Por Jan Cenek

Leia aqui a parte 2.

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Ligou, ela não atendeu. Mandou mensagem, ela não respondeu. Ficou puto. Como era religioso, apelou para a fé. “Deus é tão bom que colocou muita mulher no mundo pra gente comer” – escreveu e mandou para ela, que ignorou.

A mensagem do religioso não irritou a arquiteta, que até achou graça da estupidez do sujeito. Mas, por outro lado e por contraste, ela lembrou com carinho dos versos que o poeta havia registrado num guardanapo de papel.

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Na cama, olhos nos olhos, a arquiteta disse para o universitário:

– Meu corpo, minhas regras!

Ele respondeu:

– Minha mulher, minhas regras!

Ela retrucou:

– Nada como um amor depois do outro.

Olharam-se fixamente e, aos poucos, começaram a rir. Não conseguiram conter o riso. Rolaram na cama rindo. Fizeram amor e nunca mais se encontraram.

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A poesia é imprevisível. Quando finalmente lhe vieram versos que o colocariam entre os grandes poetas da humanidade, ombro a ombro com seu xará grego, Homerinho estava no lugar errado (a sorte bateu na porta, mas ele não estava em casa). Deitado em cima da cama e debaixo da amante, não tinha como registrar suas sacadas chamejantes, que iluminaram o quarto escuro. Tirou as mãos do corpo dela, tentou alcançar papel e caneta, mas não conseguiu. Não teve como sair debaixo da amante. Ele procurava se desvencilhar, ela se movimentava com mais força. Tentou memorizar aqueles versos, mas falhou. E pior: começar a pensar é começar a broxar. Broxou duas vezes: a primeira no mundo das ideias, a segunda no mundo real; a primeira como farsa, a segunda como tragédia.

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Em casamentos longos, o amor, como o carro velho, só pega no tranco. Faziam amor no fundo da madrugada, sempre que ele, dormindo, passava as mãos pelo corpo dela, encostava-se e arrancava-lhe a roupa com vigor, como nos primeiros tempos. Ela esperava ansiosamente por aquelas madrugadas. O amor pegava no tranco sempre que ele sonhava com outras mulheres. Ela não se importava.

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Homerinho bebia para se soltar, mas sempre se enroscava. Era atrapalhado, poeta e leitor. Não tinha sorte com as mulheres. Teve raras, poucas amantes. No amor era reservista, compunha o exército amoroso de reserva. Mas naquela tarde foi diferente. Parou no bar, puxou uma cadeira e sentou (gostava de beber nas calçadas da cidade). Abriu o jornal. Pediu cerveja e cachaça, como sempre fazia, gostava de misturar e se misturar. No primeiro gole seu olhar se encontrou com o de uma jovem, que passava ao lado. Ficou espantado. Ficou ainda mais espantado quando percebeu que as mulheres passavam e o olhavam. Tomou muita cerveja e muita cachaça. Ficou bêbado de alegria. Escreveu versos no guardanapo. Pensou que a sorte tinha chegado. Dormiu feliz. Não percebeu que as mulheres olhavam para a vitrine da loja atrás dele, e não exatamente para ele.

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a rainha comeu o rei
que comeu a torre
que comeu o cavalo
que comeu o bispo
que comeu o peão
que não comeu ninguém

(Poema de Homerinho registrado num guardanapo e dedicado a Carlos Drummond de Andrade e Carlos Seabra.)

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Milan Kundera divide os sedutores em dois grupos: líricos e épicos.

Os sedutores líricos procuram a mulher ideal. Como o ideal não existe, eles trocam de amantes constantemente e se frustram. Mas são absolvidos porque se frustram e se arrependem (frustrados e arrependidos só toleram os que se frustram e se arrependem).

Os sedutores épicos procuram a infinita diversidade do mundo feminino. Buscam o que é infinitamente particular em cada mulher. Como a particularidade é inesgotável, trocam de amantes constantemente e não se frustram. São condenados exatamente porque não se frustram nem se arrependem (frustrados e arrependidos não toleram os que não se frustram nem se arrependem).

Tomas – o libertino do romance A insustentável leveza do ser – foi um sedutor épico. Fez amor com cerca de 200 mulheres, era cirurgião, foi transformado em limpador de vidros. A arquiteta – a colecionadora de homens destas 101 histórias de amor – foi uma sedutora épica.

Pensando nos sedutores líricos e épicos, ocorreu-me que também é possível dividir os fracassados do amor em dois grupos: trágicos e cômicos.

Os fracassados trágicos procuram e acham a pessoa ideal, mas estas não acham o mesmo e se livram deles. Encontrar e perder o grande amor é insuportável. Estar absolutamente certo de ter encontrado a pessoa ideal e perdê-la: que destino atroz! Por isso é comum encontrar fracassados trágicos debaixo de trens, enforcados, nas cadeias, nos divãs dos psicanalistas ou debruçados nos balcões dos botecos. Os fracassados trágicos atravessam a fronteira que os sedutores líricos se limitam a contornar.

