Por Alan Fernandes
“Até o último instante, a coragem de experimentar, a coragem de compartilhar, o sonho da fraternidade”. Foi assim que Carlo Rovelli teria descrito o fim trágico do legado do revolucionário russo Aleksándr Bogdánov, morto em uma das muitas experiências de transfusão de sangue. O revolucionário via a atividade científica atrelada a seus instintos humanitários. Antes de morrer, foi o diretor do primeiro Instituto de Transfusão de Sangue na União Soviética. Acreditava que a partilha do próprio sangue abriria espaço para uma sociedade mais comunal, e que a partir disso enfermidades poderiam ser erradicadas.
Não se lembram deste indivíduo? Bogdánov está no centro das atenções do livro Materialismo e empiriocriticismo, publicado em duas edições, cuja autoria é de ninguém menos que V. I. Lênin. Acusado de fazer “filosofia reacionária”, Bogdánov defendia uma perspectiva filosófica que aproveitava entendimentos do empiriocriticismo de Richard Avenarius com os preceitos de Ernst Mach. Chamou de “Empiriomonismo” sua filosofia e defendeu que ela melhor orientava a humanidade no exercício de sua prática científica. E quem é Mach? Não seria exagero dizer que o livro de cabeceira de Albert Einstein e Heisenberg. Einstein fez menção honrosa aos trabalhos de Mach e sua contribuição para a ciência da época. Pai da teoria da relatividade e por muito tempo irredutível sobre a “confusão” que era a teoria dos quanta, via também em Heisenberg um grande gênio. Só foi possível que este desvendasse o salto quântico uma vez que orientou-se por uma premissa de Mach, que seria a de “ater-se ao observável”.
Mas para que o artigo não divague, basta aqui entender que Bogdánov via no materialismo dialético de Marx um passo radical e necessário para uma melhor elaboração acerca do mundo a partir de nossa práxis. Mas foi vitima da acusação de “liquidacionista”, por dizer que o conceito de matéria em Marx já não era compatível com o que se discutia àquela altura sobre as manifestações da natureza na ciência. Foi a maior blasfêmia que Bogdánov poderia ter feito: pôr em dúvida o marxismo científico. Poucos anos antes da revolução de outubro, o partido bolchevique estava dividido entre os partidários de Lênin e os de Bogdánov . É neste contexto que deve ser entendida a segunda edição de Materialismo e empiriocriticismo.
Após a expulsão de Bogdánov do partido em 1909, o atrito entre os dois teóricos voltou a ganhar força durante a revolução de outubro. Bogdánov, Anatoli Lunatcharski e outros “bolcheviques de esquerda” fundam o grupo Proletkult, abreviação de proletárskaia kultura (cultura proletária). O grupo tinha como premissa que uma sociedade socialista só seria possível mediante uma cultura genuinamente proletária. Subentende-se que não é o partido que ensina os trabalhadores a serem revolucionários, mas a sua condição de libertos e sua autonomia enquanto classe. Tal palavra de ordem, é claro, ameaçava a hegemonia bolchevique. Anos antes, Lênin escrevera em sua obra Que fazer? que “os trabalhadores não desenvolvem sua consciência de classe espontaneamente”: munido com a ciência revolucionária do materialismo histórico-dialético, o partido deveria ser responsável por conduzir o proletariado à tomada do poder pela ditadura do proletariado. Volta a fazer sentido aquele debate do Materialismo e empiriocriticismo. Lênin não via na práxis proletária uma tomada de consciência, e por isso qualquer cultura estranha às diretrizes centralizadas do partido pareciam desafiar o sucesso da revolução.
Entre os muitos fatos que tornam notável a influência da Cultura Proletária no imaginário socialista russo, destaca-se a participação de Anatoli Lunatcharski. Componente vital do grupo Proletkult e partidário de Bogdánov dentro da fração bolchevique, Lunatcharski teve sua reputação conservada pelo governo, tendo sido escolhido para atuar no Narkompros, divisão educacional do governo soviético. Não sabia que estaria na mesma fileira daqueles que queriam que ele, na condição de censor do órgão, pusesse fim à autonomia do grupo Proletkult. A organização lutava para conservar a sua independência, e quando, em 1920, foi integrado ao Narkompros, Lunatcharski teve um atrito direto com Lênin. Apesar disso, não deixou o cargo até 1929. Diante da revolução de outubro, recebeu carta branca para convocar uma reunião com artistas russos. Dentre os convidados, estavam Aleksándr Blok e Maiakovski. Durante o período de amistosidade entre o Proletkult e o governo soviético, o Proletkult compôs inúmeras células de discussão artística nos comitês operários e muita verba foi empregue à medida em que a Lunatcharski se colocava como solicitante.
Lunatcharski é bem próximo de Nadejda Krupskaia, esposa de Lênin e igualmente uma liderança importante no Narkompros. Eles pedirão demissão do cargo em 1929 por não concordar com reformas educacionais impostas por Stálin. Diferente de Lunatcharski, Krupskaia discorda da condição autônoma do Proletkult. Acusa seus idealizadores de promoverem “cultura burguesa”.
Em um artigo intitulado A ideologia proletária e a Cultura Proletária, Krupskaia faz duras críticas a Pletniov, um dos integrantes do grupo em 1922. Dois anos antes, Lênin tornou possível que um decreto que tornava o Proletkult um órgão vinculado ao Narkompros fosse aprovado. Bogdánov sairia do grupo no ano seguinte, mas, como se nota a partir da crítica de Krupskaia, a ideia de uma Cultura Proletária seguiu firme, ainda que o grupo tenha perdido sua razão de existir.
