícios do desenvolvimento cibernético pensaram em que medida essa força produtiva poderia ser útil no sentido da luta de classes e da busca por novas formas de organização social, naquilo que chamaram de “socialismo cibernético”. Pensamos com eles, um tanto a partir deles, e tanto buscando ir pra além deles.

 

§1. Um Socialismo Cibernético, mas qual?

O problema do “cálculo socialista” [15] segue sendo imprescindível para se pensar a revolução enquanto processo de transformação de modo de produzir a vida. Anarquistas e comunistas já se debruçaram sobre essa questão de diversas formas, seja na aposta radical e criativa no futuro baseada nas formas radicais e criativas do presente, em meio a processos revolucionários que se desenvolviam, seja no desenvolvimento de estratégias econômicas anteriores ou posteriores aos levantes revolucionários. O exemplo histórico do modelo soviético, contudo, permaneceu como a clássica caricatura da economia socialista: centralização estatal, planificação econômica, manutenção da sociedade de classes com a burocracia estatal estabelecendo o papel de classe dominante, etc, etc, etc. O socialismo real, dessa forma, apresenta-se como um período transitório entre o capitalismo e o capitalismo.

Os argumentos levantados por Mises e complementados por Hayek e suas críticas ao modelo soviético vão no sentido da identificação da incapacidade do Estado de lidar com as complexas necessidades da vida social pela sua inépcia em dar conta de uma quantidade assombrosa de inputs dos sistemas sociais. A planificação econômica centralizada requer uma estrutura burocrática que, pela sua rigidez, leva à lentidão de tráfego e perda de informações, bem como a limites de input e output, que implicam em uma má performance na alocação de recursos. Nesse caso, os mercados cumpririam melhor a função devido ao seu caráter descentralizado, facilitando o trato com as complexidades sociais uma vez que a propagação e processamento de informações se daria através dos diversos participantes dessa rede escalável, de forma descentralizada. O próprio campo socialista aceitou essas críticas e tentou responder a essas problemáticas oferecendo alternativas tanto aos mercados capitalistas quanto à centralização estatal, dentre elas podemos citar dois campos que aprofundaram a questão: o socialismo de mercado e o socialismo cibernético [16].

O socialismo de mercado remete a um pensamento anterior ao debate em torno do cálculo econômico socialista, principalmente considerando-se as vertentes mutualistas e individualistas do anarquismo que priorizam a ideia de uma economia de mercado e de interações voluntárias não intermediadas pelo Estado [17]. Mas, é dentro do debate do cálculo econômico que se consolida e ideia de socialismo de mercado encontrada principalmente no teorema de Lange-Lerner, e que ainda tem o Estado como agente centralizador, sendo portanto ainda assim uma modelo de planificação econômica centralizada. Para alguns, a China seria o exemplo mais moderno de socialismo de mercado, ao qual outros argumentam que a China “não é nem um modelo estável de socialismo de mercado nem um sistema capitalista estável” [18].

Se a queda do modelo soviético pareceu dar razão aos liberais, as experiências neoliberais modernas, contraditoriamente, refutaram o argumento crítico à planificação. Corporações como o Walmart e a Amazon mostraram que o planejamento é o fator chave da alocação ótima de recursos [19], e que com as tecnologias modernas suas cadeias de suprimentos conseguem funcionar de forma rápida e transparente, com compartilhamento de informações entre todas as etapas [20]. Nesse sentido, expandir o funcionamento a nível internacional (a tal da escalabilidade) se torna tarefa relativamente simples. Jack Ma, fundador do Alibaba já sugeriu que o planejamento econômico moderno fundado nas tecnologias de informação pudesse desbancar a “mão invisível do mercado” [21], já Binbin Wang e Xiaoyan Li traçam a “construção preliminar de um sistema econômico de mercado orientado ao planejamento na era da informação” [22], argumentando que o planejamento pode servir como um potencializador, elevando o nível de uma economia de mercado. Se por um lado o “retorno” do planejamento é visto por alguns atores como uma possibilidade de um revival soviético, para outros é visto como um novo estágio do Kapital que agora pode performar melhor na alocação de recursos através da utilização de novas tecnologias, como a Big Data, o Machine Learning, etc.

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Para além dos mercados, logo após Segunda Guerra Mundial, surgiu a perspectiva de um socialismo cibernético. Esse pensamento se apoia em alguns exemplos históricos como o projeto cibernético de Victor Glushkov na União Soviética (que não chegou à implementação) e o projeto Cybersyn de Stafford Beer no Chile durante o governo de Salvador Allende, nos anos 1970. Tais experiências são retomadas, como por exemplo por Paul Cockshott e Allin Cottrell no livro Towards a New Socialism, de 1993, que centra-se no debate em torno do cálculo econômico socialista para defender o uso de computadores para a criação de uma economia socialista planificada complexa. Em O problema de escala do anarquismo e o caso do comunismo cibernético [23] , Aurora Apolito apresenta os desafios do anarquismo para generalizar suas experiências de nível micro, elevando-as a um nível macro. Na sequência, a autora descreve as experiências do que ela chamou de comunismo cibernético. O núcleo dessas experiências, então, exporia as possibilidades de resolução da escalabilidade no anarquismo, e poderia apontar para formas criativas de organização considerando-se o atual estado da digitalização do mundo, onde a internet e os smartphones possuem papéis essenciais na gestão da vida política, econômica e social moderna.

A implementação do socialismo cibernético no entanto, parece permanecer sob um viés “top-down”, com um importante papel do Estado enquanto perspectiva transitória, como se o socialismo cibernético nada mais fosse que uma “espinha dorsal” socialista faltante para a socialdemocracia [24]. O problema de implementação na verdade é anterior à questão da escalabilidade, mas também se ulterioriza em relação a ela [25]. Atualmente muito se tem falando em “socialismo de plataforma”, ou mais especificamente em “cooperativismo de plataforma”, cuja perspectiva política parece cada vez mais tentar buscar do Estado políticas de incentivos a plataformas tecnológicas baseadas no cooperativismo, além da criação de infraestruturas públicas de regulação e controle do trabalho [26]. Embora essas experiências possam ser interessantes, não estamos convencidos de sua capacidade de generalização e de ruptura, podendo ter um efeito adverso do esperado naquelas abordagens que priorizam o Estado.

 

§2. Cibernéticas Proletárias?

Muitos anticapitalistas parecem interessados em superar o capitalismo sem, contudo, inserirem-se nas lutas sociais, mesmo sendo elas as geradoras de condições para alteração do modo de produção [27]. O desenvolvimento de tecnologias voltadas a solução dos problemas do trabalho moderno busca justamente o oposto, o fim dos conflitos – o apaziguamento das relações de classe. Daí que as lutas sociais não pareçam interessantes por não oferecerem alternativas de gestão. Temos visto vários teóricos e desenvolvedores apontarem para este ou aquele lugar como ponto de partida: seja a criação de cooperativas virtuais para se opor ao capitalismo de plataforma, sejam novas “moedas”, etc. sem que estas estejam de fato integradas nos processos de luta dos trabalhadores – ou nos seus processos mais interessantes e criativos. Em geral, essa perspectiva “mutualista cibernética” gera um milieu contracultural ou um mercado alternativo. Por isso, ao invés de oferecermos alternativas de trabalho, entendemos que se deve apostar nas perspectivas que potencializam as lutas e resistências frente a ele.

Por acreditarmos nas lutas sociais como condições para a superação do capitalismo, compreendemos a necessidade de destrinchar essas lutas, incentivá-las e refletir sobre elas. Acontece que as próprias reflexões feitas sobre as lutas também são, em grande medida, intermediadas pelas ferramentas (cada vez mais virtuais) que nos possibilitam analisá-las e vivenciá-las. As mediações virtuais da composição técnica agem no desenvolvimento dos processos de luta e formas de organização de classe. Tudo se forma no que há de material, mesmo que virtual. Isso nos leva a refletir sobre o quanto nossas opções e nossas atuações são reflexos das mediações dessas tecnologias no trato com os processos de luta e organização e o quanto, em certa medida, nos tornamos reféns delas. Desse modo, tão importante quanto entender as formas de trabalho e as dinâmicas de resistência é entender o conjunto de ferramentas utilizado. Se a passagem da composição técnica para a composição política, ou a sua intersecção, é o ponto crucial no entendimento da composição de classe, o arcabouço tecnológico disponível e utilizado pelos trabalhadores, principalmente na virada de uma composição para a outra, nos parece um ponto essencial para investigação e intervenção.

O que chamaremos de cibernéticas proletárias se diferencia do socialismo cibernético ou do socialismo de plataforma na medida em que não são mediadas (ou não são mediadas em maior grau) por uma perspectiva de futuro, de alternativa ao sistema econômico, mas sim pelo presente e pela relação dos trabalhadores com formas já definidas, implementadas e funcionando em produção. Ou seja, as cibernéticas proletárias se apresentam mais pelo que são – um terreno fértil a contradições – do que pelo que pretendem ser. Essas relações contraditórias, por sua vez, geram um duplo movimento na formação dessas cibernéticas, um de caráter composicionista – a criação ou adoção de novas ferramentas – e outro de caráter decomposicionista – a sabotagem e exploração de vulnerabilidades dos sistemas. Esse duplo movimento é atravessado pela posição em relação ao Kapital – o caráter composicionista ou decomposicionista podem se expressar tanto contra como a favor dele. No movimento composicionista, a utilização de novas ferramentas (seja da forma planejada pelos desenvolvedores, seja como subversão de seus propósitos iniciais) podem servir para preencher as lacunas deixadas pelas ferramentas convencionais de trabalho – potencializando a produtividade – e/ou abrindo margem para organização e conspiração para a luta social. Por outro lado, por mais que o movimento decomposicionista pareça estar em oposição direta ao Kapital ao se utilizar da burla e da sabotagem, essa oposição é também um fator temporal já que se num primeiro momento a exploração das vulnerabilidades estabelece uma forma de “ganho” sobre um determinado aplicativo, por exemplo, posteriormente ela é um indicativo de erro que acaba sendo mapeado e solucionado, aumentando a robustez e a integridade do sistema.

