Por Jan Cenek
Leia aqui a parte 1.
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festa das flores
manhã de primavera
dia de finados
(Versos encontrados na gaveta do poeta que saltou do viaduto. Estavam escritos num guardanapo que foi grampeado numa notícia de jornal. A matéria informava sobre o assassinato de uma florista num semáforo da cidade.)
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Construiu seu destino fugindo dele. Escreveu sua história ao tentar apagá-la. Sempre se considerou um peso para a família, uma cópia mal feita do irmão gêmeo. O irmão estava concluindo a faculdade, ele havia abandonado os estudos. Usava drogas. Tinha passagens pela polícia. Estava desempregado. Queria libertar a família do peso que representava. Quando todos saíram para assistir à missa, resolveu dar um jeito na situação. Foi até o fundo da casa, amarrou uma corda na madeira do telhado e se enforcou. Deixou um bilhete: “Amo vocês. Cansei de dar trabalho. Fui um fraco. Me esqueçam e sejam felizes.” Não o esqueceram, nem foram felizes. A imagem do corpo pendurado na corda ficou balançando na cabeça dos familiares.
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Aos cinquenta e poucos anos estava velho e sozinho: sem amigos, sem amor, sem família, sem ilusões, sem saúde. Imaginava que terminaria daquela forma, mas não contava com a tosse. Parou na porta do hospital às 15:00. Fazia calor. Sabia que, se fosse até a recepção, seria internado e só sairia morto. Ser entubado não o agradava. Decidiu não ficar. Jogou os documentos pessoais na lixeira e partiu. Caminhou com dificuldade até o metrô. Deu voltas, foi de uma estação para outra, gostava de ver a cidade pela janela do trem. Decidiu conhecer o lugar mais distante do mapa. Desceu na última estação e caminhou com dificuldade até o primeiro bar. Pediu conhaque e ouviu as conversas. Gostava de histórias. Quando cansou, pagou a conta, atravessou a rua e deitou na calçada. O céu estava estrelado. Tossia e observava as estrelas. Ventava. Folhas caíam das árvores. A tosse cessou às 03:00, quando os sabiás começaram a cantar. Morreu às 07:00, abraçado com o vento.
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Foi numa noite de primavera, com lua cheia. Estava deitado na calçada quando ouviu som de viola. Ficou arrepiado, como se lhe tivessem delicadamente tocado a nuca e o couro cabeludo. Que música! A viola o chamava. Foi para o campo. Era a primeira vez que voltava à terra em que crescera. A canoa descia o rio azul. A ararinha azul brilhava no topo da pedra. Aquela música tinha ritmo de rio: era azul. Ouviu os pássaros. Sentiu a brisa. Observou alvoradas e crepúsculos. Luz: muita luz. Viu o céu azul. Viu tudo azul. Morreu abraçado com o vento.
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Antes de saltar do topo do prédio e quando já estava grávida, a garota suicida começou a ter um sonho que se repetia. Num dia chuvoso a enxurrada descia a rua: molhando os pés dos pedestres, batendo nos pneus dos carros, arrastando sacos de lixo. Perto do meio-fio, entre a calçada e os automóveis, de braços abertos e barriga para cima, levado pela enxurrada: descia um bebê, descia até ser engolido pelo bueiro.
Ela não chegou a contar todo sonho, mas quando dizia que estava sonhando com bebê, respondiam que era sorte, e ficava por isso mesmo.
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Foi até a metade do viaduto, encostou no parapeito e coçou a careca. Respirou fundo, pegou o maço de cigarros no bolso da camisa, retirou um, acendeu e fumou tranquilamente. Olhou para baixo e pensou: “eu não sou daqui!” Lamentou não ter cabelos para balançarem na queda. Saltou mesmo assim. Com o corpo foram encontrados documentos, isqueiro e maço de cigarros.
No Boletim de Ocorrência registrou-se que era conhecido como Homerinho, que tinha passagem pela polícia, que escrevia versos e se matou sem deixar explicação.
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Era baixo, magro, careca e contava piadas. Era sempre o que mais ria das piadas que contava, começava a rir antes de terminar. Tinha olhos grandes, joelhos ossudos, riso leve. Não tinha sorte com as mulheres, às vezes fazia versos para elas, mas dificilmente os entregava. Teve poucas, raras amantes. Escrevia poemas em guardanapos que nem sempre guardava. Foi poeta. Mas nunca publicou um livro. Tomava cerveja e cachaça, cerveja com cachaça. Gostava de misturar as coisas. Lia livros e jornais. Reescrevia e misturava versos consagrados. Foi grande leitor. Amava as transições. Amava o movimento. Frequentava bares, especialmente um que ficava no centro da cidade e tinha máquina de música. Às vezes comprava fichas para ouvir canções. Era calmo. Nunca dirigiu automóveis. Jogou futebol, foi atacante de valor. Usava camisas com bolso no peito para carregar maços de cigarro. Fumava charmosamente. Por ser baixo, magro e escrever versos, ganhou o apelido: Homerinho.
