A difusão de técnicas é uma condição para a autogestão plena, e uma condição pouco debatida. Por Manolo

Em 2013, em debates havidos entre alguns movimentos sociais a respeito do papel da técnica na luta pela autogestão, surgiram algumas questões interessantes sobre as condições para a autogestão plena da sociedade. Resumo aqui algumas das ideias que apresentei nestes debates. Tudo ainda provisório, carente de maior verificação, mesmo porque de 2013 para cá não retornei ao tema, mas sua importância justifica que mesmo estas hipóteses iniciais e conclusões provisórias sejam compartilhadas, para provocar um debate e verificar sua adequação.

1.

Antes de começar, um esclarecimento sobre o uso de algumas palavras.

Autogestão, aqui, não se refere às incontáveis iniciativas associativistas, cooperativistas, comunitárias ou de grupos de afinidade que têm equivocadamente usado o nome de “autogestionárias” nos últimos tempos, qualquer que seja seu porte; refere-se à gestão direta da produção econômica, cultural, etc., por parte de toda a sociedade. É um horizonte estratégico de luta, um projeto político de longo prazo, uma meta a alcançar.

Chamo de técnica aqui aos saberes e gestos que resultam na produção de um objeto, seja ele material, simbólico ou afetivo. Estas técnicas não existem no vazio, mas sim inseridas numa malha de relações sociais que lhes dão algum sentido, alguma razão, algum motivo. A esta malha chamo tecnologia.

Deste modo, uma “técnica” pode existir há milênios, mas seu significado social só é plenamente entendido ao se analisar a tecnologia de dado momento histórico, ou seja, o quadro mais amplo de relações entre técnicas diferentes e os resultados desta interação entre técnicas – os produtos. Exemplos: (a) a técnica de fazer rodas é plurimilenar, mas uma coisa é a roda de um carro de boi, outra coisa é a roda de um ônibus; (b) a técnica de levantar paredes é antiquíssima, mas uma coisa é levantar as paredes de uma casa, outra é levantar as paredes de um castelo, e outra completamente diferente é levantar as paredes de uma mansão.

Quando falo de técnicas, é evidente que não falo de coisas soltas no ar. Estas técnicas são parte de processos de produção de bens (materiais, simbólicos ou afetivos), que para existirem enquanto tal precisam de meios para que sejam produzidos. E estes meios de produção, no capitalismo, estão violentamente concentrados nas mãos de membros das classes capitalistas, qualquer que seja seu porte: do dono do mercadinho de bairro à maior das transnacionais do varejo, da dona de uma pequena fábrica de camisetas às maiores redes globais de confecção, etc. Voltarei a isto adiante, mas para já é o que basta.

Some-se a isso o fato de que uma técnica não aparece por si própria, mas porque alguém a cria e outros tantos a instituem a partir de sua execução. Sem trabalhadores que a executem, uma técnica não passa de teoria.

2.

Como a discussão a respeito do papel da técnica surgiu também entre movimentos que lutam em torno da gestão do transporte público, foi natural que ele fosse tomado como ponto de partida para uma discussão a respeito da técnica. Falava-se da necessidade de entender como funcionam planilhas tarifárias, IPK, planejamento de linhas, etc., e o quanto isto poderia ser um entrave – não às lutas, mas à autogestão no setor.

Mas vejamos o transporte público a partir da perspectiva da difusão de suas técnicas de produção para observar que entraves e que desafios a técnica coloca às lutas pela autogestão.

O transporte público é feito a partir de técnicas relativamente recentes. Quando digo “relativamente recentes” falo em termos de história pensada em longo prazo, em muito tempo, em séculos, porque é nesta perspectiva que podemos analisar a difusão de técnicas.

As técnicas que estão envolvidas no transporte público são de menos de duzentos anos. As primeiras experiências de transporte público de massa em meio urbano são da década de 1820. E não são técnicas estáticas, pois, por exemplo, enquanto os primeiros bondes e ônibus eram uma variação da carruagem, os metrôs modernos, maglevs e outros meios atuais envolvem técnicas bastante diferentes. Da mesma forma, embora existam cartas de horário desde 1839, a técnica de gestão de um sistema de transporte coletivo da forma como existe hoje só começou a ser desenvolvida por volta de 1940.

Acontece que o número de profissionais envolvidos no transporte público (dos motoristas aos gerentes, do mecânico ao engenheiro de tráfego) é relativamente pequeno em comparação com a população das cidades onde trabalham, então é de se esperar que velocidade da difusão das técnicas relacionadas com o transporte público seja muito baixa.

3.

Que quero dizer com isso?