Entendemos que as organizações proletárias clássicas, há muito já burocratizadas, foram substituídas (no “chão de fábrica”) por uma multiplicidade de formas em rede – mais ou menos difusas, mais ou menos integradas – proporcionada por novos softwares, agora na forma aplicativo. No entanto, ao invés de afirmarmos a não-organização dos trabalhadores, acreditamos que devemos dar um passo atrás e nos perguntar quais formas assumem suas múltiplas organizações hoje e quais são as tecnologias que as estruturam.

Os trabalhadores hoje em grande medida fazem uso de “tecnologias complementares” (ferramenta ou conjunto de ferramentas tecnológicas utilizadas para facilitar o processo de trabalho que, no entanto, não são condições para seu exercício) que são ignoradas pelas análises que buscam o entendimento das dinâmicas do trabalho. Inclusive, por não serem “tecnologias requisito” (ferramenta ou conjunto de ferramentas tecnológicas sem os quais torna-se impossível trabalhar), muitos trabalhadores também as desconhecem. Aplicativos de apoio como os “walkie-talkies” do Zelo, ou de monitoração coletiva em tempo real, como o Life360 [28] servem como tecnologias complementares ao processo produtivo, por vezes até extrapolando-o, servindo de estruturas de apoio, confiança e segurança entre os trabalhadores. Os próprios grupos de Whatsapp, as páginas e grupos do Facebook, os canais do Youtube, etc, podem ser enxergados na ótica do movimento composicionista das cibernéticas proletárias – são hoje parte fundamental tanto do trabalho quanto dos movimentos de resistência a eles (alguns mais, outros menos, é claro). Reconhecer isso não significa defender a perspectiva de “disputa das redes” simplesmente porque não nos parece que seja possível disputar os GAFAM [29]. No entanto, entender essa “composição tecnológica” no trabalho é de suma importância para visualizarmos os limites dos aplicativos convencionais e pensar em novas formas.

Se o trabalho, sob a égide da cibernética, é elevado a um nível superior, burlas e sabotagens também evoluem e se aceleram. O próprio hacking adquiriu novos contornos sociais, popularizando-se com o trabalho plataformizado. Se antes ele era possível apenas para os curiosos e/ou estudiosos das tecnologias de informação, a emersão das empresas-aplicativo trouxe consigo novos tipos de hackers – que agora passam a ser também os próprios trabalhadores – muitos dos quais com acesso limitado, ou nenhum acesso, a computadores (nas formas desktop ou notebook). A exploração dos bugs e as estratégias de contorno e burla criam uma relação retroalimentar com a própria dinâmica do trabalho que incide diretamente na elevação de consciência sobre o funcionamento dos algoritmos [30] mesmo que parcial.

E se na burla e exploração de vulnerabilidades, bem como na própria vivência de uso das plataformas, os trabalhadores informatizados conseguem por vezes entender os códigos que regem seu trabalho, podemos aqui imaginar a potência de uma união entre programadores das empresas-aplicativo e trabalhadores de aplicativo dessas mesmas empresas pela sua capacidade de enfrentamento à caixa-preta algorítmica. Os trabalhadores de tecnologia têm possibilidade de elucidar sobre o funcionamento de funções dos aplicativos, confirmando ou esclarecendo os entendimentos que os trabalhadores de aplicativo já têm adquiridos pela própria dinâmica do trabalho, mas não sua confirmação. Arrancar definições precisas sobre o funcionamento de funções da plataforma é uma necessidade para se ganhar terreno. As próprias lutas dos entregadores contra os bloqueios indevidos, são um exemplo de subtração da indefinição imposta pelos algoritmos. Essas indefinições provocam entendimentos difusos sobre vitórias ou derrotas em uma luta, uma vez que apresentam-se através das percepções. É normal ouvir alguns trabalhadores dizerem que depois de uma paralisação tiveram leve melhora nisso ou naquilo enquanto outros afirmam que nada mudou. Essas vitórias indefinidas são frutos da aparente indefinição das regras de trabalho proporcionada pela ocultação dos códigos – aparente porque elas estão lá, só não são acessíveis. Ao não terem definições precisas sobre as regras de funcionamento dos aplicativos os trabalhadores ficam reféns ou da percepção ou da palavra das empresas.

Cibernéticas Proletárias

As cibernéticas proletárias podem ter o potencial de operar com mais facilidade, diríamos, nesses segmentos de trabalhadores que tem o seu trabalho cotidiano mediado por um aparelho celular e por um aplicativo (como o caso dos motoristas de aplicativo ou entregadores de delivery), ou por computadores (como o caso de programadores, designers, etc) pelo simples fato de já estarem dentro dessa lógica cibernética. No entanto, existem formas de atuação por meio da cibernética em segmentos menos “fluídos”, por assim dizer, como fábricas, galpões de logística e mesmo no comércio, bares e restaurantes, pois mesmo que esses trabalhadores não atuem diretamente com app de serviços e que tenham a obrigação de se manterem presos aos seus postos de trabalho, impedidos de circular pelas instalações de uma fábrica, por exemplo, sabemos que o contato com o celular sempre é possibilitado de forma “secreta” quando ele fica aberto num canto escondido da máquina ou quando um trabalhador vai ao banheiro. Também a popularização do Whatsapp possibilitou o surgimento de uma infinidade de grupos, com objetivos distintos, e que permite um contato contínuo – principalmente nos “grupos de zoeira” – com os colegas de trabalho, formas essas que podem servir como um elemento proto-organizador [31] de conflitos.

Saímos, portanto, da abstração de pensar diretamente uma forma de organização social comunista, para pensarmos as formas de luta dos trabalhadores nesse tempo histórico. Ainda mais, saímos da ideia de que um conteúdo revolucionário pode, por si só, ser levado adiante com as formas tradicionais de organização. Entendemos que uma forma revolucionária deva ser investida daquele conteúdo e nesse sentido, estruturas burocratizadas e pró-Kapital como sindicatos e partidos socialdemocratas, movimentos sociais e cooperativas de trabalhadores, mais ou menos atrelados ao Estado, não podem mais dar conta de processos de enfrentamento. Quais formas, então, poderiam fazer parte de infraestruturas que, munidas de um conteúdo revolucionário tivessem força para se colocar em luta contra o Kapital? Teria a cibernética condições de sustentar essas formas necessárias?

 

§3 . Infraestruturas Virtuais de Dissidência

Yun Dong em A Revolta na China: Resistência aos lockdowns [32] , repressão e precariedade nos dá uma análise da resistência de massas dos movimentos aos lockdowns na China, indicando a falta de uma “Infraestrutura de Dissidência”, causada pela ação do Estado chinês de proibir partidos políticos independentes e esmagar “grupos de direitos humanos, da sociedade civil e dissidentes individuais destacados”. Decorre daí um rompimento com “a infraestrutura dos movimentos sociais para convocar, organizar e sustentar uma luta de massas”. No entanto, aponta a difusão dos protestos no microblog chinês Weibo (uma das redes sociais mais populares na China) e do Wechat (espécie de Whatsapp chinês), além de mais conhecidas, para nós, como o Telegram. A pergunta que nos fazemos é: em que medida essa infraestrutura cibernética já não seria uma infraestrutura de dissidência – precária, virtual, fora dos nossos controles, etc, mas ainda assim uma infraestrutura de potencialização das lutas – não pelas próprias redes, mas pelo uso subvertido delas na perspectiva de luta social pelos manifestantes?

Em En immersion numérique avec les gilets jaunes [33] , Roman Bornstein realiza uma investigação cibernética do movimento dos Coletes Amarelos, na França, dissecando não só as implicações dos algoritmos do Facebook [34] como também uma análise das contas na rede social dos membros mais proeminentes do movimento. Nesse caso, o autor busca identificar as formas e tendências mais potencializadas pela rede – parece que o foco de análise a partir da identificação de um populismo digital nos Coletes Amarelos é o que orienta a visão do autor sobre o movimento – e é a partir daí que o movimento nos é apresentado. Nos parece que essa investigação também parte da identificação de uma infraestrutura digital do movimento, mesmo que crítico a ele (como – ao que parece – ao movimento como um todo).

Somos confrontados com uma contradição: ao mesmo tempo que essas redes operam na unidade-em-separação, elas também possibilitam a união das insatisfações que superam a separação e promovem uma verdadeira união – uma unidade-no-conflito. Não temos nenhuma esperança no Wechat, no Facebook, no Whatsapp, etc, mas entendemos que essas ferramentas cumpriram e ainda cumprem importantes funções na organização das lutas sociais simplesmente porque elas existem e são populares, de fácil acesso, o que leva a quase todas as pessoas que conhecemos estarem lá e se expressarem através delas. No entanto, ao cumprirem suas funções para as lutas, elas também impõem suas dinâmicas aos movimentos, determinando o alcance, os tipos de materiais e até mesmo a longevidade das organizações virtuais (não são raros os casos de movimentos e grupos políticos que têm suas redes tiradas do ar pelas plataformas), ou seja, em certa medida elas podem controlar e limitar a extensão do conflito. A dependência que as redes sociais e os mensageiros instantâneos nos causaram é tanta que a internet mesmo se mostra limitada – seja por opção, seja por determinação [35] – e o tráfego virtual hoje em dia concentra-se cada vez mais em uns poucos sites, bem diferente daquela perspectiva de descentralização e florescimento de mídias livres na internet até o começo dos anos 2000 que uma vez fez surgir uma articulação internacional de mídias independentes conhecidas como IndyMedia (para os brasileiros, CMI).