Desprovido de autonomia, o Proletkult continua existindo como órgão vinculado ao Comissariado do Povo para Educação e deixa de existir em 1923 com a publicação do último número da revista Gorn. Acusados por Krupskaia de “sectários”, contaram desde 1917 com ampla estrutura oferecida pelo Estado e gozavam de amplo apoio popular, ao ponto que quase se confundia o que eram ações da divisão do Estado e o que eram iniciativas do Proletkult. Seções locais chegavam a somar milhares de adeptos, muitos exercendo influência direta em comitês de fábrica.
Talvez tenha sido este o maior legado do Proletkult, na busca pela sua própria autonomia, reafirmar a autonomia dos trabalhadores perante os seus gestores, procurando desenvolver uma cultura proletária própria. Depois de sua saída do Proletkult, e durante seus anos de estudo sobre transfusão de sangue, rumores apontam a participação de Bogdánov no Pravda, jornal de extrema-esquerda que condenava a adoção da Nova Política Econômica (NEP) e da política de capitalismo de Estado exercida pelo Partido. Não há como comprovar sua adesão, mas sua influência é inquestionável, assim percebera Bukharin. Vale lembrar que Bukharin sofreu uma provação de Lênin. Suspeito de ter proximidade teórica com Bogdánov, é pedido que seja ele a apresentar a proposta que incorpora o Proletkult ao Narkompros. Ele se recusa.
Bogdánov morreu duas vezes. Primeiro, contraiu malária em uma transfusão de sangue malsucedida. Da segunda vez, mataram-lhe a memória. Lênin, Krupskaia e Plekhanov foram os primeiros a chamarem de “liquidacionistas” e “sectárias” as intenções do núcleo artístico em torno do Proletkult. Em seguida, muitos de seus textos foram enterrados nos arquivos soviéticos por causa da censura estalinista. Com muito atraso tivemos acesso a artigos e livros de Bogdánov em inglês, e a primeira tradução para o português só foi publicada em 2019. A editora Brill está construindo um esforço de tradução das obras de Bogdánov para o inglês em sua categoria Historical Materialism Book Series. Em 1923, Bogdánov publicou um de seus últimos artigos em vida, Poesia proletária (cuja tradução para o português pode ser lida aqui), em que clama que “floreça e amadureça” o ímpeto artístico do proletariado enquanto sujeito social. Deixados com esse legado, só podemos deduzir que a velha toupeira deve tomar para si a posição ativa no amadurecimento dessa cultura.
As obras que ilustram os artigo são de Kazimir Malevitch.
Referências
BOGDANOV, Alexander Aleksandrovich. Empiriomonism: essays in philosophy. 3 vols. Leiden: Brill, 2020.
BOGDANOV, Alexander Aleksandrovich. The philosophy of living experience: popular outlines. Leiden: Brill, 2015.
KRUPSKAYA, Nadezhda Konstantinovna. A ideologia proletária e a Cultura Proletária. In: KRUPSKAYA, Nadezhda Konstantinovna. A construção da pedagogia socialista. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
LÉNINE, Vladimir Ilich. Materialismo e empiriocriticismo. Lisboa: Avante, 1982.
PINTO, Tales dos Santos. Alexander Bogdanov e a organização política do Proletkult (1917-1923) In: PINTO, João Alberto da Costa (org.). Intelectuais dissidentes na Revolução Russa (1917-1938). Goiânia: Imprensa Universitária, 2018.
ROVELLI, Carlo. O abismo vertiginoso: um mergulho nas ideias e nos efeitos da Física Quântica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2021.
Uma boa indicação para saber mais sobre Bogdanov em português é o livro de Tales dos Santos Pinto: Revolução, política e cultura em Alexander Bogdanov!
Alan, há mais textos teus sobre o assunto?
Caro, na verdade sim. Traduzi o “Poesia proletária”(https://passapalavra.info/2022/12/146808/), já póstumo do Proletkult que faz algumas provocações sobre arte, que ele irá explorar melhor em seu art and the working class (https://www.amazon.com/dp/1087993512?ref_=cm_sw_r_cp_ud_dp_ZR14SEXV005M4A5HNN4K).
A título de publicações acadêmicas, tive o prazer de publicar na revista NIEP-Marx o artigo “Sobre a prática e sobre a experiência” (https://www.academia.edu/93287489/Sobre_a_pr%C3%A1tica_e_sobre_a_experi%C3%AAncia) em que colocava originalmente este tema de reflexão para pensar no meu trabalho de conclusão de curso e em um possível livro que talvez publique, que nem está no papel ainda. Depois em uma revista que se proporia a fazer um dossiê sobre as eleições de uma perspectiva “anarquista e/ou decolonial” (reparar que eu não emprego nenhuma dessas identificações no meu texto) eu retomei o tema(https://revistas.ufrj.br/index.php/read/article/view/56341), de uma maneira corrida, para evidenciar a falta de autonomia da esquerda anticapitalista que transfere seu poder político de reivindicação e protagonismo para representantes da esquerda. Neste sentido a polêmica entre Bogdánov e Lênin, além da definição de marxismo heterodoxo de João Bernardo me foram bem esclarecedoras. Além disso, apresentei na VIII Semana de Graduação dos estudantes de filosofia da UERJ um resumo sobre a polêmica entre Bogdánov e Lênin e suas repercussões científicas, filosóficas e políticas. Eu salvei o vídeo da apresentação mas posteriormente formulei um artigo sobre esta temática, porque a revista ensaios filosóficos vinculada ao IFCH se mostrou interessada em publicar um dossiê dos trabalhos apresentados, só que não sei se e quando será publicado.