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Teve poucas, raras amantes. No amor era reservista, compunha o exército amoroso de reserva. Contava suas amantes nos dedos da mão. Mas lembrava dos nomes, das roupas, dos cheiros, das cores e dos cabelos delas. Conhecia a consistência das carnes das amantes: das coxas, dos braços, dos sovacos, das costas, dos peitos, das bundas. Gostava de morder e lamber os pelos delas. Homerinho tinha o gosto dos sexos das amantes na ponta da língua.
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“Depois do coito os animais entristecem, com exceção do galo e da mulher” – teria dito o dr. Galeno. Homerinho nunca concordou com o médico famoso. O poeta era feliz, sobretudo, depois do amor, como o pássaro que canta quando a chuva termina. Momentaneamente livre do apetite sexual, lia com fartura e atenção. Depois do coito Homerinho buscava os livros, causando constrangimento e até tristeza nas amantes, o que depõe contra Galeno, apesar da reduzida amostra em questão (Homerinho teve poucas, raras amantes). Há os que fazem amor e dormem, o poeta fazia amor e lia. Homerinho desconfiava do dr. Galeno, que, com sua máxima, teria tentado cantar de galo.
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Para o noivo, ela era um animal de estimação, precisava ser protegida e alimentada porque, no futuro, geraria filhos fortes e saudáveis. Faziam amor como se fossem crianças brincando de casinha.
Para o amante, ela era um erro a corrigir. Ele até que tentava, mas não conseguia e não se perdoava. Pensava nela e no noivo dela, que era seu amigo de infância e corno.
Depois do coito, o noivo se alegrava, ela e o amante não. O noivo pensava no futuro e nos filhos que viriam. O amante pensava no mal que fazia a ela e ao amigo. Ela pensava nos orgasmos, que nunca vieram, nem com um nem com outro.
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Quando ela aparecia, o coração dele disparava. Deu um jeito de mudar de sala e de se aproximar dela. Quando ela disse que pretendia cursar administração, ele respondeu imediatamente: “eu também”. Ele passou em várias universidades, ela não. Ele teve dificuldade para explicar a escolha por uma universidade mediana, não podia dizer que o importante era estar perto dela. Tanto fez que começaram a namorar. O casamento veio depois, quando já estavam formados em administração de empresas. A cada beijo o coração dele batia mais forte. Ela dizia que nunca tinha visto nada igual e que ninguém a amara tanto. Mas o coração dela foi incapaz de acompanhar os batimentos do coração dele. Um dia ela disse que, para viver, precisava se apaixonar, e foi embora. Ele aceitou.
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passaria uma vida toda contigo
se tivesse outras vidas
para passar com outras pessoas
(Versos publicados num muro de São Paulo. Há quem diga que Homerinho é o autor do poema.)
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Vieram da Itália para São Paulo: pai, mãe e filhos pequenos. Não tinham parentes, não tinham casa, não tinham trabalho, não dominavam o idioma. Se arranjaram como puderam. O pai fazia bicos, o filho engraxava sapatos, a mãe e as filhas costuravam. As crianças se adaptaram à cidade. A mãe pouco saía de casa. O pai teve dificuldade no novo país. Quando se irritava (o que acontecia com frequência), ele pronunciava palavras e expressões desconhecidas dos cidadãos do lugar: “vaffanculo, ma che cazzo”. Mas a entonação denunciava o cunho vernacular e as intenções semânticas: “vaffanculo” saía vá fã cuuulo, ma che cazzo saía má que caaatzo. Os cidadãos riam, mãe e filhos se envergonhavam.
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O viaduto que liga o centro velho ao centro novo é atração turística de São Paulo. É também ponto de encontros e despedidas. Camelôs vendem bugigangas, ladrões batem carteiras, ciganas leem mãos, turistas passeiam, homens e mulheres se matam. Às vezes os suicídios são fotografados e filmados.