As redes sociais não podem ser disputadas. Elas podem ser usadas, sim, para determinados fins como propaganda e agitação, e já são, mas suas lógicas impõem limitações às expressões criativas das lutas sociais, levando-as a se comporem virtualmente sempre de forma tolhida. A criatividade, é claro, não se aguenta, pula o muro e tenta se impor – sem êxito – fazendo com que as formas sejam adaptadas aos instrumentos disponíveis – se expressando em conteúdo radical nas formas capitalistas das redes sociais. Há todavia aqueles que acreditam que a disputa das redes é papel essencial do combate ao espectro “fascista” crescente que já pode ser identificado como tendência global. E se a linguagem da histeria faz sucesso na internet, não é por acaso que o apelo ao irracional potencializa as ideias e os sujeitos mais execráveis. Mas como seria o combate ao populismo digital [36] crescente propiciado por uma internet cada vez mais ilhada, cada vez mais centralizada, cada vez mais personalista? A resposta para alguns parece ser o próprio problema: a adesão ao populismo digital. A adesão ao populismo digital vem com o intuito de “inversão dos polos”. Nas eleições de 2022 essa estratégia ficou mais clara com o chamado “Janonismo Cultural” [37], o que nada mais era do que a aproximação do PT de uma estratégia digital populista, que o deputado André Janones conhece e da qual soube utilizar muito bem no passado, tanto com a greve dos caminhoneiros (o que garantiu sua eleição), como em relação ao auxílio emergencial durante a pandemia (o que o tornou uma celebridade durante a crise sanitária, principalmente entre aqueles que mais dependiam do auxílio, levando-o inclusive a bater recorde com suas lives no Facebook [38]). Os populistas digitais de esquerda, se jogam assim na aceleração da cacofonia informacional das redes sociais para “combater a desinformação”, mas as suas estratégias digitais se tornam cada vez mais parecidas com as dos que buscam combater.

A internet, tal qual a vida, é uma estrutura colossal sustentada por muita paixão e trabalho não remunerado. Um conhecido meme dos profissionais de tecnologia da informação é a realidade material das infraestruturas digitais modernas. Casos como o de zloirock – desenvolvedor do core-js, biblioteca muito popular do javascript que encontra-se em sites como yahoo, microsoft, twitter, facebook, tiktok, etc. e que possui números estrondosos como 9 bilhões de downloads via npm e 19 milhões de repositórios do GitHub dependentes [39] – que começou a pedir doações na internet por mal ter dinheiro para comprar comida não são raros. Outro caso que explicitou toda a importância desse trabalho não remunerado foi o de Azer Koçulu, entusiasta de código-livre, que devido à confrontos legais com um mensageiro instantâneo que tinha o mesmo nome de sua biblioteca, em conjunto com a decisão da empresa npm, Inc. de mudar o nome de seu pacote em prol de interesses comerciais da empresa responsável pelo mensageiro instantâneo, o levou a apagar todos os seus projetos armazenados no npm [40]. Koçulu apagou inclusive um código simples de apenas 11 linhas, mas que era fundamental para tantas outras bibliotecas, sendo o suficiente para quebrar diversos sistemas e impedir o trabalho de uma quantidade monstruosa de desenvolvedores (incluindo, ironicamente, os do mensageiro instantâneo Kik). Em meio ao caos, a empresa que rege o npm decidiu retornar o código de 11 linhas, desfazendo a ação de Koçulu e mostrando que trabalho não-remunerado não significa liberdade (embora tenha feito isso colocando o nome da defesa da comunidade e dos valores do open-source [41]). O sonho socialista do trabalho coletivo e não alienado que certa vez encontrou na internet e nas comunidades de software livre sua realização agora mostra a face perversa dos trabalhos precários fundantes dos maiores sistemas digitais do mundo.

Se a internet possibilitou formas socializantes como as comunidades de software livre e os torrents, o Kapital respondeu com o crowdsourcing, o combate à pirataria – e mais tarde com os serviços legais de streaming. No entanto, mesmo subvertidas, e cumprindo papel contraditório, essas formas socializantes ainda hoje sustentam a infraestrutura digital moderna, por isso nos parece inviável abrir mão delas. Precisamos retomar e repensar suas perspectivas para que voltem a servir aos interesses coletivos e, a nosso ver, aos interesses revolucionários. Precisamos estruturar comunidades pulsantes de desenvolvedores e encontrar formas de envolver os trabalhadores não-desenvolvedores na elaboração de novas ferramentas e sistemas socializantes. Precisamos seriamente pensar em formas de alocação e realocação de recursos radicais[42].

Se as redes sociais e os mensageiros instantâneos cumprem funções de “infraestruturas virtuais de dissidência”, isso se caracteriza mais pelas suas popularidades do que suas possibilidades – e é na chave desses últimos que nos parece importante intervir e investigar. Se as cibernéticas proletárias podem nos apresentar novas possibilidades organizativas é através do desenvolvimento delas que podemos pensar em direção a criação de sistemas de conflitos, de infraestruturas de dissidência. As redes sociais comerciais têm uma capacidade ótima em generalizar abstrações, e nos parece que repensar as redes é partir do oposto. É a partir das especificidades da separação que podemos, aí sim, construir plataformas de integração das experiências de resistência. Mas de qual forma o desenvolvimento das cibernéticas proletárias pode potencializar as infraestruturas virtuais de dissidência?

Cibernéticas proletárias

As respostas já estão aí, tanto em presença quanto em falta. Na forma aplicativo [43] podemos pensar em lugares mais seguros e ao mesmo tempo abertos para troca de ideias e propostas de luta/organização; de armazenamento de informações que se constituísse como uma memória dos processos de luta, sendo possível relembrar e sistematizar as táticas de confronto utilizadas ou criadas, bem como as ofensivas do Kapital para acabar com os conflitos em suas diversas formas como negociações, cooptações e recuperações, traçando os caminhos que levaram à derrotas e aqueles que possibilitaram as pequenas ou grande vitórias; “enquetes operárias” permanentes, no sentido da busca pelos pontos de confluência entre a vida dos trabalhadores, as dificuldades enfrentadas no cotidiano do trabalho, as perseguições, punições e assédios de todos os tipos, que pudesse exprimir a vida dos trabalhadores e principalmente suas insatisfações e frustrações que podem impulsionar um sentimento de que todos estamos fodidos e que, por isso, é preciso fazer alguma coisa para mudar; espaços virtuais que sirvam como proto-organizadores dos conflitos, fomentando as lutas ao mesmo tempo em que ao tentar reunir e facilitar a identificação de pautas latentes, podem apontar para uma linha organizada na luta; plataformas de (re)alocação de recursos para as lutas, ligando diversos processos e atores pela unidade no conflito.

Tudo o que dizemos até aqui, e sobretudo esses breves pontos acima, não são propostas fechadas, muito menos um programa. São uma tentativa de pensar um processo em permanente construção através de reflexões que fazemos sobre as lutas que nos envolvemos ou tivemos conhecimento. São apostas. Apostas em formas criativas e coletivas futuras baseadas em formas criativas e coletivas do presente, muitas delas já utilizadas fragmentariamente e de forma intermitente pelos trabalhadores em seus tempos cotidianos e de conflito contra o Kapital utilizando ferramentas que estão à disposição mesmo não orientadas a esses fins. São, portanto, apostas que já estão nesse jogo, mas ainda assim apostas.

Pensar no desenvolvimento de novas Cibernéticas Proletárias (e consequentemente em Sistemas Virtuais de Dissidência) implica em repensar a forma como os sistemas são feitos. É preciso repensar as formas de programar, de compartilhar, e mais importante, de envolver os “usuários finais” nas próprias etapas de desenvolvimento. Se defendemos até aqui os conflitos sociais como geradores de relações de novo tipo e a investigação das cibernéticas proletárias como forma de identificação das formas virtuais criativas e radicais do presente para o desenvolvimento de sistemas orientados às lutas sociais, não é para no final sucumbirmos à ditadura dos algoritmos. É interessante, nesse sentido, pensar no que Aaron Benanav chamou de “protocolos de planejamento” [44], que para o autor seria uma forma de coordenação dos trabalhadores “em muitos locais de trabalho diferentes, para resolver o problema do ‘cálculo socialista’ sem recorrer aos mercados ou planejamento centralizado” [45]. Se Benanav, contudo, imaginou a implantação desses protocolos já em um sistema de planejamento econômico escalável, estamos aqui pensando em como adaptar esses protocolos para sistemas de conflitos.

Nesse sentido, a organização da nossa revolta pode, em um momento posterior, reorganizar a sociedade? A cibernética pode ter um papel nesse processo? É certo que a superação de qualquer modo de produção necessita de uma alternativa – que ao longo da história se mostrou desenvolver no próprio seio do sistema a ser superado. A questão que parece ser pertinente para se pensar nesse salto é em que medida o desenvolvimento das cibernéticas proletárias poderiam servir para a criação de “shadow planning systems” [46], oferecendo condições para a superação do modo de produção capitalista. Haveria possibilidade aqui de uma guinada a um comunismo cibernético através do desenvolvimento das cibernéticas proletárias, ao invés de termos que aguardar a implementação de um novo sistema por uma tecnocracia vermelha?