Já que você se interessou pelo tema, farei a mesma recomendação que me fizeram no ano passado, ler o que diz Carlo Rovelli sobre o assunto em seu livro “O Abismo Vertiginoso” ou “Helgoland” no original em inglês. Ler também o tradutor de Bogdánov para a língua inglesa, o David G. Rowley (https://philpapers.org/rec/ROWABH). Ele traduziu quase todas as obras “filosóficas” do Bogdánov, ficou faltando só talvez a mais cobiçada, a sua resposta ao Materialismo e empiriocriticismo” de Lênin. John Biggart é um biógrafo do autor que também se deve consultar. Aparentemente o 9º volume da obra “História do Marxismo” de Hobsbawn também aborda o assunto, mas ainda não o li, mas está em minha lista.
Poxa, muito obrigado pelas indicações! Lerei os materiais com bastante satisfação! Eu até agora só tive contado com o Bogdánov através daquele livro do Tales que citei acima e fiquei bastante curioso em relação a ele desde então. Infelizmente, havia encontrado poucas referencias (mas confesso que estava procurando essencialmente referencias em português devido a temática filosófica de algumas questões me deixar receoso em relação a meu próprio entendimento). Não deixe de avisar por aqui quando seu artigo for publicado!
Parabéns pelo resgate. Li a História do Marxismo do Hobsbawm há mais de 20 anos e um dos textos que mais me ficou na memória desde aquela época foi justamente o artigo sobre Bogdanov. E se destacou exatamente por ser um dos únicos artigos da coleção inteira que se dedica a apresentar ao público uma dissidência do leninismo pela esquerda. Gostei muito de saber que estão sendo feitas traduções, porque muito me interessa essa linha de pesquisa.
Em 2020 foram publicadas duas traduções para o português a Estrela vermelha de Bogdánov, de 1908, uma pela Boitempo, outra pela Cartola. Mas trata-se de obra de ficção científica. Existe uma tradução, disponível na internet (https://www.marxists.org/portugues/bogdanov/1897/curso/index.htm), do Curso popular de economia política de Bogdánov, de 1897, publicada originalmente em 1935 pelas Edições Caramuru.
Entretanto, não encontro traduzidos para o português os livros e artigos de Bogdanov posteriores às críticas de Lenin expostas no Materialismo e empiriocriticismo, como as Tarefas culturais de nosso tempo (Культурные задачи нашего времени, 1911), a Filosofia da experiência viva (Философия живого опыта: Популярные очерки: Материализм, эмпириокритицизм, диалектический материализм, эмпириомонизм, наука будущего, 1913), a Ciência da consciência social (Культурные задачи нашего времени, 1914), o Papel da coletividade na História (Роль коллектива в истории, 1914), a Tectologia: ciência organizacional geral (Тектология: Всеобщая организационная наука, 1922), a Teoria do capitalismo (Теория капитализма, 1922)…
A tectologia de Bogdanov é reputada como antecipadora, em décadas, tanto da cibernética quanto de certas teorias da biologia, como a autopoiesis de Maturana e Varela.
Outro aspecto interessante é que a resposta de Bogdanov a Lenin é o livro A queda do grande fetichismo (a crise da moderna ideologia). Fé e ciência (sobre o livro “Materialismo e empiriocriticismo” de V. Ilyin) (Падение великого фетишизма (современный кризис идеологии). Вера и наука (о книге В. Ильина «Материализм и эмпириокритицизм»), 1910), que não é difícil de encontrar na internet em sua edição original russa. Este livro, por razões que desconheço, tem passado por sucessivas reedições na Rússia desde o fim da URSS, a mais recente delas em 2019. Bogdánov acusa Lênin de idealismo e de fideísmo, entre outras coisas porque sua dialética estaria mais próxima de Leibniz e de Schelling que de Marx. O conteúdo é de grande interesse para quem considere Lênin de algum modo filósofo, e tem algum interesse para quem estuda a dialética enquanto modo de raciocínio, mas é só isso.
O Gabriel Tupinambá (https://www.academia.edu/93498755/Uma_introdu%C3%A7%C3%A3o_contempor%C3%A2nea_%C3%A0_Tectologia_de_Alexander_Bogdanov) é um brasileiro que utiliza a Tectologia de Bogdanov em seus estudos. Há uma carta de Bogdánov a Lunacharsky durante o comunismo de guerra na edição “Escritos de Outubro” da Boitempo. Receio que a apresentação destas obras que o Manolo indicou estejam condicionadas a uma tradução do inglês, que a editora Brill vem fazendo (https://brill.com/display/serial/BOLI?language=en). Sondei um dos tradutores de Bogdanov para o inglês e voltei com a má notícia de que a tradução de The Fall of Great Fetischism é incerta. Enfim, não estou muito otimista.
Está sendo gestado algumas traduções para o português de obras de Bogdanov. Tanto o Tectologia quanto Arte e Classe Operária entre outros textos. A obra de Bogdanov é vasta e seus principais estudiosos estão atualmente trabalhando com os momentos formadores do Tectologia (em suas várias versões) quanto o trabalho de Bogdanov e os estudos de transfusão e utilização do sangue. Os textos entre o Empiriomonismo e o Tectologia são muito interessantes para compreender tanto a formação das ideias Proletkul’tistas quanto das posições políticas de Bogdanov dentro da Esquerda russa da época.