Já os fracassados cômicos usam métodos de flerte em desuso. Como o poeta, que, no tempo dos aplicativos de relacionamento, privilegiava a redação de versos em guardanapos. O problema não eram as mensagens, era o meio. O fracassado cômico é um ator que interpreta uma peça no teatro errado. É puro desencontro. É um cidadão que comparece a uma audiência judicial em trajes de banho. O cômico brota do emprego de técnicas ultrapassadas e do desencontro: como o soldado que vai à guerra com um estilingue, ou o adolescente que se masturba usando preservativo.

Fracassados trágicos são mais comuns que fracassados cômicos. O engenheiro foi um fracassado trágico. Homerinho foi um fracassado cômico.

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Quando soube que haviam continuado seu livro, Cervantes não hesitou, escreveu a segunda parte de Dom Quixote e fez o próprio cavaleiro desmentir o escritor impertinente. Depois entregou Quixote “com siso” e sem vida: tinha “o juízo livre e claro, sem as sombras caliginosas da ignorância” causadas pela “leitura dos detestáveis livros de cavalaria”. Assim ninguém continuaria a história do Cavaleiro da Triste Figura.

Questionado pelo tribunal, intimado a dizer em quem se baseou para criar uma das mulheres mais fascinantes da literatura, Gustave Flaubert teria dito: “Emma Bovary sou eu.” Foi sincero. Frequentavam os mesmos ambientes, liam os mesmos livros. Glória máxima do romancista: ser julgado como se o texto fosse um fato.

Quixote se perdeu nos livros de cavalaria, queria combater como os cavaleiros andantes, a vida pacata de fidalgo não lhe bastava. Emma Bovary se perdeu nos romances, queria amar como nos livros, a vida pacata de dona de casa não lhe bastava. Ela “buscava saber o que significavam exatamente, na vida, as palavras felicidade, paixão e embriaguez, que tão belas lhe pareceram nos livros.” Seu grande amor começou numa conversa sobre literatura: “assim estabeleceu-se entre eles uma espécie de associação, um comércio contínuo de livros e romances.” O marido, “pouco ciumento, não se admirava.” Emma nadou contra a corrente, por rios e mares, em cachoeiras e águas profundas. Um dia não aguentou mais nadar contra a corrente e se afogou.

Homerinho se perdeu porque queria se perder, não suportava nem rotas nem rotinas. A vida agitada na cidade mais populosa do hemisfério Sul não lhe bastava. Queria combater como Dom Quixote. Queria amar como Emma Bovary. Compartilhava com ambos a sensação de deslocamento, como se a vida estivesse em outro lugar. Queria cair como folha de ipê. Buscou o novo até o último segundo, até no último salto.

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Também eu sou Emma Bovary! Não porque li os mesmos romances, nem porque fui infiel. Logo no início percebi que o destino seria cruel com a personagem de Flaubert, era questão de tempo. As páginas vão passando e o cerco se fechando. Passo a passo, Emma é empurrada para o abismo.

É interessante pensar que o destino trágico de Emma Bovary não aplacou a ira dos conservadores, que apesar disso levaram Flaubert para o banco dos réus. O que teriam feito com a adúltera? O romance de Flaubert escancara a hipocrisia burguesa, o que explica por que o escritor foi colocado no banco dos réus. Mas não é a denúncia social que mais me atrai no livro.

Quando digo que também eu sou Emma Bovary é porque, como ela, me sinto clandestino. O cerco que se fecha contra Emma é sufocante. Tenho vontade de gritar para ela ter cuidado, de intervir na história, de dizer estou contigo. Queria que Dom Quixote conhecesse Emma Bovary. Imagino o cavaleiro defendendo a adúltera, promovendo desagravos, açoitando caluniadores, agiotas e moralistas. Emma não pôde sequer compartilhar suas angústias, teve apenas um marido complacente e amantes que a amaram pela metade. Faltaram-lhe amigas e confidentes. Foi, neste sentido, sobretudo clandestina. Precisou se esquivar de tudo e de todos, sua vida foi uma grande fuga em marcha a ré.

Aos que se sentem clandestinos restam duas alternativas: nadar contra a corrente até se afogar ou escrever. Optei pela segunda possibilidade. Estas histórias têm a ver com a minha clandestinidade.

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Milan Kundera escreveu sobre a significação mágica do círculo. Um dia ele teria dito algo que não deveria e foi colocado para fora da roda, aconteceu no meio do século XX, na então Tchecoslováquia. Daquele dia em diante Kundera só caiu. Quem se afasta de uma fila ainda pode voltar, mas quem é excluído de um círculo está condenado para sempre, porque a roda se fecha impedindo o retorno de quem foi expulso. A alguns é permitido morrer no turbilhão dos acontecimentos, a outros só resta se arrebentarem no final da queda. O escritor tcheco entre estes.