Cibernéticas Proletárias

 

Notas:

[1] http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz9.htm
[2] Grupo de intelectuais alemães, reunidos em um grupo chamado Initiative Marxistiche Kritik, que a partir do final dos anos 1980, buscou desenvolver o que chamaram de “crítica fundamental do valor”, mais tarde conhecida apenas por “crítica do valor”. Robert Kurz, autor de livros como o Colapso da Modernização e Últimos Combates é o autor mais conhecido e proeminente do grupo que ficou famoso mundialmente ao publicar em 1999 o Manifesto contra o trabalho. Krisis foi a revista que reuniu esses ativistas durante todos os anos 1990 e início dos anos 2000. Em 2004, depois de uma cisão devido a divergências teóricas, Kurz e outros autores criaram uma nova associação e passaram a publicar a revista Exit!.
[3] http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz9.htm
[4] Idem.
[5] Esse movimento da unidade-em-separação também foi observado, digamos, no nível “cultural” pelo movimento Situacionista em especial por Guy Debord no seu A sociedade do Espetáculo: “A própria separação faz parte da unidade do mundo, da práxis social global que se cindiu em realidade e imagem. A prática social, perante a qual se põe o espetáculo autônomo, é também a totalidade real que contém o espetáculo”.
[6] Para uma crítica da separação no movimento operário ver: A history of separation. https://endnotes.org.uk/issues/4
[7] TIQQUN foi uma revista francesa autodesignada “órgão consciente do Partido Imaginário”, foi publicada entre 1999 e 2001. Seus diálogos críticos com a filosofia política abarcam um amplo espectro, que vai do movimento okupa a Giorgio Agamben, de Georges Bataille à Autonomia, de Michel Foucault à Internacional Situacionista. O Comitê Invisível, por sua vez é uma espécie de pseudônimo de um autor ou de autores anônimos que publicaram livros e textos de intervenção contra o Kapital, como A Insurreição que vem (2007) e Aos Nossos Amigos, Crise e Insurreição (2014). A identidade do Comitê Invisível foi associada aos Nove Tarnac, um grupo de pessoas que incluía Julien Coupat, que foram presos “sob a alegação de que deveriam ter participado da sabotagem de linhas elétricas aéreas nas ferrovias nacionais da França”. O grupo sempre negou a participação na sabotagem e também que fizesse parte do Comitê Invisível.
[8] https://tiqqunim.blogspot.com/2013/01/cibernetica.html
[9] Importante salientar que na época da publicação do texto de Tiqqun, as chamadas “redes sociais” ainda não existiam tal como entendemos elas hoje. Nesse momento ainda não estávamos sob o paradigma que se convencionou chamar web2.0. Podemos dizer que a “transição” para a web2.0 começa com o surgimento das redes sociais. No Brasil, essa transição é perceptível com o surgimento e popularização do Orkut a partir de 2004.
[10] Para Tiqqun “capitalismo cibernético” é igual a neoliberalismo. O neoliberalismo se fundamentaria exatamente pela incorporação da cibernética à lógica do Kapital: “Sob o impulso de Friedrich von Hayek, o paradigma utilitarista é abandonado em favor de uma teoria dos mecanismos de coordenação espontânea das escolhas individuais que reconhece que cada agente tem apenas um conhecimento limitado dos comportamentos dos outros e do seu próprio. A resposta é sacrificar a autonomia da teoria econômica, enxertando-a na promessa cibernética de equilíbrio de sistemas. O discurso híbrido resultante, mais tarde apelidado de “neoliberal”, dota o mercado com as virtudes da alocação ótima de informações – e não mais riqueza – na sociedade. Como tal, o mercado é o instrumento de perfeita coordenação dos atores, graças ao qual a totalidade social encontra um equilíbrio sustentável. O capitalismo torna-se aqui indiscutível na medida em que se apresenta como um meio simples, o melhor meio, de produzir a autorregulação social”. (Tradução nossa).
[11] https://tiqqunim.blogspot.com/2013/01/cibernetica.html.
[12] Idem. (Tradução nossa)
[13] Idem, grifo no original. (Tradução nossa)
[14] Algumas da “táticas” propostas pelo Tiqqun ainda são referenciadas no imaginário hacker do final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, algo como a tentativa de fugir da Matrix. De certa forma eles dialogam com o pessoal do Eletronic Disturbance Theater, que promoveu o que eles chamaram de “Zapatismo Digital” e que usavam de ataques em sites famosos para divulgar o levante zapatista, poluindo os sites com informações zapatistas ou simplesmente tirando os sites do ar. Mas essas formas se tornaram mais difíceis de realizar e começaram a se mostrar insuficientes no longo prazo. Foi nesse momento que alguns hackers começam a investir não mais em ficar derrubando sites ou mudando informações, mas criar verdadeiras redes de proteção, de privacidade, de enfrentamento aos grandes sistemas. A rede Tor como garantia do anonimato e da privacidade e o Wikileaks como defensor da transparência para os poderosos, são dois exemplos desse processo.
[15] O problema do cálculo socialista parte de um debate entre os anos 20 e 30 começado por Mises, e depois apoiado por Hayek, para a crítica do modelo soviético. Segundo os economistas, a perspectiva soviética de planificação econômica tinha capacidade inferior a de gestão de informações massivas e, consequentemente, péssima capacidade de alocação de recursos, devido ao seu caráter centralizador. Em oposição à centralização estatal da planificação econômica, os economistas defendiam a descentralização do mercado, que por sua complexidade estrutural lidaria melhor com a gestão massiva de informações e atingiria um nível superior na alocação de recursos.
16] Em linhas gerais, para os socialistas de mercado as críticas referentes a complexidade social e a impossibilidade de um órgão centralizador gerenciar um número massivo de processos devido aos limites de input eram válidos e a incorporação dos mercados no cálculo comunista seria uma forma de apresentar uma boa solução para o problema levantado. Já para os socialistas/comunistas cibernéticos, o problema apresentado poderia ser resolvido com os avanços tecnológicos através da criação de sistemas integrados que teriam capacidade de colher e processar esses inputs tão bem quanto, ou até melhor que, os mercados.
[17] Não devemos confundir esses socialistas de mercado com os chamados “anarco-capitalistas”, liberais radicais cujas elaborações são muito mais focadas na escola austríaca e cuja oposição ao socialismo é notório. Há no entanto, certa confusão terminológica. Em muitos textos anarquistas usa-se o termo “libertarianos” para diferenciar-se dos “libertários”, que em essência seriam socialistas, anarquistas, enquanto os “libertarianos” defenderiam o livre mercado e poderiam se dividir em “libertarianos de direita” (como os anarcocapitalistas) e “libertarianos de esquerda” (como por exemplo os defensores do agorismo ou do mutualismo – em especial os mutualistas estadunidenses).
[18] https://hub.hku.hk/bitstream/10722/64825/1/Content.pdf?accept=1
[19] Em People’s Republic of Walmart, Leight Phillips e Michal Rozworski recuperam o debate em torno do cáculo socialista apresentando a centralidade da planificação econômica para empresas como Walmart e Amazon, que conseguem atingir nível ótimo na alocação de recursos com uso das novas tecnologias como Big Data e Inteligência Artificial, argumentando que a forma como que essas empresas hoje atuam nessa gestão massiva de informações poderia servir para uma economia socialista em oposição aos mercados.
[20] Por ironia da racionalidade econômica, a Sears, Roebuck & Company, uma das competidoras principais da Walmart, foi destruída pela instauração de um mercado interno através da reestruturação das operações, “dividindo a companhia em trinta, e depois quarenta diferentes unidades que deveriam competir uns contra os outros” – Peoples’s Republic of Walmart.
[21] “Over the past 100 years, we have come to believe that the market economy is the best system, but in my opinion, there will be a significant change in the next three decades, and the planned economy will become increasingly big. Why? Because with access to all kinds of data, we may be able to find the invisible hand of the market”. – Jack Ma ( https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7890769/ )
[22] https://www.scienceopen.com/document_file/63ccc019-a2fa-4acd-8edc-1fb4fcbfcca7/ScienceOpen/worlrevipoliecon.8.2.0138.pdf
[23] https://passapalavra.info/2020/07/133143/
[24] “From this point of view, our attempt to define the principles of a socialist economic mechanism might be seen as providing the socialist backbone which is conspicuously lacking in contemporary social democracy: even those who disagree with our advocacy of a fully planned economy might find some value in our arguments, insofar as they illuminate the undeveloped component in the mixed economy’s ‘mix’.” – Towards a new socialism – Paul Cockshott, Allin Cottrell
[25] Para escalar um sistema é necessário que tenhamos esse sistema implementado. No entanto, o processo de implementação sempre deve levar em consideração a capacidade de manipulação de uma quantidade cada vez maior de trabalho, isto é, a escalabilidade. Mesmo assim, um sistema já implementado e escalável pode sofrer mudanças devido aos novos inputs recebidos (em geral, feedbacks dos outputs gerados) por conta da ampliação de seu alcance, o que leva à adaptações na implementação e incorporação de novas funcionalidades.
[26] Entregadores de aplicativo organizados em torno da Aliança Nacional de Entregadores de Aplicativo (ANEA) estão defendendo atualmente a implantação de um sistema público a ser administrado pelo Ministério do Trabalho e Emprego que funcione como um centralizador das informações de trabalho por aplicativo feito em aplicativos diferentes. Nesse caso seria possível reunir as informações que são hoje espalhadas pelos diversos aplicativos e que ficam apenas salvas nas plataformas de trabalho. A apresentação completa desse sistema, chamado de Plataforma Digital de Integração Pública de Informações Sociais e do Trabalho, pode ser acessado aqui: http://abet-trabalho.org.br/o-trabalho-e-gasoso-mas-os-trabalhadores-sao-de-carne-e-osso-uma-proposta-de-como-operacionalizar-direitos-deveres-e-obrigacoes-dos-contratos-gerenciados-via-plataforma-digital-%C2%B9/.