Jair Diniz, gestado por quem? Solta o verbo, camarada!
A modéstia que lhe inerente o impediu de dizer que as citadas traduções estão sendo paridas por ele mesmo…
Quem quiser acessar um trabalho do Jair sobre a arte de vanguarda na Rússia revolucionária, acessar aqui https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-02022007-171251/publico/TESE_JAIR_DINIZ_MIGUEL.pdf. No final tem um conjunto de texto vertidos direto do russo, incluindo alguns de Bogdanov. Para uma versão “ebook” da Tese, mas com o prejuízo dos anexos, ver aqui https://editoriaemdebate.ufsc.br/catalogo/wp-content/uploads/JAIR-MIGUEL-ARTE-ENSINO-UTOPIA-EBOOK.pdf
Muito bom, Jair! Pensando somente em termos de história das ideias, essas traduções do Tectologia e do Empiriomonismo supririam algumas lacunas importantes. Pessoalmente, me interessa muito menos o aspecto da cultura proletária do que conhecer a “ciência organizacional geral” em tradução com certeza muito mais versátil e segura que a do meu russo capenga. Tem previsão de publicação?
Muito bom, Jair! Darei uma olhada em sua tese!
A disputa entre Lênin e Bogdanov se dá no contexto da repressão à revolução de 1905. E meados de 1907 o Partido Operário Social-Democrata da Rússia foi lançado na ilegalidade, teve seus representantes na Duma presos e passou a atuar sobretudo de forma semi-clandestina em sindicatos e cooperativas. A maioria dos bolcheviques defendia, diante disso, o boicote às eleições da Duma, ao passo que Lênin, se aproximando neste ponto dos mencheviques, defendia a participação nas eleições. A facção bolchevique do POSDR rachou entre a ‘ultra-esquerda’ de Bogdanov e o ‘centro’ de Lênin, com o primeiro grupo alegando representar o verdadeiro bolchevismo e acusando o centro leninista de conciliacionismo menchevique.
Infelizmente essa disputa tende a ser vista como ‘filosófica’, como se o problema fosse a incompatibilidade entre o ‘neo-kantismo’ de Bogdanov e o ‘materialismo dialético’ de Lênin. O marxismo-leninismo transformou em dogma pseudo-filosófico um panfleto que tinha como objetivo a luta pelo poder no interior da facção bolchevique do partido. Um panfleto que, como Adorno sugere na Dialética Negativa, estava ‘errado’, mas ‘deu certo’ – era péssima epistemologia a favor da linha política correta.
A meu ver o radicalismo estético do grupo Protelkult é uma expressão do caráter fanático e místico da política da ultra-esquerda – uma política que, ao contrário de Lênin, se recusa a refletir sobre a necessidade de readequar a tática revolucionária à luz das novas condições contra-revolucionárias. Acho que Trotsky é preciso em sua crítica ao próprio conceito de cultura proletária, embora também aqui seja preciso tomar o texto como um instrumento na luta ideológica tanto quanto como um trabalho propriamente teórico.
De todo modo, é ótimo desenterrar essas polêmicas. As perspectivas de ambos os setores da facção bolchevique do POSDR do início do século passado são mais interessantes e mais avançadas do que toda a teoria e toda a prática da esquerda dos anos 1920 em diante. Vale mais mergulhar nessas velharias do que chafurdar na merda que vem sendo produzida ao longo dessa noite contra-revolucionária que já passou dos 100 anos.
Os textos produzidos por Bogdanov nos anos 1910 são muito amplos e cobrem diversas áreas do conhecimento. Quase não existem textos partidários (ele foi expulso em 1911 dos bolcheviques). O Empiriomonismo é de 1906 (a publicação), mas as ideias que estão nele vem desde a virada do século (entre 1899 e 1903), então o projeto filosófico de Bogdanov precede inclusive a própria formação da ala bolchevique, e Lenin estava a par disso o tempo todo.
Também é bom lembrar que Bogdanov era o editor chefe da tradução de Marx para o russo, inclusive polemizando com as traduções anteriores quanto as categorias que Marx usava e as interpretações dos autores russos. O projeto de tradução é dos anos 1910, e por não pertencer a nenhuma corrente partidária ele estava mais livre para o debate. O Proletkul’t tem duas fases (a primeira teórica e de debate durante os anos 1910 e a segunda enquanto grupo político e organização de massas durante a revolução). Os textos de antes da revolução são abstratos e falam mais sobre uma cultura operária do trabalho (inclusive tem um texto de Bogdanov sobre Taylorismo muito interessante de 1913). Nesse sentido é cultura no aspecto de modo de vida. Já durante a revolução o Proletkul’t amplia as ideias para arte, ciência, visão-de-mundo, ideologia etc. Bogdanov participou do movimento político até 1920, e depois deixou o grupo devido a pressão de Lênin para que ele não participasse.
Bogdanov é fundador junto com outros bolcheviques da Academia Comunista em Moscou em 1918. E participou das discussões acadêmicas em Filosofia e Economia até 1926 na Academia e nos jornais (publicando textos inclusive). Somente deixou a academia em 1926 para ser o diretor do Instituto de Transfusão de Sangue (médico por formação, ele começou a estudar sobre Hematologia e transfusão em 1922). Ainda assim pública um livro sobre transfusão de sangue, tectologia e coletivismo chamado “ A Luta pela Viabilidade” (tem tradução em inglês muito rara).
