Por Vitor Ahagon
Começo do ano. Meio aliviado, meio angustiado. Quando chego na escola, recebo a notícia de que vou dar uma matéria que não faço ideia do que seja. “Tem programa? Não! Tem ementa? Não! Tem bibliografia? Tampouco!” Gostaria de ter perguntado: “tem ideia do que seja?”, sendo a resposta óbvia: “você está de brincadeira?” Foi assim que o Novo Ensino Médio chegou na minha vida, mas também na de um monte de educas [professores] em várias cidades do Brasil.
Por um outro lado, as/os/es estudantes tinham recebido a promessa da tão calorosa e valorosa liberdade liberal: a da escolha. “Você pode escolher qual caminho quer traçar desde já! Humanas? Exatas? Biológicas?” Sonhos que, quando se materializaram, mostraram-se como pesadelos. Pior, se revelaram como sonhos roubados! Mas é claro, os empresários roubam tudo: força de trabalho, poder, dignidade e, agora, também o sonho…
Ainda bem que não vivo apenas a vida medíocre do trabalho alienante, o que não significa que esteja longe do sofrimento e da raiva que é viver sob o signo e o chicote do capital e do pau de arara do Estado. Mas, fora da escola, num contexto bem diferente dessa instituição, sou, também, educador do Cursinho Livre da Norte, e, nos últimos meses, estamos fazendo uma série de conversas sobre a “Reforma” do Ensino Médio em escolas públicas.
Este é um pequeno relato do que ouvimos e vimos nessas atividades.
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25/04: Após manifestações e mobilizações de estudantes e professores/as, o governo recua e suspende a implementação da Reforma do Ensino Médio.
Em meio às várias conversas sobre os ataques do capital à educação e a suspensão do Novo Ensino Médio, fomos à ETEC do Mandaqui, que fica na Zona Norte de São Paulo, fazer uma conversa com as/os/es estudantes. Fomos recebidos pelo professor Ricardo, que dá aulas de português e literatura. O companheiro, pesquisador e professor João Branco, nos acompanhou nessa atividade e falou para estudantes do ensino médio e técnico. A sala era grande e tinha um bom projetor. Estrutura de ETEC! Mesmo assim, durante o debate, percebemos que havia conflitos que estavam logo abaixo da epiderme. Uma mistura de desconforto e anestesia pareciam mediar a relação entre estudantes e instituição, e, durante a conversa, esses conflitos latentes, somados às novas condições do NEM [Novo Ensino Médio], emergiram. As estudantes queriam ser ouvidas.
Nesse instante me lembrei do livro “Memórias da plantação”, de Grada Kilomba. Logo no começo, a artista e psicanalista lembra das histórias de Anastácia sobre as máscaras do silenciamento. A máscara era usada pelo senhor branco para evitar que escravizadas/os comessem cana de açúcar ou cacau nas plantações, mas “sua principal função implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era o lugar de silenciamento e tortura”.
Me parece que a escola pode ser vista como uma máscara dessas, que, diferente das máscaras grotescas e horripilantes do período colonial, a máscara escola busca se apresentar como democrática e inclusiva, mas que possui a mesma função: evitar que os descendentes de Anastácia comam e falem. Agora, com o Novo Ensino Médio, essa máscara se torna ainda mais sofisticada. Ela quer se apresentar atraente, bonita e festiva, mas quando a/o/e estudante a coloca, logo percebe para que foi construída. Assim como a máscara colonial servia aos senhores de engenho, a máscara escola continua servindo esses mesmos senhores brancos da plantation financeira.
Então, veio a pergunta: mas o que devemos fazer, então? A mesma pergunta que nossos antepassados fizeram quando a máscara colonial foi colocada. A resposta que elas/es deram foi a rebelião, o aquilombamento. Nossa resposta à pergunta da estudante não poderia ser outra: organização! Vejamos o que aconteceu em 2013, 2015, 2016 e aprendamos com essas experiências.
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29/04: enquanto estávamos organizando e articulando para fazer atividades sobre o novo ensino médio, uma onda de ataques às Escolas tomou o Brasil no mês de abril de 2023. Diante dessa situação, veio a dúvida: será que esse processo de privatizações e formação do sujeito neoliberal tem alguma relação com esses ataques? Pensando nessas e em outras perguntas, chamamos o educador popular, professor do município de São Paulo e militante anarquista Kauan Willian para fazer uma conversa com as/os/es estudantes do Cursinho Livre da Norte e nas nossas redes sociais. Com a conversa, pudemos pensar sobre a violência nas escolas e quais são as especificidades dessa violência em particular, principalmente sua forte aproximação com a extrema-direita e o nazifascismo.