[27] Estamos de acordo com Mauricio Tragtenberg, quando, no prefácio ao livro Economia do Conflitos Sociais de João Bernardo, na sintetização da obra, descreve uma economia revolucionária como aquela antagonista a economia de submissão que caracteriza a sociedade capitalista, baseada na disciplina e adaptação dos trabalhadores às máquinas e aos organismos administrativas da fábrica e do Kapital. A economia revolucionária, ao contrário, possibilita a emergência das pessoas como sujeitos coletivos em processos de luta e é a partir desses processos de luta que as pessoas podem romper com a disciplina do Kapital, criando as suas estruturas que possibilitam a continuidade da luta e a mesmo a ruptura com essa forma social, buscando a implementação de relações comunistas entre as pessoas envolvidas no processo. É nesse sentido que Tragtenberg afirma que comunismo não é algo a atingir, mas decorre da auto-organização dos trabalhadores.
[28] O Life360 que muitos motoristas de aplicativo utilizam para monitorar em tempo real os colegas de grupo de whatsapp, evitando áreas de perigo ou qualquer outra ocorrência danosa, por exemplo, se apresenta como uma “rede social privada orientada-a-família”, já o Zello se apresenta apenas como um walkie talkie moderno.
[29] Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, os gigantes da Web.
[30] Alguns motoristas da uber descobriram que, caso você desligasse a internet e colocasse o “Destino Definido” voltando a religar em seguida, não era descontado o uso da função (que naquele momento era de apenas 2 vezes por dia), de forma que o motorista que seguisse esses passos conseguiria usar o o Destino Definido de forma ilimitada (https://www.youtube.com/watch?v=RcmaD3-a1jE). Alguns entregadores descobriram que ao aceitar corridas em uma ponte que separava duas cidades conseguiam gerar um comportamento não-esperado no aplicativo, recebendo a mais pelo deslocamento. Já nos EUA, motoristas da Amazon descobriram que ao deixar seus celulares em árvores perto de estabelecimentos, eles conseguiam enganar o algoritmo e pegar mais rotas, mas para isso deveriam deixar celulares nas árvores e usar outros celulares para trabalho, que deveriam estar sincronizados. (https://fortune.com/2020/09/01/amazon-drivers-flex-app-phones-in-trees/). Mesmo enquanto “ganho individual”, o compartilhamento desse “know how” entre os trabalhadores faz com que a burla adquira um caráter coletivo.
[31] Entendemos que as cibernéticas podem tem um sentido proto-organizador das lutas, na medida em que não elegem um conflito por uma pauta específica e determinada, como por exemplo as campanhas de data base ou dissídios coletivos que são “lutas” com data marcada “organizadas” pelos sindicatos, ou mesmo no caso dos aplicativos, lutas reivindicativas por aumento de taxas. As cibernéticas podem ser proto-organizadoras na medida em que a vão reunindo as informações (no caso dos apps – perseguições, bloqueios, baixas taxas, esculacho dos clientes), que podem desembocar numa luta, então está informação está “organizando” previamente, ainda que não deliberadamente, a luta que vai ocorrer ali na frente. A partir disso a cibernética pode se tornar um organizador durante uma luta e mesmo, talvez mais importante, depois da luta, como continuidade do processo. Mas, enfatizamos aqui que, antes dos conflitos ela tem o potencial de exercer esse papel de deixar as coisas sempre num estágio latente, com o sentido de que a qualquer momento algo pode acontecer.
[32] https://passapalavra.info/2023/03/147957/
[33] https://www.jean-jaures.org/publication/en-immersion-numerique-avec-les-gilets-jaunes/ – chegamos a esse texto através de um outro – https://passapalavra.info/2018/12/124695/ – e consideramos importante creditar a referência direta desse texto por identificarmos ali nos comentários muito do que havíamos desenvolvido até então. Os comentários do João Bernardo dialogam inteiramente com o que buscamos fazer nesse texto, e seu exemplo sobre o contato do trabalhador da Uber que se organiza virtualmente com seus camaradas – através de formas como o monitoramento em tempo real – dialogam diretamente com as experiências que tivemos contato e nos inspiraram a escrever esse texto.
[34] O autor conclui que os algoritmos de classificação de conteúdo do Facebook, bem como os de sugestão, potencializam as perspectivas populistas, as notícias falsas e alarmantes, etc. Bornstein analisa também as mudanças nos algoritmos da plataforma, como em 2018, onde o Facebook tenta deixar os usuários menos expostos às páginas e mais aos seus contatos e suas interações, o que o autor identifica como uma reorientação positiva na diminuição da audiência nas páginas de desinformação. Por outro lado, Bornstein identifica efeitos negativos, como a queda média de 31% das audiências nas cinco mídias tradicionais francesas mais seguidas, em contrapartida com um aumento nas bolhas de interesse, no compartilhamento de conteúdos publicados por amigos, seus grupos, etc. Essa mudança, segundo o autor, garantiu sucesso aos Coletes Amarelos uma vez que ao entrar em dois ou três grupos do movimento “80% do feed de notícias do usuário passa a ser composto por publicações desse grupo”, além de colocar os dois membros mais proeminentes do movimento em contato através da identificação de interesses comuns e proximidade espacial. Os problemas relativos a toda essa capacidade de manipulação involuntária mediada por algoritmos são claros e já se provaram em outros momentos. O Facebook poderia facilmente cruzar e vender esses dados para qualquer ator político que queira atingir os participantes desse movimento, como fez a Cambridge Analytica na campanha de Donald Trump e no Brexit.
[35] O caso dos angolanos com acesso limitado à internet e que usam o facebook para buscar coisas, ao invés do google devido aos limites de banda (https://caixadeferramentas.org/por-que-os-angolanos-estao-nos-grupos-brasileiros-de-facebook/) e que é também uma realidade no Brasil entre os mais pobres, que aderem a planos de internet limitada a alguns aplicativo (como Whatsapp e Facebook) via operadora, prática essa conhecida como Zero Rating.
[36] Segundo Leticia Cesariano, populismo digital “refere-se tanto a um aparato (digital) quanto a um mecanismo (de mobilização) e uma tática (política) de construção de hegemonia.” – https://www.academia.edu/38061666/Populismo_digital_roteiro_inicial_para_um_conceito_a_partir_de_um_estudo_de_caso_da_campanha_eleitoral_de_2018_manuscrito_
[37] O “Janonismo Cultural” ganhou esse nome nas eleições de 2022, quando o deputado federal André Janones começou a “usar as armas dos bolsonaristas contra eles mesmos”. Há aqui alguns questionamentos sobre seus métodos, seguidos de sua defesa https://www.youtube.com/watch?v=wXzI9oLEB68 e aqui podemos ver o deputado utilizando algo como um semiótica vulgar para espalhar o que parece ser mais uma fake (observação no “fontes não OFICIAIS”, por exemplo) https://twitter.com/AndreJanonesAdv/status/1643704641442525189
[38] https://exame.com/brasil/deputado-bate-recorde-de-marilia-mendonca-em-live-sobre-auxilio-de-r-600/
[39] https://github.com/zloirock/core-js/blob/master/docs/2023-02-14-so-whats-next.md
[40] https://web.archive.org/web/20160330050734/https://medium.com/@azerbike/i-ve-just-liberated-my-modules-9045c06be67c
[41] Para os defensores do Software Livre na realidade a própria ideia do Open-Source (Código Aberto) já é um desvio das ideias de defesa da liberdade dos usuários, priorizando as vantagens práticas e se aliando aos que cada vez mais cerceiam a liberdade na internet. Conferir aqui https://www.gnu.org/philosophy/open-source-misses-the-point.html e aqui https://www.anahuac.eu/2019/02/05/libre-software/
[42] Por exemplo: Enquanto algum jovem militante da organização mais revolucionária do último minuto diagrama muito bem um panfleto com o intuito de “dialogar com a classe trabalhadora”, conseguindo atingir um número impressionante de treze pessoas, do outro lado da cidade uma organização de trabalhadores sem conhecimento em design necessita de uma arte para próxima manifestação. Uma simples plataforma de compartilhamento de recursos poderia suprir tanto a necessidade do jovem ultra revolucionário de estar conectado com a classe trabalhadores e fomentar “a luta revolucionária” quanto a necessidade daquele grupo de trabalhadores que planejam se manifestar pelo aumento do VR – e quem sabe essa união momentânea não possa se desenvolver em algo mais interessante no futuro?
[43] É claro que não é apenas no desenvolvimento dos aplicativos, por assim dizer, que devemos focar nossas energias. Repensar as formas da infraestrutura de redes desses sistemas é uma questão essencial para tomar de volta a liberdade nas redes – principalmente resgatar aquele potencial subversivo e descentralizado que uma vez dominou a internet. Nesse sentido, experimentar novas infraestruturas de rede, levantar servidores ativistas na construção do nosso terreno é essencial, e deve partir não apenas através dos softwares, mas também dos hardwares. Para aprofundar mais as questões, sugerimos a série “Construir o nosso terreno” (https://passapalavra.info/2021/04/137355/) que levanta outras questões que não tratamos nesse texto mas que julgamos ser igualmente interessantes e necessárias.
[44] https://logicmag.io/commons/how-to-make-a-pencil/
[45] https://digilabour.com.br/automacao-e-futuro-do-trabalho-entrevista-com-aaron-benanav/
[46] “The process of actually transforming the economy to a fully socialist economy cannot be done too rapidly, because you need to first put in place an alternative planning system. You have to set up a shadow planning system first.” https://transversal.at/transversal/0805/cockshott/en – aqui há uma referência aos ‘shadow systems’ (Shadow IT ou TI Invisível), que são sistemas ou aplicações paralelas em uso e que não se encontram sob jurisdição de uma departamento de TI em uma empresa, ficando em geral a cargo dos trabalhadores. São muitas das vezes, de certa maneira, formas de contestação – via produtividade – da gestão principal de TI de uma empresa pelo conforto e praticidade dos trabalhadores. Por “shadow planning system” o que Paul Cockshott quer dizer é que necessita-se a criação de um sistema de planejamento paralelo, clandestino, uma dualidade de poder a nível econômico.