Sempre lembrando que Bogdanov é figura ímpar na intelligentsia russa e na esquerda russa, não deixando de polemizar até com os amigos em prol de ideias filosóficas, econômicas, culturais, científicas etc. Acredito que a maioria não leu a intensa e tensa troca de opiniões e farpas entre Bogdanov e Lenin entre 1906 e 1909, incluindo as quilométricas cartas entre ambos. O principal alvo filosófico de Bogdanov era Plekhanov, e Lenin tinha apreço muito elevado por ele. Depois virou uma disputa político partidária pelos rumos da ala bolchevique e quando foi fundado o grupo Avante aí a ruptura estava completa. As fotos em Capri dos dois jogando xadrez em 1908 foram as últimas dia dois juntos, pois discutiram muito sobre o futuro da esquerda russa e não chegaram a nenhum acordo, e mesmo na descontração das partidas os ânimos acirravam (Bogdanov era exímio enxadrista), enfim, a partir de 1909-11 a inimizade de Lênin se tornou eterna, onde estivesse Bogdanov, Lênin tentava intervir.
O interessante será o dia em que alguém fizer um estudo comparado entre as obras de Lênin, Bogánov e Mártov, usando os mesmos critérios de confrontação da obra escrita com a prática política empregues por Paulo Sampaio.
Como teve uma pessoa perguntando sobre o texto do Bogdanov em resposta ao Lênin, achei interessante traduzi-lo para o português. Vai agregar ao conhecimento sobre a esquerda russa pré-revolucionária. Pelo ano da resposta (1909) está mais ligado ao conflito sobre as ideias defendidas pelos dois. A partir de 1911, os textos de Bogdanov já não trazem mais confrontos com o leninismo, sendo direcionados para as ideias que vão desembocar no Tectologia. Espero até o fim de julho já ter terminado e estar pronto para publicar. O título vai ser o mesmo: “FÉ E CIÊNCIA” (sobre o livro de V. Ilyin “Materialismo e Empiriocriticismo”).
O livro foi originalmente publicado com um pseudônimo menos usado de Lênin, por isso o texto fala de V. Ilyin.
Estou montando uma biblioteca de obras de Bogdanov em português, para uma futura publicação de obras escolhidas. Se tiverem interesse em textos específicos, me mandem o link ou o nome para eu verificar. Normalmente textos pequenos ou jornalísticos são fáceis e demandam pouco tempo. Os livros são bem demorados, e exigem uma revisão muito criteriosa. Mas vale a pena para ajudar aos curiosos sobre Bogdanov.
Sugiro que o Pedro e o Jair desenvolvam o tema em algum artigo. Acredito que muitos leitores ficariam tão contentes quanto eu fiquei ao ler estes comentários.
“A meu ver o radicalismo estético do grupo Protelkult é uma expressão do caráter fanático e místico da política da ultra-esquerda – uma política que, ao contrário de Lênin, se recusa a refletir sobre a necessidade de readequar a tática revolucionária à luz das novas condições contra-revolucionárias. Acho que Trotsky é preciso em sua crítica ao próprio conceito de cultura proletária, embora também aqui seja preciso tomar o texto como um instrumento na luta ideológica tanto quanto como um trabalho propriamente teórico.”
Essa afirmação não tem fundamento histórico, é uma sentença arbitrária. Toda a atividade política, cultural e artística do Proletkult, assim como aquelas inspiradas por essa organização ao longo da década de 1920, são o oposto do “fanatismo”. Não há dúvidas de que os gestores da revolução não podiam ouvir falar em “cultura proletaria”. Quanto ao leninismo e ao trotskismo, bem, basta olhar para os coletivos e grupos atuais orientados por essas figuras políticas e teóricas para ver aonde se encontra o fanatismo. Seguimos ouvindo a velha cantilena do “esquerdismo doença infantil…”, infelizmente….
Caro Iraldo,
‘Leninismo’ é uma invencionice stalinista, e ‘trotskismo’ hoje em dia pode ser qualquer coisa. Bogdanov e Lunacharski são gigantes, assim como todos os Velhos Bolcheviques. Como diz o outro, uma águia pode voar tão baixo quanto uma galinha, mas galinha alguma é capaz de voar tão alto quanto uma águia. Certamente Bogdanov e Lênin aprederam muito um com o outro ao longo de suas muitas partidas de xadrez! Mas será mesmo que os Otzovistas estavam certos? Melhor seria ter deixado de trabalhar no interior dos sindicatos e cooperativas e abandonar o parlamento, optando pela atividade ilegal em detrimento da combinação entre atividade legal e ilegal, correndo assim risco de perder totalmente o contato com as massas? Eu acho que não. E também acho que é uma “sentença arbitrária” sugerir que a posição crítica em relação ao Otzovismo leva direta e necessariamente ao fanatismo dos gestores etc.
Bukahrin, em um discurso no funeral de Bogdanov, fez questão de enfatizar que “Nosso partido deve muita gratidão a Bogdanov por todos os anos que ele passou lutando, de mãos dadas com Lênin, na linha de frente da facção Bolchevique”. Cabe lembrar que Lênin, mesmo acreditando que o Protelkult propagava ideias reacionárias, não mandou matar ninguém… Sim, o “””materialismo”””de Lênin virou posteriormente um instrumento de dominação autoritária! Mas isso não quer dizer que Lênin lutou pela dominação burocrática da intelligentsia. Acho que seria um erro afirmar o curso da história dessa maneira. As coisas poderiam ter sido muito diferentes.