A fala do companheiro me fez pensar na maneira como o filósofo Umberto Eco discute a questão do fascismo. Fiquei pensando cá com meus botões que a forma como Eco apresenta o fascismo seja muito próxima àquela que os anarquistas fazem. De Camilo Berneri a Luigi e Luce Fabbri, o fascismo é visto como um produto das contradições do capitalismo, mas não apenas. O fascismo é a atualização do autoritarismo que está enraizado nas sociedades modernas e o que escreveu Umberto Eco sobre o fascismo nos ajuda muito a entender como esse autoritarismo fascista consegue se metamorfosear e se adaptar em tantos lugares em momentos distintos da história.
O fascismo é uma bricolage ideológica. Para Eco, o fascismo não era uma ideologia monolítica, muito pelo contrário, era uma colagem de diversas ideias políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições, uma “confusão estruturada”. Justamente por reunir tantas referências diferentes, o fascismo pode se adaptar facilmente, pois pode eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, mas sempre será reconhecido como fascista. Por mais que sejam diferentes um dos outros, os fascismos de antes e de outros lugares e os fascismos de hoje e os daqui, todos possuem uma semelhança de família.
E essa herança familiar fascista é o que podemos perceber nas ideias, práticas e, principalmente, nos símbolos por trás dos atentados. O fascismo está mais perto de nós do que podemos imaginar, seja na rua, na escola ou em nós mesmos.
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09/05: mais uma atividade sobre o NEM. Dessa vez conseguimos falar com a coordenação da escola Canuto do Val, que fica perto do Fórum da Barra Funda. Logo ali, no fórum, um tanto de gente, logo cedo, buscando resolver suas questões com a tal da Justiça, esperam. A justiça é tão cega que não vê o óbvio, as pessoas que julga.
Esse é justamente o assunto da conversa com as e os estudantes da escola: quão justo é o Novo Ensino Médio? A professora da Unicamp, Carolina Catini, sem pestanejar, aceitou nosso convite para a atividade. Saindo do município vizinho logo cedo, nos encontrou para quatro aulas na Canuto Val com os primeiros anos do médio.
Foi pedreira! Muito diferente da ETEC, nossas conversas foram nas próprias salas de aula. Acho que o que mais surpreendeu nem foi a falta de estrutura, o que é esperado de quem já conhece a escola estatal, mas foram as falas das e dos estudantes. De muitas formas diferentes, disseram a mesma coisa: estamos cansados, estamos esgotadas!
É isso! O neoliberalismo educacional retira tudo de estudantes, de professoras e professores. O pior… acreditamos que o responsável somos nós mesmos. Foi gigantesco o esforço em falar que temos que nos organizar, que temos que lutar. A realidade brutalizante se impunha brutalmente. Como nos humanizar diante da brutalidade?
Conversando com o professor, ele nos relata que tem que dar uma aula que se chama “materiais”. O que é isso? Eu pergunto, e ele responde: eu ensino eles a fazerem cimento e tijolo. Silêncio, porque não precisávamos dizer mais nada. Não precisávamos dizer mais nada, porque essa era uma história que já nos contavam há muito tempo. Desde Proudhon, Marx e Bakunin até hoje, uns trabalham manualmente e outros intelectualmente. O filho da trabalhadora não tem o direito de pensar. A filha do trabalhador tem a obrigação de pegar no pesado. Enquanto uns com aulas de robótica, outros com aulas de bolo de pote gourmet. Como disse um estudante que dou aulas, “fazer o quê?! O mundo é injusto!”. Só com muito cinismo para conseguirmos sobreviver mesmo…
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16/05: quando chego no Matão, logo percebo a diferença em relação ao Canuto. A escola era clara, as luzes entravam no corredor… que estranha sensação. A diretora da escola me recebeu, muito simpática, e no caminho para a sala onde estava acontecendo o debate, vejo algumas salas de aula com as portas abertas. Nelas, as\os\es estudantes estavam em frente a computadores. Caramba!
Nesse dia, havíamos combinado com os secundas [secundaristas] em luta para fazer a conversa. Na sala, estavam estudantes de todas as séries e salas. Depois ficamos sabendo que o professor de filosofia, que também estava na atividade, escolheu alguns\as\es estudantes para participar do debate. Pessoas que ele julgou que teriam interesse e que participariam mais. Não sei se as outras pessoas não participariam, mas sei que esse grupo fez tantas falas, intervenções e análises que, se deixássemos, ficaríamos conversando sobre o assunto o dia todo.