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Clarence Holbrook Carter (1904-2000).

12 COMENTÁRIOS

  1. Artigo muito interessante. Desafiador.
    Eu mesmo desenvolvi softwares por cerca de 20 anos, inclusive para a área de mercado de capitais.
    Vou reler e reler o texto, com muita atenção. Caso chegue a alguma contribuição minha pertinente, postarei aqui.

    Apesar de uma abordagem inicial no texto do Tiqqun, “A Hipótese Cibernética” tem no livro “Aos nossos amigos” (Comitê Invisível) uma apresentação melhor elaborada.

    《Como em todo o período de transição, a passagem da antiga governamentalidade econômica à cibernética abre uma fase de instabilidade, uma clarabóia histórica onde é a governamentalidade enquanto tal que pode ser colocada em xeque.》

  2. Parabenizo Grevo de Vergere pela boa sistematização de reflexões, e por apresentar mais dúvidas que certezas. Não estamos em tempo de manuais.

    O artigo ressuscitou-me algumas reflexões, na mesma linha de ter mais dúvidas que certezas, e me lembrou de fazer uma pergunta, como quem quer menos uma resposta definitiva que a partilha de inquietações.

    Em 2017 também eu juntei algumas reflexões e inquietações em torno de autogestão e técnicas produtivas (https://passapalavra.info/2017/04/111306/). Na época, tentei apresentar a difusão massiva de certas técnicas produtivas como uma das condições necessárias para a autogestão.

    Por “autogestão” entendi na época, como ainda hoje entendo, um regime produtivo em que trabalhadores são proprietários dos meios de produção (no plano “jurídico”), controlam integralmente seus processos de trabalho (no plano “econômico”) e organizam toda a sociedade sobre estas bases (no plano “social”). Entendo “autogestão” sem conversa mole nem meias medidas, de modo bem diferente de certas ONG, certos teóricos da economia solidária, e em especial certos “coletivos” que se chamam “autogeridos” mas são na verdade empresas, a quem só falta o registro na Junta Comercial para acabar-lhe a forma.

    Entendi na época, como ainda hoje entendo, a massificação de certas técnicas produtivas como condição para a existência de um regime autogestionário. Para caçar pela manhã, pescar à tarde, criar gado à noite e escrever críticas após o jantar é preciso saber caçar, pescar, criar gado, cozinhar o jantar, lavar e guardar a louça, saber escrever e saber criticar.

    Tendo isto em vista, faz alguns anos que me incomoda a possibilidade de uma tecnocracia baseada na “autogestão por aplicativos”, que certas pessoas do lado de cá andam propondo.

    Claro, para que exista autogestão tal como a defino, e com o tipo de sociedade em que vivemos, é necessário haver divisão social do trabalho, uma divisão entre quem desenvolve o aplicativo e quem organiza seu processo de trabalho em torno do aplicativo.

    Mas é justo aí que está o risco.

    Não se pode, com a estrutura produtiva hoje existente, escapar da centralidade da informática e das telecomunicações. Se os “clássicos” viram (quando muito) o telégrafo e o telefone, nos temos diante de nós o ChatGPT, o Mechanical Turk, o Uber. Entender e saber usar C, Python, Go, MySQL, LLM, etc. não é o mesmo que aprender a caçar, pescar, criar gado, cozinhar o jantar, lavar e guardar a louça, escrever ou criticar.

    Se os “clássicos” não podem dizer nada quanto ao que temos diante de nós — exceto em termos muito genéricos, muito abstratos, pouco capazes de orientar qualquer ação concreta — cabe a nós a reflexão sobre o que temos diante de nós. (Este é um dos pontos fortes deste artigo, aliás.)

    “Massificar” a informática significa, entre outras coisas, “massificar” o aprendizado de uma ou várias línguas, de algoritmos estruturados, de seu funcionamento aplicado à produção. Diferentemente de certas técnicas que se podia aprender “na marra” (penso, por exemplo, em levantar paredes, ou em consertar o motor de um carro), a informática exige um aprendizado extremamente desgastante, abstrato e complexo, que não sei se se conseguiria massificar tão rapidamente. (Com “não sei” expresso somente dúvida; não se trata de nenhuma forma suavizada de negação ou rejeição.)

    Este é o fundamento do que tenho chamado de “devs do bem”, ou seja, uma categoria profissional (desenvolvedores de sistemas, programadores, cientistas da computação, etc.) que é capaz de controlar meios de produção por deter o conhecimento de certas técnicas inescapáveis para o próprio processo produtivo. Entre um “dev do bem” e um Mark Zuckerberg a diferença é apenas de intencionalidade, porque dominam (literalmente) as mesmas técnicas.

    Eis a raiz do problema: se trabalhadores precisam depender do julgamento ou da afinidade de alguém para controlar o processo produtivo, estamos fodidos. Na hipótese de um “dev do bem” ser “corrompido” pelo “lado obscuro da Força”, não resulta disso que ele tenha perdido seu saber técnico, sua capacidade de trabalho em informática, nada disso; resulta, somente, em que o “dev do bem” transitou de um lado a outro da luta de classes, aliás com enorme facilidade.

    Na minha leitura, é precisamente isto o que faz do “dev do bem” um gestor em gérmen, assim como também o foram os “técnicos” chamados de volta a seus postos pelos bolcheviques, quase cem anos atrás, quando os trabalhadores russos já os haviam escorraçado.

    Seremos capazes de escapar disso?

    Será talvez por isso que o texto limitou-se a indicar, como quem tateia o terreno, as cibernéticas proletárias e os sistemas virtuais de dissidência?

    Seriam esses questionamentos por demais abstratos para que tenhamos de nos ocupar deles neste momento?

    Não tenho respostas para nada disso. Sempre entendi que as melhores respostas são aquelas que encontramos em meio às lutas, mas até agora não consegui encontrar, em meio a qualquer luta social recente, problemas desta natureza sendo colocados.

    Talvez seja a hora de suscitá-los? Ou não? Não sei. Também não tenho respostas para isso. Só saberemos quando, em meio a lutas sociais, alguém abrir esta caixa de Pandora.

  3. arkx Brasil, agradecemos a referência. De fato passou batido por nós esse aprofundamento da questão da hipótese cibernética no comitê invisível, mas com certeza vamos atrás. Esse trecho que você compartilhou aí é bem interessante.

    Manolo, obrigado pelas provocações. Seu texto sobre a técnica levanta questões muito interessantes pra se pensar dentro desse nosso aqui. Se não nos ocupamos dessas questões, bem como com as de cunho infraestrutural como os servidores ativistas e outras infraestruturas de rede, de hardware de rede, etc. é porque de fato até aqui não tínhamos/temos muito a acrescentar além de simples apontamentos. Ao longo do texto defendemos a necessidade de “repensar as formas como os sistemas são feitos”, e de aproximar o “usuário final” do processo de desenvolvimento. Isso implicaria transformar o “usuário final” em um programador ou haveria aí outra forma de quebrar essa barreira técnica sem a necessidade de um conhecimento aprofundado no assunto? Os avanços da tecnologia hoje facilitam muito a capacidade de programar. O que antes te requeria um conhecimento profundo sobre o hardware, foi abstraído a ponto de que hoje você não precisar ter conhecimento algum – ou muito pouco – sobre ele, podendo se preocupar inteiramente com a camada do software (isso por sua vez tem outras implicações relativas à segurança, privacidade, etc.). Há debates sobre qual a melhor linguagem de programação para introdução – como por exemplo quem defende C contra quem defende Python: Enquanto C é uma linguagem que tem um nível mais alto do que, por exemplo, o Assembly, ele ainda é uma linguagem de baixo nível se comparado com o Python, o que requer certo conhecimento de hardware. Já em Python você tem um linguagem de muito mais alto nível de forma que você pode se preocupar apenas com o seu objetivo, levando os defensores de C a argumentarem que ao aprender a programação em C você adquire um conhecimento mais geral da computação tanto em nível de software como de hardware, e os que defendem Python geralmente argumentarem que por ser mais simples e fácil de aprender, seria uma forma de entrada mais popular e acessível. Outras linguagens obviamente também fazem parte desse debate. Há também os adeptos do No-Code, que antes do Chatgpt já enchiam as comunidades de desenvolvedores como profetas do fim do mundo pregando o fim das linguagens de programação e o começo da era da programação sem código (e se tornando piada dentro das comunidades). E hoje, mais recentemente, tem o Chatgpt que gera pra você códigos em segundos (embora ainda precise ter algum conhecimento pra corrigir algumas coisas, ou usar para gerar códigos em parte e depois unir – o grande segredo na real tá na engenharia de prompt, mas pra linguagens ou bibliotecas menos populares o chatgpt é de fato horrível e cheio de erros, justamente por seus conteúdos serem mais escassos). Enfim, as abstrações técnicas podem hoje ser um bom ponto de entrada pra essa “quebra de barreira” e abrir as portas pra um aprofundamento posterior.