Agora, eu acho que o Bogdanov ficou maluquinho mesmo. Fazer transfusão de sangue em nome de um coletivismo fisiológico? Coisa de maluco. E as ideias dele, de Gorky e Lunacharsty eram claramente místicas!
O Protelkult é atraente na teoria porque é intransigente na ideia de que somente pessoas pertencentes à classe trabalhadora (sociologicamente) poderiam participar do esforço de construção de uma nova cultura proletária (esforço que contradiz a ideia de autoabolição da classe, como bem nota Trotsky); mas é atraente em seus resultados concretos porque contou sempre com a direção de excelentes intelectuais burgueses de vanguarda. É um movimento interessantíssimo, mas seu legado é um problema para ser pensado, e não algo que pode ser afirmado.
Um abraço
Caro Paulo,
Seu comentário melhorou em relação ao anterior, ainda assim padece de alguns problemas… Sim, o misticismo fin de siécle estava presente naquele período entre a intelligentsia russa, como bem demonstrou o Jair, mas isso não faz de ninguém automaticamente um fanático. O pintor holandês Piet Mondrian, por exemplo, tinha influências até da Teosofia, mas não era um “fanático”, que se saiba, assim como Johannes Itten, notório professor da primeira fase da Bauhaus era masdaísta, mas não se formaram fanáticos na Bauhaus, que se saiba. Tive professores ligados às mais diversas religiões e, acho, não sou um fanático. Você precisaria demonstrar onde na teorização e na prática de Bogdanov esse misticismo se faz presente e quais as suas consequências teóricas e políticas, de resto estamos no campo da especulação. Além disso, você está reduzindo o Proletkult, que chegou a ter cerca de 400 mil filiados, à figura de Bogdanov, outro erro. Você esquece de todas as figuras de vanguarda que estavam à frente das atividades culturais e artísticas daquela organização, onde se articulavam tantos outros coletivos, como a LEF (Frente Cutural de Esquerda), para citar uma, animada por ninguém menos do que Maiakovski, que não era um fanático, até onde vai o meu conhecimento. Lênin odiava as vanguardas, entre outras coisas, era defensor de uma estética realista, pois sua consciência para inúmeros assuntos era burguesa, como demonstrou Pannekoek em Lênin, Filósofo. Vittorio De Feo afirma que nos tempos de Lênin já ocorriam perseguições às vanguardas, ainda que não na proporção dos expurgos de Stálin. Lunatcharski se afastou gradativamente do círculo de Bogdanov, assim como adotou uma posição ambígua sobre as vanguardas, que se resolveu negativamente no final da década de 1920, início da de 1930, a favor do “realismo socialista”. Lukács seguiu as pistas deixadas por Lênin e criticou também de forma ambígua o “realismo socialista”, defendendo o realismo em si mesmo. Trotsky, como bom oportunista (“águia’?!) defendia a autoabolição da classe apenas para este assunto (posição mantida por Mário Pedrosa em suas análises), pois foi o grande teórico das transições eternas que nunca chegam ao comunismo. No entanto, em seu exílio passou a defender as vanguardas modernas, inclusive o futurismo italiano, que bem sabemos do que se tratava, de fascismo. Enfim, a repressão a Kronstadt em 1921 ocorreu sob comando de Lênin e Trotsky, então ambos mandaram matar muitos “camaradas” (não apenas neste evento). Por fim, você afirma “que é uma ‘sentença arbitrária’ sugerir que a posição crítica em relação ao Otzovismo leva direta e necessariamente ao fanatismo dos gestores”. No entanto, é exatamente este o seu critério para julgar o suposto “fanatismo” do Proletkult, numa ligação direta com o suposto fanatismo de Bogdanov, que na época já defendia posições de autonomia de classe do proletariado em relação às burocracias partidárias. No mais, foi das “posições reacionárias” do Proletkult que surgiram algumas das maiores contribuições artísticas do século XX nas mais variadas áreas. Do leninismo, ficou de herança o capitalismo de Estado e o “materialismo dialético”, que não é simplesmente uma “apropriação indevida” do Stálin malvadão das ideias do revolucionário iluminado Lênin.
Saudações
Alguns pontos mencionados acima que merecem destaque: “fazer transfusão de sangue” era, naquele tempo, algo que implicava em um olhar humanitário. Bogdánov foi diretor do primeiro instituto de transfusão de sangue na Rússia e apesar de a ação mal-sucedida ter ceifado sua vida, abriu muitas portas para os estudos que são realizados hoje. Alguns biógrafos e comentaristas atribuem essa dedicação ao desejo de “alcançar a imortalidade”, mas outras leituras não se arriscam neste ponto e afirmam simplesmente que a prática tinha como objetivo prolongar a vida. Por falta de leitura mais extensa adivinho que essa segunda alternativa é a mais correta. Agora, devemos condenar os avanços da medicina com relação à doação de órgãos por permitirem um “coletivismo fisiológico”?