Estava decidida, dobrou à direita e avançou. Entraria para a conta dos que saltam do viaduto. Mas foi abordada por um homem, que lhe pediu para fotografar a família. Ela tremia, fotografou como pôde. Pai, mãe e filhos sorriram e agradeceram. Quando devolveu a câmera, uma cigana pegou-lhe a mão, leu e sorriu. Disse que ela seria feliz no amor e no trabalho. Então, entregou as moedas que tinha e hesitou. Rasgou a carta de despedida. Adiou o salto mortal. Voltou para casa a pé.
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Sem emprego, sem dinheiro, sem amor e com uma nova versão da carta de despedida, ela voltou ao viaduto. Estava desiludida e decidida. Dessa vez, saltaria. Entraria para a conta dos que pulam do viaduto. Dobrou à direita e avançou. O céu estava azul, sem nuvens e azul, absolutamente azul. Havia muita gente no viaduto. Evitou os vendedores, os batedores de carteira, os turistas e, sobretudo, as ciganas. Subiu e sentou no parapeito. As pessoas se agruparam perto. Mas não se aproximaram. Temiam precipitar o salto mortal. Apenas pediam que ela não pulasse, porque era jovem e tinha uma vida inteira pela frente (o que era o principal problema dela). Sentada no parapeito, ela olhava para o céu sem ouvir as pessoas. Mas recuou, rasgou a nova versão da carta de despedida e foi embora. Disse que era impossível se matar com céu azul. Foi aplaudida pelas pessoas, que não entenderam exatamente o que ela havia dito.
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À primeira vista e considerando literalmente o horóscopo, combinavam. Ele era de aquário, ela de peixes. Casaram. Para ele, a felicidade era um aquário cheio de peixinhos. Para ela, a felicidade era nadar contra a corrente, por rios e mares, em cachoeiras e águas profundas. Ela era de peixes, mas não era peixe de aquário. Tiveram que se entender. Tiveram duas filhas, para alegria dele. Mas ela, às vezes, procurava outras águas. À medida do possível, foram felizes. Ele com ela e as filhas. Ela com ele, com as filhas e com o melhor amigo dele.
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Foi amor anterior à primeira vista, se conheceram pelo site de relacionamento, marcaram o encontro para o dia seguinte. Quando, em tom de brincadeira, ela disse “eu acho que você não viveu todas as suas aventuras”, a mão dele estava na nuca dela e a boca dele no pescoço dela. Excitado, sussurrou: “não, com certeza, não.” Ela se afastou. Ele tentou explicar que aquela seria a grande aventura dele. Citou Quixote, disse que ela era a Dulcinéia da vida dele, a Dulcinéia reencontrada. Ela não gostou. “Dulcinéia? Quem é essa? Que nome ridículo” – ela pensou, mas não disse.
Não teve jeito. O amor que começou antes da primeira vista terminou depois da primeira falha de comunicação.
Ela queria um relacionamento sério e exigia fidelidade. Ele era fiel aos livros e, sobretudo, ao Quixote. Se dissesse que havia vivido todas as aventuras, trairia o Cavaleiro da Triste Figura, Homerinho não iria tão longe.
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Era sério e metódico. Aos quarenta anos, não tivera nenhuma paixão. Achava que era imune às paixões, que só os fracos se apaixonam. Mas quando conheceu a arquiteta, percebeu que tinha se equivocado. No primeiro encontro ficou espantado com a beleza e a inteligência dela. Apaixonou-se. Mas não houve segundo encontro. Para a arquiteta, o engenheiro era muito retilíneo.
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isso de querer sempre aquilo
ainda vai nos matar
de pronome demonstrativo
(Poema encontrado na gaveta do poeta que se suicidou. Abaixo dos versos estava registrado Para Paulo Leminski. Era uma espécie de mantra que Homerinho repetia nas mesas dos bares.)
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Homerinho escutou a conversa da arquiteta com o engenheiro. Tentava não prestar atenção, mas não conseguia. Ela gesticulava e comentava sobre arte, linhas e curvas. Era como se as palavras e os gestos dela fossem ligados por preposições: indissociavelmente unidos, delicadamente simétricos. Quando o engenheiro levantou para ir ao banheiro, Homerinho escreveu no guardanapo e entregou para arquiteta, que leu imediatamente:
que me desculpe o Vinicius,
mas o fundamental é a inteligência.
Ela sorriu e pensou no poetinha Vinicius de Moraes, tantas vezes lembrado em demandas amorosas. Sorriu e pensou com carinho nos poetas. Homerinho se levantou e partiu, não gostava de mostrar seus escritos. Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, ele se retirou.