Se Milan Kundera foi posto para fora da roda pelo que disse, Emma Bovary foi expulsa da roda pelo que fez: amou fora do casamento, foi mãe displicente, se endividou e comprometeu o patrimônio familiar. Cercada por todos os lados, se matou.

Ninguém caiu tanto quanto Emma Bovary. Quase duzentos anos depois da sua morte, ela continua caindo. Há quem leia no romance de Flaubert uma denúncia contra a sociedade francesa do século XIX, o que certamente é verdade, mas não é toda verdade. Se Madame Bovary é apenas uma denúncia contra seu tempo, por que Emma continua caindo? Capitu fez jus ao benefício da dúvida. Ana Karenina sofreu e começa a ser redimida. Mas Emma Bovary continua caindo. Sísifo foi condenado a empurrar uma pedra montanha acima, Emma foi condenada a ser condenada eternamente.

Ela foi mãe displicente, esposa adúltera e comprometeu os bens da família. As acusações procedem, Emma não as negaria. Mas os acusadores são sinceros? Desconfio que não. Eles não a condenam exatamente pelas acusações que formulam. Há neles uma covardia inconfessável.

Se tudo é mercadoria, se a sociedade é comandada por frustrados, covardes e arrependidos, não há espaço para Emma Bovary. Ela é um espelho que reflete a baixeza dos que a acusam. Emma não foi apenas leitora de romances (“mesmo à mesa levava um livro e virava as páginas enquanto Charles comia e falava-lhe”), foi, sobretudo, coerente. Deixou uma carta em que registrou: “não acusem ninguém.” Muitos a acusaram e a acusam, ela não acusou ninguém.

Emma Bovary choca porque não se arrepende, ama fora do casamento “sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego.” Ela não se intimida com a ameaça de ser colocada para fora da roda. Como os frustrados, os covardes e os arrependidos não toleram quem não se frustra, nem se acovarda, nem se arrepende: Emma precisa morrer. Ela engole arsênico como Sócrates engoliu cicuta. É liquidada pelo capitalismo e pelo patriarcado.

A mulher culta – leitora de Balzac e Scott – precisa ser eliminada porque ousou ser ousada, seus amantes seguiram suas vidas normalmente, a poligamia lhes é permitida. Eles dormem tranquilos enquanto o corpo dela é velado: “Rodolphe, que para distrair-se andara o dia todo, dormia tranquilamente em seu castelo; e León, lá em Rouen dormia também.” Ela se despede da vida. Eles não se despedem dela.

É possível dividir os acusadores de Emma Bovary em dois grupos: uns, mais tradicionais, a condenam porque reverenciam a ordem patriarcal, que autoriza a poligamia apenas para os homens; outros, ainda mais conservadores, condenam Emma para depois tentar condenar seus amantes e os libertinos em geral. Por trás dos dois grupos está a moral cristã a ensinar que a carne não vale, que sexo é pecado, que a mulher deve ser submissa, que é preciso se arrepender.

Mas Emma Bovary faria tudo novamente. Ela não se arrepende. Ela é uma negação inexpugnável: despediu-se da vida com um “riso atroz, frenético, desesperado”. Desespero libertador. Desespero dos que não esperam absolutamente nada. Evoé, Madame Bovary!

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Gostava de filosofia, misticismo e empreendedorismo. Mas ganhava pouco, mal conseguia se sustentar, costumava atrasar o aluguel. Quando saia com a amante tinha dificuldade para dividir a despesa. Foi forçado, cada vez mais, a fazer bicos. Um dia – caminhando pela cidade por falta de dinheiro para a passagem de ônibus – viu um anúncio: “Pai Platão: trago até amor platônico!” Imaginou cartões e cartazes com a marca e o slogan. Distribuiria o material em pontos de ônibus, escritórios, fábricas, salões de beleza, igrejas e universidades. Não teria mais problemas com a falta de dinheiro se tivesse tido aquele insight – lamentou.

Leia aqui a parte 4.

As obras que ilustram o texto são da autoria Hans Hofmann (1880-1966).

1 COMENTÁRIO

  1. O Homerinho e a épica sedutora arquiteta já lhe são dois grandes personagens. Principalmente pq o Homerinho personifica o fracasso cômico. É o fracasso e o cômico em ato. Mas alargar as possibilidades existenciais da épica e da lírica dos sedutores para o cômico e o trágico dos fracassados talvez tenha sido um achado que escapou ao romancista tcheco. Imagino um fracassado trágico diante de uma sedutora épica…pobre diabo.

    *** *** ***

    Ah, me esqueci…talvez Flaubert tenha desejado declarar sua solidariedade e sua admiração pela conduta de Madame Bovary diante de tudo. Se foi assim, Madame Bovary somos nós.

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