Segundo ponto, muitas ideias de Lunacharsky estão sim associadas a uma perspectiva religiosa. Diferente de um partido político “fortaleza” (nos dizeres de Stálin) existiam inúmeras perspectivas distintas no Proletkult, o próprio Bukharin flertou com o grupo, apesar de sua adesão à cartilha do materialismo-dialético. Que Gorki tenha flertado com Bogdanov e com o Zhdanovismo merece reflexão à parte, porque me parece arriscado afirmar que Bogdánov teria percorrido o mesmo caminho. Vittorio Strada (no livro de Hobsbawn) associa a política cultura do “realismo socialista” à ideia de “recomposição do homem” presente em Gorki e, supostamente, também em Bogdánov. Mas enquanto Stálin procurava consolidar a teoria da organização-fortaleza Bogdánov procedeu a algo muito diferente, a teoria da ciência das organizações, que procurava delimitar os campos de interconectividade social que permitiriam o advento de relações sociais novas.
É claro que o cheque em branco não é uma forma coerente de avaliar o que poderia ter sido feito no passado. Como você bem coloca, Bogdánov e o Proletkult tiveram imensa contribuição para o desenvolvimento do bolchevismo. Mas são precisamente essas feridas abertas que permitem recolocar os dilemas e vislumbrar o legado da oposição anti-burocrática hoje. Agora, que Lênin “não tenha mandado matar” Bogdánov não é nem um pouco generoso se bastasse que a doutrina do materialismo-histórico-dialético tenha se tornado implacável.
Iraldo e Alan,
Obrigado pelas respostas.
A imagem da águia e da galinha é usada por Lênin para criticar o uso político de textos de Rosa Luxemburgo críticos aos bolcheviques – Luxemburgo podia por vezes voar baixo como uma galinha, mas era uma águia, e o mesmo não se pode dizer dos que instrumentalizam textos que ela mesma renegou e mandou queimar. Acho que essa é uma boa perspectiva para adotar quando falamos do marxismo desse período. As brigas no interior da social-democracia revolucionária do começo do século passado são brigas de águias, muito mais ricas e profundas (e encarniçadas, mas não brutais e assassinas como se tornariam após o fracasso da revolução a nível internacional) do que as disputas posteriores.
Meu ponto não era que Lênin “não mandou matar” porque apesar de ser um gângster foi misericordioso nessa ocasião. Meu ponto é que a política não estava tão degradada e brutalizada. Ele podia encontrar o Bogdanov para jogar xadrez e depois de trocarem críticas duras, topar com ele em um concerto depois te terem se tornado adversários. Sobre Kronstadt, é outra polêmica, mas a meu ver Trotsky agiu corretamente. Espero que não façamos equivalência entre episódios como esse e os expurgos dos anos 1930, são fenômenos muito diferentes. Acho fora de propósito o paralelo entre a antipatia de Lênin por essa ou aquela vertente estética e a perseguição e assassinato de artistas, a instituição da censura etc. E, é claro, eu não acho justo com Lênin e Trotsky jogar o século XX na conta deles. Lênin não é um revolucionário iluminado, é só um marxista exemplar, um ótimo leitor de Marx e Engels e um dos melhores alunos de Kautsky – ou seja, a questão não o fulano Lênin, é todo (o momento de crise do) o marxismo da 2a Internacional que ele tem atrás de si. E acho que cabe pontuar que a gente não estaria aqui falando de Marx e marxismo se não fosse a revolução russa; Marx e Engels seriam só mais dois entre tantos socialistas ilustres do século XIX. Talvez fosse até melhor assim, mas aí já entramos na especulação contrafactual.
O movimento Protelkult chegou a envolver mais ou menos o mesmo tanto de gente que o Partido. Mas não sei se dá para medir as coisas só pela contagem de cabeças, talvez tenhamos de um lado pessoas que participam de um ateliê e de outro militantes, com níveis de engajamento muito diferentes, ora orientados por um programa ora só usufruindo de uma infraestrutura para produzir suas obras.
Acho que se ficarmos com o Protelkult (e Bogdanov) como imagens daquilo que poderia ter sido e com Lênin e Trotsky como os formuladores daquilo que veio a ser não chegamos muito longe, e podemos nos perder em uma leitura do processo histórico excessivamente afirmativa (em oposição à opção por ler a história a contrapelo) e excessivamente calcada nos princípios encarnados por cada grupo (de um lado o pluralismo, a espontaneidade e a independência da classe, de outro o autoritarismo, o dogmatismo e a dominação burocrática).
Pois é Paulo, agora você foi péssimo… Um ex-amigo e ex-militante do PSTU adorava repetir que discordava de Trotsky, que deveriam ter cercado Kronstadt e deixado todo mundo morrer de fome para não gastar balas. Ele propunha requintes de crueldades, você demonstra “apenas” frieza. Difícil saber o que é pior neste caso. Você ainda reduz a Revolução Russa a Lênin e Trotsky. A propósito, quem se referia a trotsky como “águia”, se não né engano, era Edmund Wilson. Melhor seria chamá-lo de raposa, não apenas pelas características comumente atribuídas ao animal, astuto e ladino, como pelo infame exemplo de “dialética da natureza” utilizando este simpático ser, para demonstrar a “passagem de quantidade a qualidade”…
Outra afirmação sem fundamento é a de que o Proletkult era um “ateliê”, demonstrando não entender o papel revolucionário da arte naquele contexto, enquanto o partido era um espaço de militantes aguerridos e infalíveis. Tudo isso antes de defender uma suposta posição antimaniqueísta.
É, Trotsky estava certo. As condições iam bem no direcionamento do socialismo, quem atrapalhavam eram os trabalhadores
Caros,
A discussão periga se desdobrar infinitamente e ficar cada vez mais sem fundamentos.