Que, qualquer que seja o estado em que se encontram as lutas dos trabalhadores (e não considero aqui a mera justaposição de lutas de categorias profissionais diferentes, mas sim as conquistas que a totalidade articulada destas lutas impõe aos capitalistas como um todo), a difusão de técnicas é uma condição para a autogestão plena, e uma condição pouco debatida.

Que só quando um número enorme de pessoas entende como a aplicação de tal ou qual técnica dentro de determinado quadro tecnológico resulta no produto X ou no produto Y é que se torna possível a este número enorme de pessoas gerir as técnicas de um processo de produção, seja como trabalhadores, seja como consumidores. Não é necessário que tal entendimento seja minucioso, mas o suficiente para saber que “se eu fizer isto, dá num resultado, e se eu fizer esta outra coisa, dá outro resultado”.

Qualquer tentativa de promover a autogestão plena num sistema de produção em que as pessoas envolvidas não dominem minimamente as técnicas envolvidas na produção resulta na continuidade do papel do gestor. Tal como os entendo, os gestores não são apenas técnicos, ou seja, aqueles que entendem do assunto e têm autoridade quase inquestionável no campo da produção (algo incontornável nas condições atuais); são, na verdade, aqueles que usam este conhecimento para controlar os processos de produção e para integrar mais profundamente todos os elos de uma mesma cadeia produtiva, ou em cadeias produtivas diferentes.

Usei até o momento o setor do transporte público como campo de verificação do que digo, mas o estágio da difusão das técnicas de produção podem ser verificadas também em outros setores. Como este debate também foi travado com pessoas ligadas a movimentos de luta por moradia, vejamos o exemplo da construção civil.

A depender do porte da obra, um só canteiro pode chegar a envolver a mesma quantidade de trabalhadores que todo o sistema de transporte público de uma cidade inteira. Resultado disso: nos bairros onde residem os trabalhadores nas grades cidades e nas metrópoles é facílimo achar serventes de pedreiro, mestres de obras, etc., com experiência inclusive em construções de grande porte. Em cidades de menor porte e em territórios marcadamente rurais, por outro lado, é comum que gente que não é profissional da construção civil saiba levantar casas inteiras ou fazer pequenos reparos domésticos. Mesmo em cidades de grande porte, na hora de instalar um chuveiro elétrico ou trocar a resistência, por exemplo, quem não sabe chama um vizinho, e não um eletricista; se a tubulação entupiu, logo aparece alguém sugerindo jogar água fervente e soda cáustica. Se precisa puxar uma extensão porque faltou uma tomada, não há quem não conheça alguém que saiba parafusar os fios no plugue macho e no plugue fêmea.

Consequência disso para o movimento de luta por moradia: dada a difusão das técnicas da construção e manutenção de casas, se te falta casa, a solução mais rápida não é apenas e unicamente chamar uma empreiteira para construir uma, mas, entre outras, achar um terreno vazio, ocupá-lo, levantar a casa (mesmo que com materiais precários), puxar gato de energia e água, etc. O resto é formalidade, burocracia cartorária e problema político para os latifundiários urbanos, para os gestores públicos e demais capitalistas envolvidos.

O mesmo acontece na luta pela reforma agrária. As técnicas de plantio, de manejo de solo, de irrigação, de lida com gado, etc., encontram-se hoje extremamente massificadas no campo, porque séculos e séculos de vida rural criaram as condições para que milhões de pessoas as aprendessem, até mesmo como forma mais imediata de subsistência. Resultado disso: mesmo nas grandes cidades como Salvador ainda é possível achar gente que planta ao menos os temperos em casa, e com isso economiza na feira da semana. Consequência: trabalhadores rurais sem-terra sabem que a ocupação de terras é uma alternativa para suas lutas, pois a terra é o que precisam para produzir. Se depois precisarão de técnicos agrícolas para aprender novas técnicas e aumentar sua produtividade isso é outra história.

4.

Voltando ao transporte, as técnicas que resultam no transporte de pessoas de um lugar para o outro ainda não estão massificadas. Primeiro, porque são historicamente recentes. Segundo, porque envolvem número bastante reduzido de trabalhadores. Se estas duas condições já são suficientes para travar a difusão destas técnicas, a situação piora mais ainda porque os passageiros são colocados num papel absolutamente passivo diante das técnicas do transporte. Quem está no ponto de ônibus esperando há mais de meia hora sente que precisa de mais veículos rodando, e é esta uma das reivindicações mais recorrentes nos movimentos de bairro; mas a falta de difusão das técnicas do setor pode fazer com que esta reivindicação seja a causa de outros problemas, ao invés de uma solução.