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O engenheiro passou uma noite com a arquiteta, apenas e tão somente uma noite, uma noite e nada mais, uma noite e nunca mais. Falaram de arte e fizeram amor, fizeram amor e falaram de arte. Ele ficou espantado com a inteligência dela. Mas nunca mais a viu. E começou a sonhar com ela, encontrava-a nas curvas dos sonhos, mas não conseguia ver o rosto dela.
Para o engenheiro, a arquiteta era uma equação a ser resolvida. “Ou teria sido um sonho?” – chegou a se perguntar. Queria fazer amor com ela e queria, sobretudo, resolver aquela equação. Sonhava com ela todas as noites. Tempos depois, achou que a viu no metrô (ele estava num trem, ela em outro, ela estava de lado, com os cabelos cobrindo o rosto). Olhou fixamente através dos vidros, mas não teve certeza de que era ela. Os trens partiram sem ele saber se era ela. Nos sonhos do engenheiro, a arquiteta não tinha rosto.
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No dia em que a sorte bateu na porta do poeta, ele não estava em casa. Por muito tempo a arquiteta pensou em Homerinho. “O que diziam aqueles olhos grandes? Quem era aquele homem que ela mal chegou a conhecer?” Sabia que estava acompanhada quando o conheceu, mas com quem? Não se lembrava. Por que não o convidou para jantar? A arquiteta não se lembrava do engenheiro, mas guardou o guardanapo com versos do poeta. “O que aquele homem teria para dizer?” Para a arquiteta, o mistério é fundamental.
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Como seria o encontro do poeta com a arquiteta? Falariam de arte? Se embriagariam? Ficariam amigos? Transariam? Casariam? Teriam filhos? Viajariam? O que seria de ambos? Guardaria ele o gosto do sexo dela na ponta da língua? Continuaria ele sendo um mistério para ela?
Quando penso no poeta e na arquiteta, penso no que poderia ter sido. O acaso que une é o mesmo que separa. Tudo é por acaso.
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Primeiramente, o engenheiro esperou pela arquiteta. Pré-fabricou frases que usaria quando a reencontrasse. Não quis procurá-la. Estava convencido de que o encontro deveria ser casual ou partir dela.
Como o encontro não ocorreu, ele passou a sonhar com ela. Aos poucos a arquiteta foi se transformando em desenho desbotado na memória do engenheiro: nos sonhos dele, ela não tinha rosto. Mas ele guardou as palavras e as ideias dela. Por isso se lembrava da arquiteta quando topava com alguma daquelas palavras e ideias.
O tempo passou. O engenheiro casou e teve uma filha, mas não esqueceu a arquiteta. Achava que não a reencontraria, mas sonhava com ela. Um dia estava parado no trânsito do centro da cidade. Pelo rádio foi anunciada uma entrevista ao vivo sobre mobilidade urbana, direto do viaduto que liga o centro velho ao centro novo. A reportagem conversaria com os cidadãos e com uma especialista, que falaria das experiências de diversas cidades do mundo. Ficou arrepiado. Quando a jornalista disse o nome da entrevistada e fez uma pergunta, ele não teve dúvida: era a arquiteta. Veio-lhe uma violenta vontade de ver o rosto dela.
O engenheiro ouviu a entrevista espantado, era como se, tantos anos depois, ela falasse para ele, que prestava atenção no timbre e na entonação da voz, para guardar junto com as palavras e as ideias dela. Queria recompor o rosto da arquiteta a partir da voz dela.
Poderia estacionar ir até o viaduto. Estava próximo. Tremia diante da possibilidade de rever a arquiteta. O reencontro ocorreu pelas ondas do rádio e foi casual, como o engenheiro queria, mas as frases pré-fabricadas que ele diria se revelaram inúteis. Ele pensava na arquiteta e na esposa, pensava na arquiteta e na filha, pensava no que foi e no que poderia ser. Tentava recompor o rosto dela a partir da voz que ouvia pelo rádio. Mas não foi até o viaduto, era retilíneo.
Leia aqui a parte 3.
As obras que ilustram o texto são da autoria de Max Ernst (1891-1976).
Difícil mesmo é escolher, das duas partes, qual a melhor.
POR QUE NÃO (desembolorar & embalar) O ROMANCE?
Acabo de ler a terceira parte, e reitero o comentário anterior, efetuando (à guisa de mutatis mutandis): 2+1=3.
Lendo as histórias no celular, terminei e fiquei pensando na sensação que elas causam no leitor durante a leitura e ao final delas. Adormeci e a queda do celular de minhas mãos me trouxe de volta, agora pensando em Homerinho e no engenheiro retilíneo. Os suicidas me são familiares, mas…sinto falta de um suicida com a vida e com a cabeça em ordem. Um suicida retilíneo.