A linha política do Otzovismo, a filosofia do Empiriocriticsmo e o movimento Protelkult são coisas diferentes, e as três são diferentes do misticismo do Lunacharsky. Diferentes, mas relacionadas, de um jeito difícil de discernir. Elas tendem a se confundir na figura de Bogdanov, uma figura em si mesma múltipla – militante bolchevique, filósofo, economista, médico, autor de ficção científica, precursor da cibernética, pioneiro da transfusão de sangue etc.
Minha crítica ao artigo é: Bogdanov não foi expulso da facção bolchevique pela “blasfêmia” de “pôr em dúvida o marxismo científico” ao “dizer que o conceito de matéria em Marx já não era compatível com o que se discutia àquela altura sobre as manifestações da natureza na ciência”; ele foi expulso porque sua linha política, o Otzovismo, foi rejeitada. A polêmica de Lênin contra o Empiriocriticismo precisa ser lida nesse contexto, muito mais político do que filosófico. É óbvio que posteriormente o texto de Lênin virou a pedra-de-toque do dogma do Diamat – ou seja, virou um instrumento de dominação burocrática. Quando eu insisto em não ter uma visão afirmativa da história o que quero dizer é: o fato desse texto ter tido esse destino não significa que essa era a política dos bolcheviques desde sempre, que ‘aquilo necessariamente ia dar nisso’, nem que o Otzovismo era a linha correta etc.
Como o artigo deixa claro, Bogdanov e o movimento Protelkult são evocados como alternativas à concepção de Kautsky, Lênin et al. (do ‘marxismo ortodoxo’, digamos) a respeito do papel específico dos intelectuais no socialismo, da necessidade de trazer a consciência revolucionária “desde fora” para a classe trabalhadora. Esse complexo de figuras Bogdanov-Lunacharsky-Protelkult é associado a uma crítica profética do caráter burocrático da URSS, dando ensejo a uma leitura que coloca esse caráter na conta da teoria e da prática dos bolcheviques – e, por extensão, na conta de Kautsky e do marxismo da 2a Internacional, na conta do velho Engels e, para os mais rigorosos, na conta do próprio Marx. Eu discordo dessa leitura do processo. A meu ver o caráter burocrático da URSS não decorre da teoria e da prática dos bolcheviques – no caso, não decorre da crítica a Bogdanov (supostamente movida por dogmatismo teórico) nem da crítica ao Protelkult (supostamente movida pela recusa, no âmbito da prática, da independência da classe em relação aos gestores). Novamente, esse tipo de leitura afirma o curso da história – ‘aquilo necessariamente ia dar nisso, já estava tudo lá desde o princípio’ etc. É preciso levar em conta o fracasso da revolução a nível internacional e os erros políticos envolvidos nisso, mais do que supostos erros nos princípios teóricos e práticos dos bolcheviques.
Dito isso, viva Bogdanov e os 100 anos do movimento Protelkult! Eles merecem lugar de destaque entre os problemas e enigmas que herdamos do fracasso da revolução.
Abraços autoritários
Um belo epitáfio…
https://www.marxists.org/archive/mattick-paul/1940/trotsky.htm
Eu gostaria só de lembrar sobre os trabalhos de Bogdanov no Instituto de Transfusão. Ele era o diretor, mas tinha uma equipe de médicos muito capacitados em relação a área. Embora médico de formação, ele não exerceu a profissão em grande parte da sua vida. Só no início da carreira, durante a primeira guerra e no final.
Ele se apaixonou pela transfusão de sangue ao ler o livro do irmão de Keynes (que era médico hematologista) e como lembrava do tempo da guerra, decidiu estudar e fazer transfusões em caráter privado inicialmente. Isso começou em 1922, época que ele estava mais concentrado em dar aulas e publicar textos em Filosofia e teoria econômica. Além disso estava tentando ampliar e aplicar a tectologia nos seus trabalhos. É bom lembrar que a Tectologia está concentrada em debater a Ciência e o método científico.
Então pode-se afirmar que ele estava trabalhando em múltiplas frentes entre 1922 e 1926 (ano da fundação do Instituto). O Proletkul’t não era mais um programa específico para ele, já estava embutido na Tectologia. Além disso, após o tempo que passou preso na GPU em 1923 deu a certeza para ele de que deveria ficar no âmbito acadêmico primariamente. Após a morte de Lênin o ambiente não melhorou para ele, embora tivesse amizade com muitos líderes bolcheviques, era visto com muita cautela, pois continuava a ser um intelectual atuante e combativo.
O problema está em como e porque ele pensou no Instituto. Não atuava como médico ou cientista de forma acadêmica, mas tinha muita força e influência para propor tamanha novidade. O comissário da saúde e Stálin aprovaram o projeto. Não era um passo ou projeto milenarista ou utópico, mas as ideias se cruzam.
O livro que ele escreve para justificar o investimento nessa área “A Luta pela Viabilidade” cruza todos os assuntos que desenvolveu desde o início incluindo o Proletkul’t, a Tectologia e o coletivismo.
O melhor texto atualmente sobre esse assunto é a tese dei médico e historiador da ciência Nikolai Krementzov: “A Martian Stranded on Earth”. O texto “Struggle for Viability: Collectivism through Blood Exchange” é muito difícil de se encontrar na tradução em inglês (é de 2002), e mesmo em russo é raro.