A difusão da técnica da eletricidade, por exemplo, faz com que seja fácil entender que pegar em microfone estando descalço pode levar a choques. A difusão da técnica da construção civil faz com que seja fácil entender que parede torta pode trincar ou cair. Mas o que sabemos de técnica de transporte para saber quais as consequências de botar mais e mais ônibus na rua? Quase nada.

E isto não acontece porque faltou tentativa e erro, o compartilhamento destas experiências, etc. – em suma, porque faltou a prática. A prática existe, e a experiência que dela deriva já é bem sistematizada. Isto acontece por outras razões.

Falei lá em cima que as técnicas existem dentro de processos produtivos, indissociavelmente coladas aos meios de produção. Retomando a construção civil como campo de observação, por mais que os meios de produção continuem violentamente concentrados no setor, milhões de pessoas tiveram acesso a eles enquanto trabalhadores, e muitas das ferramentas usadas nestes setores estão à disposição em qualquer loja de ferragens ou de material de construção. O nó, nos dois casos, é o acesso à terra, que persiste concentrada nas mãos de latifundiários, de imobiliárias, etc.

E mesmo as ferramentas a que qualquer um pode ter acesso não são aquelas necessárias para a produção em larga escala, que resultam em alta produtividade; são aquelas que foram sendo progressivamente abandonadas nos setores mais produtivos e lucrativos da economia. Estas últimas prosseguem violentamente concentradas nas mãos de poucos. E se insisto em dizer que são “violentamente concentradas” é porque o acesso a tais ferramentas mais produtivas é disciplinado, regulamentado, medido, controlado à mão-de-ferro, etc., por empresas transnacionais, latifundiários e todo tipo de classe capitalista. Não é por outro motivo, por exemplo, que existe segredo industrial e guerra de patentes.

Na medida em que o único papel do passageiro no transporte é entrar, pagar e sair em seu destino, seu contato com as técnicas de gestão do transporte é ínfimo. Na medida em que um ônibus custa entre R$ 100.000,00 a R$ 150.000,00 – ou seja, o valor de uma casa – são poucos os que podem ter um veículo para experimentar, para tentar e aprender errando. No setor do transporte, a concentração dos meios de produção é total. Daí a difusão ser ainda mais dificultada.

5.

Aqui a pergunta inicial é retomada: a técnica é ou não um entrave à autogestão?

A meu ver, não. Autogestão sem luta é concessão. Li recentemente um livro interessantíssimo chamado Autogestão: participação dos trabalhadores na empresa, de Paulo Nogueira Filho. Ele foi um dos grandes industriais brasileiros da década de 1920, envolveu-se na Revolução de 1930 (que levou Getúlio Vargas ao poder), depois envolveu-se na rebelião paulista de 1932, foi exilado, voltou ao Brasil em 1945 e já em 1946, como deputado constituinte, defendeu a autogestão como sistema de organização da produção no Brasil. Ele, um industrial. Ele, um dos primeiros a trazer a “organização científica do trabalho” para o Brasil, ainda na década de 1920. Ele, que pregava a necessidade de implementar a autogestão na economia brasileira “antes que os agitadores comunistas o façam” (as palavras não são dele, mas este é seu sentido).

Autogestão se faz na luta. E se a técnica é um dos obstáculos, conquistar a técnica também é uma meta de luta. Mas como fazê-lo? Como implementar autogestão sem massificar, por exemplo, as técnicas de produção do transporte? Fazendo oficinas e cursos preparatórios?

Não.

Pelos passageiros, autogestão se faz na luta contra o cancelamento de linhas. Na luta pela abertura de novos terminais. Na luta contra a abertura de novas vias que privilegiam o automóvel (Linha Viva e Avenida Atlântica, por exemplo). Na luta contra a superlotação. Na luta contra o assédio sexual dentro dos veículos coletivos. Na luta contra modelos de concessão que aumentam a taxa de lucro das empresas sem qualquer benefício concreto para os passageiros. Na luta contra os aumentos de passagem. Na luta pela renovação da frota. Na luta pela implementação de novos modais de maior capacidade (BRT vs. VLT vs. metrô, por exemplo). Na luta pela definição dos trajetos dos modais (Paralela vs. Cajazeiras, por exemplo). Na luta pela composição dos itens da planilha tarifária.

Pelos rodoviários, autogestão se faz na luta por melhores condições de trabalho. Na luta contra as cartas de horário que não levam em conta o tráfego e os engarrafamentos. Na luta pela redução de ruído do motor dentro dos veículos. Na luta contra a eliminação dos cobradores nos micro-ônibus. Na luta por maiores intervalos de descanso entre uma viagem e outra. Na luta por melhor infraestrutura (banheiros, etc.) nos finais de linha. Na luta contra o pagamento pelo rodoviário das multas de trânsito. Na luta por participação nos lucros e resultados da empresa. Na luta por melhores condições de trabalho noturno.

