Por Davi

Hoje completam-se 10 anos do início do que ficou conhecido como as jornadas de junho de 2013. Na época ouvi na minha escola sobre a campanha do Movimento Passe Livre contra os aumentos das tarifas de ônibus, trem e metrô em São Paulo. Fui convencido por todos os argumentos contrários ao aumento, que favorecia empresas de ônibus disfuncionais, que encarecia o custo de vida de todos os trabalhadores que dependiam do transporte, principalmente dos paupérrimos, e no mesmo sentido, restringia o acesso a todos os outros direitos que precisam de transporte para serem efetivados. A pergunta era simples: a quem interessava o aumento nas tarifas de transporte público?

Foi com esse senso de justiça que fomos às ruas dia 6 de junho, no Theatro Municipal, dizendo em alto e bom som que se a tarifa não baixasse, a cidade iria parar! Tivemos pouco crédito dos gestores naquele momento, quando estávamos em alguns milhares, por isso eles se sentiram à vontade para nos bombardear com gás lacrimogêneo e balas de borracha. Conseguimos nos manter mesmo assim por um bom tempo, realizando novas convocações.

Depois da repressão física, veio a repressão moral nos veículos de grande imprensa, atacando-nos de todos os modos e tentando jogar a população contra nós e a reivindicação. Continuamos nas ruas, crescendo aos milhares na mesma medida que a repressão brutal da polícia aumentava. O estopim foi o dia 13/06, quando fizeram chover gás lacrimogêneo no centro de São Paulo, houveram 240 detidos, dezenas de feridos, muitos deles jornalistas. Os abusos policiais eram filmados e transmitidos rapidamente pela internet. Vimos cenas de PMs quebrando as próprias viaturas, batendo em pessoas que não resistiam, atirando gás lacrimogêneo dentro de casas e apartamentos. A população finalmente tomou um lado, sentiu que precisava agir, e não era a favor da polícia e nem dos governos.

Tivemos então nos dias 17 e 20 de junho uma das maiores revoltas populares da história do Brasil, com milhões de pessoas nas ruas, alcançando todas as regiões da nação e fazendo com que mais de 100 cidades reduzissem as tarifas do transporte público. Tínhamos virado o jogo, nos sentimos fortes e conseguimos imaginar um futuro em disputa. Pela primeira vez, numa sucessão de derrotas, um movimento popular conseguiu barrar os aumentos de tarifa na cidade e no estado de SP. A solidariedade com os manifestantes brasileiros alcançou dimensões mundiais. Ali, para muitos, começou um sonho de uma outra vida, mais justa, e isso inspirou outras lutas, greves e iniciativas nos meses e anos seguintes.

Junho mudou a história do Brasil em diversos sentidos. Sim, criou uma fissura nos governos petistas que a nova extrema-direita conseguiu aproveitar. Sim, inspirou movimentos de extrema-direita que se aproveitaram da ideologia difusa daquela multidão que saía às ruas e conseguiram canalizar a insatisfação para pautas reacionárias. Nada disso desmerece a importância que aqueles longos dias tiveram enquanto exemplo de resistência, solidariedade, coragem e luta, produto de um histórico de outras lutas pelo transporte já há muito esquecidas. Ao menos uma vez, num período recente, foram os trabalhadores que deram as cartas e saíram vitoriosos. Junho continuará a ser difamado pela esquerda governista, pois foi algo fora do seu controle e objetivos. Será propositalmente esquecido, distorcido e apropriado pelos grandes veículos de imprensa, pelo centro e pela extrema-direita, pois essa é a praxe da classe dominante quanto às histórias de luta da classe trabalhadora.

Percorremos um longo caminho desde então e o mundo já não é mais o mesmo, as ruas perderam sua eficácia e caráter contestatório, manifestações viraram parte da rotina, a repressão se aprimorou e movimentos refluíram por seus próprios limites e contradições internos.

Dez anos depois, pouco ou nada daquele sentimento de futuro em disputa ficou. Nos sentimos muitas vezes limitados a observar passivamente os acontecimentos “de importância”, o mundo continua com sua mesma indiferença, tendendo a piorar e, ao que parece, ficamos mais afogados, isolados e distraídos. Mas, apesar de tudo isso, penso que quem vivenciou aquelas semanas nunca acordou verdadeiramente daquele sonho, e esse talvez tenha sido o maior erro dos governantes de ocasião: terem nos deixado sonhar por um momento. “Não começou em Salvador, não vai terminar em São Paulo” era uma das nossas palavras de ordem. Os processos e consequências de junho não começaram e nem se encerraram naquele ano. Embora numa realidade mais obscura, o sonho de um outro mundo persiste, e enquanto conseguirmos sonhar ainda teremos alguma chance de mudar nosso destino. Já dizia a canção: “sonhos não envelhecem”. Nós ainda nos lembraremos daqueles dias.

4 COMENTÁRIOS

  1. Compreender junho de 2013 é essencial para entendermos o que nos levou até aqui. A nova extrema-direita talvez tenha nascido de seus desdobramentos (embora já estava gestando anteriormente), e a velha esquerda hegemônica demoniza 2013 e diz que não passou de uma manobra americana para desestabilizar o partido então no governo. Mas junho de 2013 foi muito mais do que isso. Tem raízes em pequenas lutas populares e autônomas, e com uma confluência de fatores a luta de classes foi novamente colocada nas ruas. Seria interessante o Passa Palavra fazer uma seleção de textos sobre junho de 2013. Linkar textos próprios e de outros sites sobre o evento, para estar tudo em um só lugar. Algum conhecedor mais profundo do tema se habilita?

  2. Paulo Henrique,
    Da parte do Passa Palavra, existe o dossiê Jornadas de Junho: https://passapalavra.info/2014/06/95887/

    Como arkx postou vídeos, deixo aqui um pouco da repercussão da mídia na época:

    Reviravolta em enquete no programa Brasil Urgente dia 13/06/2013:
    https://www.youtube.com/watch?v=7cxOK7SOI2k

    Vídeo do ato do dia 13/06/2013 em São Paulo feito pelo coletivo oitentaedois:
    https://www.youtube.com/watch?v=B2kDyGSCQCY

    Íntegra do Jornal Nacional do dia 20/06/2013:
    https://www.youtube.com/watch?v=kwzyaiE1aos

  3. Obrigado Davi e Arkx Brasil. Mas eu estava me referindo sobre textos mais recentes. Análises mais gerais e atuais sobre 2013 e seus desdobramentos.

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