Muitas coisas foram ditas sobre o NEM: foi falado sobre o déficit nos conteúdos, das aulas não fazerem sentido, da redução de algumas matérias, a precarização da educação, a evasão escolar, como se sentiam incapazes de prestar o vestibular e da dificuldade de se encaixarem nos itinerários que estão fazendo. Uma estudante falou da angústia que é fazer um itinerário que não foi ela que escolheu, mas seu pai, que julgou que fazer exatas seria melhor para o futuro dela do que fazer um itinerário ligado à arte. Falaram da sensação de cansaço e esgotamento das aulas que têm com um professor quase o dia todo, comentaram da sobrecarga de conteúdos vazios e como isso os desestimula a estudar. A impressão final foi que com o Novo Ensino Médio não se aprende nada!
O que fazer diante dessa realidade massacrante? Os secundas em luta, lembraram das ocupações das escolas de 2015 e 2016, das quais o pessoal não sabia da existência. O esforço pelo resgate da história recentíssima foi a chave para se pensar alternativas possíveis. Por mais que estivéssemos falando da desgraça que é o NEM, saímos de lá animada/os, com o espírito renovado para continuar falando, mas principalmente, escutando.
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01/06: Dessa vez, a iniciativa da atividade não partiu de nós do Cursinho Livre da Norte. Um dos professores da Escola Estadual Benito Tolosa, entrou em contato pelas nossas redes sociais, perguntando se poderíamos organizar uma atividade sobre a Deforma do Ensino Médio por lá, o que aceitamos de pronto.
A ideia para a atividade foi exibir o filme do cineasta Carlos Pronzato, que havia sido recém lançado, “NEM (Novo Ensino Médio): Um fracasso anunciado”, e que está disponível no canal do YouTube do cineasta. Até o momento em que escrevo este relato, o documentário teve quase 28.000 visualizações, o que mostra a relevância do tema e da obra de Pronzato. Mas diferente de assistir um filme no conforto do seu lar — o que, aliás, adoro —, assistir juntos e debater o que vimos, produz novos sentidos e esse era, justamente, nosso objetivo.
Conforme fomos assistindo, tanto as vozes dos\as\es estudantes entrevistados, quanto de educas, foram ecoando no público. Interessante perceber no outro o momento do reconhecimento, da identificação. Mas sempre é conflituoso se identificar com a precarização. Para algumas pessoas, essa sensação produz raiva e move para a luta, para outros uma vitimização, que conduz a uma inação. Ainda existe uma terceira reação, essa que se tornou mais visível após o bolsonarismo: a de estudantes que se reconhecem na precarização, mas que a denegam e debocham daqueles e daquelas que se melancolizam, mas principalmente, dos que lutam.
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Desde a aurora da modernidade, o capitalismo cindiu a subjetividade do sujeito em duas partes. Os estudantes bolsonaristas, não querendo se verem impotentes, debocham daqueles que têm potência. Os estudantes bolsonaristas não conseguem perceber que essa impotência advém do isolamento e atomização do indivíduo, despersonalizado e sujeitado. Já a potência dos que lutam, sobrevém da comunhão entre os sujeitos. Portanto, da construção coletiva da luta.
Como disseram as\os\es estudantes nas atividades, com o Novo Ensino Médio não se aprende nada, mas não porque é uma anomalia do sistema educacional. Por mais que soubéssemos que não era verdade, essa era a desculpa usada em relação ao ensino médio anterior. O esvaziamento da educação é um projeto que tem por objetivo criar mão de obra barata, mas também construir uma subjetividade sujeitada às novas condições do trabalho uberizado. Por isso, é impossível desvincular a Reforma do Ensino Médio, da Reforma Trabalhista a da Previdência.
A Neoliberalização do trabalho e da subjetividade, demanda o resgate\criação de formas de luta e organização coletivas de sujeitos singulares. Pessoalmente, não considero que a forma partido seja capaz de agregar sujeitos singulares na luta coletiva, muito menos ainda considero que a disputa parlamentar seja o caminho para se antepor ao projeto neoliberal. É mais do que urgente fazermos um balanço das lutas sociais autônomas travadas, pelo menos, desde os anos 1980 no Brasil e no mundo.
Das lutas recentes e que estão sendo travadas contra a Reforma do Ensino Médio, uma iniciativa humilde, mas potente é aquela que está sendo feita pelo Cursinho Flor de Maio, A Voz Rouca, O Mal Educado e o próprio Cursinho Livre da Norte. Recentemente, os coletivos lançaram um Zine onde o NEM é destrinchado. Certamente que esse pequeno esforço não será o suficiente para revogar o NEM, mas certamente vai colocar mais uma gota num copo d’água que está se enchendo. Enchendo o saco! NEM VEM!
As obras que ilustram o artigo são da autoria de Jean Dubuffet (1901-1985).
Otimo texto.