Cada um destes elementos das lutas de passageiros e de rodoviários toca algum elemento da técnica dos transportes. E muitas vezes toca não somente no sentido da reivindicação imediata, mas também no de saber porque aquilo que é tem que ser do jeito que é, e não de outro. Mas estes elementos parecem isolados entre si. Vendo as coisas pelo ângulo da difusão das técnicas, é como se alguém lutasse por melhores instalações elétricas enquanto outro luta pela aprumação de paredes sem saber que todos juntos lutam pela construção de melhores casas.

A meu ver, para além do apoio irrestrito às lutas populares por transporte e mobilidade urbana, o pano de fundo de nossa atuação nas lutas por transporte e mobilidade – e acho que devemos participar de todas elas, indiscriminadamente – é a tentativa de sistematização das experiências de luta, para devolver esta sistematização aos que lutam. Aprenderemos todos neste processo, porque só assim contribuiremos efetivamente para a difusão das técnicas do transporte público. E só assim, creio eu, contribuiremos eficazmente enquanto movimento social, pois de outro modo terminaremos sendo apenas apoiadores de lutas alheias. Do contrário, as lutas podem ter como resultado imediato a conquista da pauta reivindicada, mas terão contribuído pouquíssimo para a difusão da técnica, condição fundamental, a meu ver, para a construção da autogestão.

Claro que temos lutas próprias. Dificilmente outros movimentos sociais se debruçariam sobre o edital de transporte, por exemplo. Ou pautariam projetos de lei de iniciativa popular para regulamentar o transporte coletivo. Mas estas lutas próprias não existem porque, como no caso dos movimentos dos técnicos do setor, somos “iluminados” que querem “o melhor para o povo”. Elas existem porque buscam ligar estas lutas “técnicas” com reivindicações populares. E existem na tentativa de massificar ao máximo a técnica, até o momento em que sejam apropriadas pelo maior número possível de pessoas.

3 COMENTÁRIOS

  1. Manolo, esta é uma questão que tem me afligindo há muito, mas que por diversos motivos não tive ocasião de sistematizar em uma publicação. Como você mesmo aponta, é uma reflexão inicial, mas que urge ser posta e reposta no âmbito dos mais diversos movimentos sociais que não pretendem se constituir em instâncias de tutela dos lutares. O controle das técnicas (com o vislumbre de desenvolvimento de novas tecnologias de relacionamento entre trabalhadores e técnicas) é condição material indispensável à abertura de novos campos e espaços de luta, me deixando por isso inteiramente de acordo com suas colocações. Em verdade, na esteira da forma como expôs aqui a questão, me parece claro que o caráter eminentemente objetivo do debate sobre a técnica (quanto aos seus horizontes de realização) nos movimentos sociais transforma esse “campo” de lutas espaço privilegiado para articulação entre setores de trabalhadores menos produtivos (de mais-valia absoluta) com os outros educados para produção em regime de mais-valia relativa. Tal aspecto traz esse debate ao centro do que acredito ser um dos maiores nós das lutas contemporâneas, posto que a fragmentação dos trabalhadores é marca distintiva de nosso tempo. Além do mais, creio que este espaço de lutas tem também potencial na arregimentação de outros eventuais lutadores desgastados pelas constantes disputas meramente ideológicas entre os diversos agrupamentos militantes (aspecto que é de certa forma secundário frente ao proposto pelo texto). De toda forma, não posso deixar de perceber as oposições ativas a um projeto deste tipo, que variariam entre os vários capitalistas de ontem e hoje, mas que também encontraria nos vários identitarismos o que me parece ser o avesso de uma proposição desse tipo (devido ao irracionalismo de tais orientações que são hoje o centro do debate militante). Me parece que além dos obstáculos próprios a uma proposição como esta sobre a apropriação da técnica como condição de desenvolvimento das lutas, hoje um tal projeto de aglutinação de setores da classe trabalhadora sofreria oposição direta destes vários grupos, tanto por conta da propensão desses ao estilhaçamento da classe, quanto em relação ao desprezo que nutrem pela apropriação da técnica e pelo desenvolvimento de novas tecnologias entendendo-as como condições indispensáveis para a efetivação da emancipação social. Talvez este seja um aspecto a ser desenvolvimento futuramente.

  2. Bens materiais: estão sujeitos à lei da gravidade. Bens imateriais: não estão sujeitos à lei da gravidade. Entre estes, ainda há, entre outros, os bens simbólicos (ou seja, meros signos) e os bens afetivos (ou seja, aqueles ligados à manipulação dos afetos humanos, quando não se referem aos próprios afetos).

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