    Agora, um outro ponto que trouxe bastante reflexão foi essa questão da técnica e o surgimento de uma tecnocracia – que a gente busca combater no texto, mas que não elabora também. Um dos pontos levantados quando estávamos escrevendo esse texto foi “como inibir a formação de uma tecnocracia já no processo de desenvolvimento de novas cibernéticas proletárias?”, mas entendemos que até este momento não temos como apresentar nada e que talvez apenas as experiências reais poderiam trazer elementos pra se pensar, então apontamos apenas, e de forma muito genérica, para a necessidade de “estruturar comunidades pulsantes de desenvolvedores e encontrar formas de envolver os trabalhadores não-desenvolvedores na elaboração de novas ferramentas e sistemas socializantes”. Mas aproveitando suas provocações, acho válido compartilhar aqui duas experiências distintas das quais tivemos contato e conhecimento, relacionadas à adoção de técnica – que esperamos ver publicadas, embora não dependa da gente – que de certa forma tratam o domínio da técnica não como forma de dominação mas, a nosso ver, de submissão.

    A primeira é de um pequeno grupo de militantes que se envolveu no movimento de entregadores de uma cidade à partir da criação de materiais para as lutas da categoria. Esses materiais chamam a atenção de um grupo de trabalhadores que se aproxima desses militantes e eles resolvem criar um coletivo juntos. Se em um primeiro momento os trabalhadores da categoria e os militantes todos dividiam as funções, criavam juntos os materiais, etc. o trabalho de produção de material foi cada vez ficando mais com os militantes. Enquanto surgia no coletivo uma burocracia da categoria, os militantes foram cada vez mais assumindo um papel de trabalhar para o coletivo, sempre correndo atrás de materiais e sendo cobrados por eles, enquanto que as decisões dos rumos do grupo passou a se concentrar cada vez mais em um ou dois trabalhadores da categoria. Resultado: os militantes – os que dominavam a técnica – passaram a se tornar tarefeiros e cada vez mais alienados dos processos de fato decisórios do coletivo, uma vez que ele acabou se burocratizando e fez surgir os donos do coletivo.

    A segunda é de um grupo de militantes, um pouco maior que o primeiro, que se aventurou a criar um aplicativo com o objetivo de agregar o que eles sentiam faltar nos aplicativos convencionais utilizados em processos de luta e de organização. Com a experiência, buscaram investigar algumas formas de uso dos aplicativos convencionais por trabalhadores de algumas categorias pra, aí então, tentar extrair um ponto comum que pudesse se transformar em um novo aplicativo. A preocupação desse grupo sempre foi em quebrar a barreira técnica, envolvendo todo mundo no processo de elaboração do aplicativo (as funções, a estética, as entidades, as relações, etc.) de modo que só sobraria o trabalho de passar todas as decisões do papel para o código. Mas aí é que veio o problema. Ao invés da técnica se impor e apresentar-se de forma unilateral, foi escanteada a ponto de que aqueles que a dominavam se tornaram um impasse pro futuro do projeto simplesmente porque eram muito poucos e tiveram que assumir uma carga enorme de trabalho, o que se provou inviável. A experiência então foi simplesmente abandonada.

    O domínio da técnica realmente é algo que merece mais atenção, cuidado e reflexão. Ele tem essa dupla expressão, ora como forma de dominação, ora como forma de submissão. Parece que a gente precisa encontrar um meio termo aí, e daí, pensando agora, parece que esse meio termo aí passa sim por uma popularização do domínio da técnica, mas também pelo domínio de popularização da técnica, ou seja, tanto generalizar quanto simplificar.

  4. apareceu nos comentários algo que fiquei pensando quando li o texto. A autogestão enquanto processo impulsado pelas bases exige mecanismos de tomada de decisão participativos e igualitários. As assembleias das poleis gregas são a grande referencia, mas é provável que antes mesmo do período clássico grego, em outras partes do mundo, tenha ocorrido experiencias parecidas.
    Agora, uma coisa chama a atenção nesse novo período de lutas que estamos vivendo. Se no ciclo anterior, onde vimos um auge das lutas dentro das empresas, as assembleias nos próprios lugares de trabalho eram um dos principais símbolos de rebeldia contra a exploração, facilmente desencadeando em ocupações, modificações selvagens e espontãneas do regime de trabalho, etc, nas atuais lutas “de rua” o que parece haver desaparecido por completo são justamente as assembleias.
    De fato, nada melhor do que o sentimento de indignação para promover a ação de massas sem que essas mesmas massas tenham sido parte da construção coletiva e política das ações. As mobilizações são convocadas de forma quase unilateral, na base da viralização, e parecem incapazes de acumular forças e assim persistir no tempo em quanto organização de trabalhadores.
    Deixo aqui também minhas dúvidas a respeito de como é possível que os trabalhadores de fato decidam coletivamente sobre suas lutas ou sobre os processos produtivos nos quais participam.

  5. 《Aqui surge a famosa “questão da técnica”, zona de cegueira no movimento revolucionário de hoje.

    Tecnofília e tecnofobia formam um par diabólico unido por essa mentira central: que uma coisa como “a” técnica existiria. Poder-se-ia, ao que parece, fazer a divisão, na existência humana, entre o que é técnica e o que não o é.

    Mas não: basta ver em que estado inacabado nasce a cria humana e o tempo que leva para conseguir mover-se no mundo ou para falar, para nos darmos conta de que a sua relação com o mundo não é de modo algum dada, mas antes o resultado de uma enorme elaboração.

    A relação do homem com o mundo, visto que não advém de uma adequação natural, é essencialmente artificial, técnica, para falar grego.

    Neste sentido, o capitalismo é essencialmente tecnológico: é a organização rentável, num sistema, das técnicas mais produtivas. A sua figura cardinal não é o economista, mas sim o engenheiro.

    A figura do hacker opõe-se, ponto por ponto, à figura do
    engenheiro. Onde o engenheiro captura tudo o que funciona para que tudo funcione melhor, para o colocar ao serviço do sistema, o hacker pergunta-se “como é que isto funciona?” para encontrar as falhas, mas também para inventar outras utilizações, para experimentar.

    Experimentar significa então: viver o que implica eticamente esta ou aquela técnica. O hacker vem arrancar as técnicas ao sistema tecnológico, libertando-as.》
    “FUCK OFF GOOGLE”, Comitê Invisível

    A questão de fundo deste artigo são as técnicas, em particular aquelas compondo a Tecnologia da Informação.

    A questão específica é como os trabalhadores da área de TI podem contribuir para avançar a Luta de Classes, através do desenvolvimento não só de aplicativos como mesmo de novas técnicas.

    Pensar, pensar, pensar… Era como dizia um grande amigo, a cada vez que se defrontava com um dos muitos desafios da arte de escrever código.

  6. Lucas, muito dessa “ausência de assembleias” tem a ver com a proliferação de aplicativos de comunicação instantânea, em especial os grupos de Whatsapp. Não explica tudo, mas tem algo a ver.

    Imagine um grupo de Whatsapp como uma assembleia permanente, mas realizada numa sala fechada e cheia de câmeras, cujas imagens e áudio são transmitidas direto para a polícia. Parece que andam usando muito a primeira parte do exemplo (“assembleia permanente”) sem prestar atenção na segunda parte (“realizada numa sala fechada e cheia de câmeras, cujas imagens e áudio são transmitidas direto para a polícia”).

    Mas a questão, fazendo seu comentário dialogar mais proximamente com o assunto do artigo, é que o grupo de Whatsapp é a forma das assembleias quando o lugar de trabalho é disperso e a única socialização que existe, ou a principal, é por meio deles. Motorista de Uber, entregador de iFood, motoboy da Rappi, “prestadores de serviços” da GetNinjas, todos estão submetidos a um regime de gestão onde sua presença física num mesmo local de trabalho, sob supervisão direta de gestores, não é mais elemento central. Por outro lado, é no grupo de Whatsapp onde circulam o salmo, a mensagem de bom dia, o gemidão, as notícias, as informações sobre os lugares mais perigosos, os pedidos de ajuda… e às vezes mesmo as próprias ordens e comandos de gestores e patrões, desses que cobram prazos às 11h da noite e relatórios no domingo.

    É dessa ambiguidade no uso da tecnologia que o artigo trata, é ela que se discute, é ela que problematizamos, porque é esta a condição em que nos encontramos.

  7. De como os trabalhadores da área de TI podem contribuir para avançar a Luta de Classes

    Caso concreto: Bloqueio judicial do Telegram no Brasil.
    Contenção de danos: Usar um proxy ou VPN, como o Orbot (outras sugestões?).
    Reformismo: Contestar juridicamente o bloqueio, acompanhado de uma ampla mobilização dos usuários.
    Ação Revolucionária: Incorpora as anteriores e avança num processo de Autonomia de meios de comunicação, tanto em relação ao software quanto, principalmente, ao hardware.

  8. Lucas, como Manolo e também o arkx, de certa forma, apontaram pensamos esse artigo muito mais na perspectiva da dúvida do que da certeza. Então não temos como dizer como as Cibernéticas Proletárias podem possibilitar instâncias de decisão coletiva sobre os caminhos que devem seguir as lutas dos trabalhadores ou a forma com que devem organizar os seus processos coletivos. Também não entendemos que necessariamente uma ferramenta cibernética pode vir a se tornar uma forma de “organização”. O que sabemos, no entanto, é que as formas organizativas, muitas daquelas em que se reuniram parte dos operários de fábrica no período que tu mencionas, não deram certo. Muita coisa foi dita e escrita a respeito de como partidos e sindicatos se burocratizaram e funcionam como correia de transmissão do Kapital no meio dos trabalhadores, não nos cabe aqui explorar isso.

    Não somos exatamente assembleistas, embora entendemos a importância desses processos de reunião e decisão coletiva. Manolo fez menção aos grupos de WhatsApp como um assembleia permanente, o que de fato ocorre e é facilmente mapeado pelo Kapital, algo como uma assembleia em que, se não a polícia, como bem disse o Manolo (e não nos parece que esteja sendo alarmista, uma vez que qualquer um sabe a facilidade de se infiltrar em grupos de zap de categorias diversas hoje – se os militantes fazem isso, porque acreditar que a polícia não?), o Kapital é que fica com o registro das atas e decisões. Na ideia de “desenvolver as Cibernéticas Proletárias” poderíamos sim pensar em um app ou vários que podem ter essa função de se tornar uma “assembleia permanente” em que uma determinada categoria discute suas necessidades, prepara suas lutas, faz balanços das poucas vitórias e das muitas derrotas (sempre parciais) só que neste caso sem a dominação e controle direto do Kapital. A existência desses aplicativos não deveria substituir e muito menos impedir que os trabalhadores se reúnam em seus locais de trabalho de forma presencial – que no caso dos trabalhadores de app não é mais na fábrica, mas em algum espaço público pra tomada de decisão – muito pelo contrário, da forma que pensamos esses aplicativos poderiam funcionar como uma infraestrutura digital pra essas formas não-virtuais, as possibilitando e as fortalecendo.

    De novo, não entendemos que um app ou outra ferramenta cibernética seja “a organização de trabalhadores do futuro”, mas essas estruturas também podem funcionar como um “lugar de permanência” de processos de luta que se encerraram – como o caso de uma greve – permitindo que os trabalhadores façam um balanço do processo derrotado ou vitorioso e se mantenham em contato ainda que não diretamente físico como seriam o caso de reuniões presenciais, como também de base de apoio para processos futuros. Essas coisas já existem hoje, de forma muito fragmentada, aos trancos e barrancos, e com todas as problemáticas aqui já apresentadas (segurança, dispersão, etc.). A questão que nos parece ser interessante pensar é de que forma fortalecer essas experiências já existentes de modo a elevá-las a um próximo nível. Desse modo não achamos que a questão específica do texto seja “como os trabalhadores da área de TI podem contribuir para avançar a Luta de Classes, através do desenvolvimento não só de aplicativos como mesmo de novas técnicas” como disse o arkx (embora esse ponto esteja sim no texto), mas de que forma apreender essas formas radicais e criativas que estão em uso e são – de certa forma – construídas hoje pelos trabalhadores em suas experiências de luta e organização e potencializá-las.

    Aqui entra um ponto importante que talvez possa trazer algo a se pensar sobre domínio da técnica e abstração da técnica: Ao contrário do trecho compartilhados pelo arkx do Comitê Invisível, que coloca Engenheiro X Hacker, nas cibernéticas proletárias nós identificamos ambas as perspectivas, que se impõe em dois níveis diferentes, ou como colocamos no texto em dois movimentos: o movimento composicionista e o decomposicionista. Desse modo, identificamos que o “engenheiro” é o que identificamos como o movimento composicionista, enquanto o “hacker” se vê representado no movimento decomposicionista. Isso nos leva a pensar que os trabalhadores atuam como engenheiros no desenvolvimento de suas cibernéticas – não a nível de ferramentas individuais, mais a nível de articulação e integração dessas ferramentas várias, já existentes e disponíveis. Ou seja, é no nível da abstração dos aplicativos concretos e já existentes que os trabalhadores atuam de forma criativa na elaboração de suas redes e das infraestruturas digitais pro seu trabalho e pra organização e luta com seus colegas de trabalho. Há uma série de processos e de protocolos, que são criados pelos diversos grupos de trabalhadores na interação com os diversos aplicativos e ferramentas disponíveis.

    Tentando apresentar a coisa de forma mais material com um exemplo: um motorista de aplicativo que acabou de entrar em um grupo de whatsapp de motoristas e para ser aceito no grupo teve que apresentar um print do seu cadastro no aplicativo, provando que é de fato quem diz ser. O grupo também pede que todos instalem um aplicativo de Walkie-Talkie e mantenham-no ligado enquanto estiverem trabalhando, para aumentar a capacidade de articulação e comunicação rápida em caso de algum contratempo. O mesmo é pedido em relação ao compartilhamento de localização em tempo real – que necessita de outro aplicativo uma vez que ele é mais potente que o compartilhamento do zap, já que que possibilita que todo mundo veja todo mundo que está compartilhando sua localização ao mesmo tempo – , com o mesmo objetivo do grupo poder agir de forma rápida e precisa em caso de algum problema com um colega. O grupo também serve como um local de apoio e dicas, onde os participantes informam os melhores pontos pra ir, os que devem ser evitados, os problemas identificados, as estratégias de burla, etc.

    Não seria esse o caso de uma “engenharia de alto nível”, de pura manipulação de aplicativos diferentes, mas que juntando suas funções abrem novas possibilidades de organização e de apoio mútuo? Não teriam as cibernéticas proletárias aí se apresentado enquanto infraestrutura virtual potencializando a organização desse grupo de trabalhadores?

    Realmente não temos certezas, mas acreditamos nessa criatividade, na criatividade que os trabalhadores já demonstraram ter em outros períodos de luta, como outras formas dessa “engenharia organizacional”, assim foram com os comitês e ocupações de fábrica na tentativa de burlar fortes organismos de repressão dentro e fora das fábricas, ou mesmo para permitir que a produção seguisse sob o controle – técnico – dos trabalhadores. Hoje parece que os trabalhadores tem cada vez mais utilizado essa criatividade no manuseio e mesmo manipulação das cibernéticas para seus objetivos de facilitar, e tornar mais seguro e suportável seu trampo cotidiano mas essa criatividade também tem sido utilizada em processos de luta. E nela que apostamos.

  9. Grevo de Vergere,

    Os textos do Comitê Invisível (e anteriormente do Tiqqun) muitas vezes apresentam uma grave deficiência, na qual você não incorre em suas postagens aqui.

    Faltam exemplos concretos naqueles textos (muito embora às vezes citem depoimentos enriquecedores), enquanto você sempre tem recorrido a eles. E isto é muito legal!

    Quando me referi a 《a questão específica é como os trabalhadores da área de TI podem contribuir para avançar a Luta de Classes》, isto não implica em assumir protagonismo.

    Os trabalhadores devem sempre ser os protagonistas da luta geral contra o Capitalismo e, ao mesmo tempo, da caminhada no rumo do pós-Capitalismo.

    Além disto, todo desenvolvimento de software, para ser bem sucedido, deve ser um trabalho conjunto com o usuário final. Mesmo quando é um empresário quem o demanda, sem uma interlocução direta, próxima e constante com o usuário, o fracasso é certo. Aliás, este costuma ser a principal causa dos conhecidos problemas na área de desenvolvimento de sistemas.

    Por sua vez, as técnicas incorporadas nos meios de comunicação são o tecido conjuntivo das lutas. Sem elas, o corpo das lutas não para em pé, de nada adiantando o esqueleto e a musculatura.

    Não por outro motivo Lênin estabeleceu a publicação de um jornal como um ponto do que fazer. Hoje os meios de comunicação são muito mais poderosos, também conhecemos a terrível consequência histórica do leninismo.

    Qual a função, para o avanço da Luta de Classes, das técnicas compondo a Tecnologia da Informação?

    A partir dos exemplos concretos citados no artigo, cabe (sem dúvida!) indagar: 《Não teriam as cibernéticas proletárias aí se apresentado enquanto infraestrutura virtual potencializando a organização desse grupo de trabalhadores?》

    Claro! Com toda certeza.

    Por isto mesmo os trabalhadores da área de TI devem acompanhar, participar, interagir e contribuir com este processo. Tanto no plano prático como no teórico.

    Exato como você demonstra estar fazendo.

  10. Texto muito bom. Até que ponto você acha que a cibernética proletária pode se transformar em cibernética comunista ? Temos um horizonte na nossa frente ?

  11. DÚVIDAS METÓDICAS (VISANDO À PRÁXIS)
    Cibernéticas proletárias ou usos proletários (digamos revolucionários-proletários, quiçá insurrecionais) da cibernética?
    Cibernética comunista ou autogestão cibernética na & da comunidade humana mundial?

  12. João Pedro, essa é a pergunta que nos fazemos. A capacidade criativa dos trabalhadores de articularem ferramentas digitais na formação de suas redes para suportar o trabalho ou lutar contra ele teriam possibilidade de apontar pra autogestão social? Só a aceleração dessas formas aí podem nos apontar algum horizonte nesse sentido.

    Ulisses, em relação ao “Cibernéticas proletárias ou usos proletários (digamos revolucionários-proletários, quiçá insurrecionais) da cibernética?”, da forma como colocamos entendemos as duas questões de forma unificada porque para nós, na identificação das cibernéticas proletárias, criação e subversão são complementares. Se no movimento decomposicionista identificamos a subversão enquanto sabotagem (aqui mais focado em ferramentas individuais), no movimento composicionista identificamos subversão enquanto criação (aqui mais focado na adoção de um conjunto de ferramentas, de criação de uma cibernética não no sentido de elaboração de um aplicativo por si só, mas da articulação de diversas ferramentas independentes entre si para a elaboração de um novo “sistema” – fracionado, independente, contendo ferramentas proprietárias, etc, mas ainda assim um novo sistema.
    Em relação ao “Cibernética comunista ou autogestão cibernética na & da comunidade humana mundial” pra nós também são a mesma coisa porque esse é comunismo cibernético que defendemos, por isso mesmo apresentamos algumas perspectivas do socialismo/comunismo cibernético para depois, brevemente lá no final, tentar traçar a nossa visão disso. A preocupação com as cibernéticas proletárias, e com as infraestruturas de dissidencia (que fazem parte das ciberneticas proletárias), parte da preocupação em como resolver o problema do cálculo econômico sem recorrer aos Estados e mercados, de modo a garantir a autogestão social. Acreditamos que isso pode ser possível através de um planejamento econômico descentralizado que faça uso da cibernética, dos sistemas digitais, mas nos perguntamos como construir isso e de que forma o que já existe hoje pode ser aproveitado e potencializado.

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