Por Pablo Polese
Há um recente artigo de Vladimir Safatle onde o filósofo diz, tratando do significado das revoltas populares de junho de 2013:
“Talvez fosse o caso de começar afirmando que 2013 foi o último ano da história da esquerda brasileira e de suas estruturas hegemônicas. Essa revolta popular ressoa ainda como uma espécie de acontecimento não integrado, com uma rede de potencialidades que continua a nos assombrar de forma espectral. O que ocorreu depois de 2013 foi uma lenta e contínua degradação marcada pela atrofia da capacidade de ação e da imaginação política da esquerda brasileira em seus múltiplos partidos, em seus sindicatos e em seus movimentos sociais. Depois de 2013, a esquerda brasileira tornou-se basicamente uma força reativa que responde desesperadamente à capacidade de constituir agenda política e pautar mobilização popular da extrema direita”.
Sobre esse trecho, gostaria de pontuar uma pequena, porém importante divergência. A meu ver não houve uma lenta e contínua atrofia da capacidade de ação e imaginação da esquerda a partir de 2013 e sim 2013 foi uma resposta autônoma dos trabalhadores a essa atrofia, que já estava consolidada. É por não aceitar e não poder aceitar isso que a leitura esquizo-petista de junho interpreta aquela revolta popular como chocadeira golpista do fascismo e da extrema-direita brasileira. Em 2013 já não havia na esquerda hegemônica órgãos de luta capazes de ação radical, insurgente, embora estivessem dadas as condições objetivas para uma revolta popular de larga escala, que por isso se deu como podia se dar: uma revolta sem direção, fruto da confluência de interesses de muitas forças sociais.
Centrada em precárias experiências localizadas de luta social em bairros e periferias, a esquerda anticapitalista existente naquela conjuntura não podia e por isso não foi capaz de forjar uma bandeira aglutinadora das forças sociais insurgentes. Pelo contrário, a organização que acende a faísca incendiária de junho, o MPL, tomou a decisão tática de se abster de qualquer direção da revolta e de fomentar a delimitação da pauta ao âmbito do transporte: “barrar o aumento” rumo a uma “tarifa zero”. Nem ela nem qualquer outra sigla foi capaz de impor uma pauta globalizante, tal como os bolcheviques 100 anos antes haviam forjado o bordão “Paz, pão e terra” e “Todo poder aos sovietes”. E não foram capazes porque a formulação dessa bandeira aglutinadora é fruto não de atos de agitação e propaganda e sim de uma capilarizada prática social, capaz de instituir instrumentos autogestionários de apropriação do poder político e econômico.
Em 2013 não faltaram ideias de pauta ampliada ou forças sociais candidatas a dirigir a revolta. O que faltou foi um arcabouço organizativo capaz de colocar material, e não apenas idealmente, uma dualidade de poderes. Se este bordão aglutinador existiu em 2013, ele foi o de “Por uma vida sem Catracas” e “Contra a Corrupção”, ambos suficientemente ambíguos para acolher democraticamente forças sociais oriundas de classes antagônicas, o que, se não castra de antemão os potenciais radicais da revolta, prepara o terreno para o refluxo.
2013 não se converte em uma revolta anticapitalista porque a aceleração da história que vimos naqueles meses demandava acúmulos organizativos capazes de sustentar a construção de órgãos alternativos de poder, substitutivos do capital e do Estado, e naquele momento o que tínhamos era muito diferente: já todos os órgãos históricos da esquerda haviam sido assimilados pelo campo democrático-popular, gestor do poder estatal há uma década. Assim, naquela brecha histórica potencialmente explosiva as organizações clássicas dos trabalhadores não atuavam contra o Estado e o capital, sendo aptas a engendrar transformações estruturais, e sim dentro do Estado e em arranjos e pactos sociais pró-capital.
Não há, portanto, “lenta e contínua degradação” a partir de junho, que conteria o “ovo da serpente” fascista. O que a revolta popular de 2013 fez foi permitir que a esquerda brasileira institucional, tardobolchevique, tomasse consciência de sua impotência e do anacronismo de sua gramática (tanto estratégico-organizativa quanto de leitura de Brasil). O que se dá de modo lento e contínuo, a partir de 2013, é a percepção cada vez mais generalizada de que essa esquerda construtora de pactos sociais pró-capital não era mais uma força de esquerda, representante dos interesses dos trabalhadores, e que por isso, buscando se manter ou retornar ao poder (entendido restritivamente, como gerir o Estado), se mostrava cada vez mais como uma força reativa de contenção de forças sociais aptas a canalizar, à direita, interesses políticos difusos e insatisfações sociais crescentes.
O resultado desse caminho trilhado pela esquerda brasileira, iniciado ainda na luta pela redemocratização nos anos 1980, foi o ganho de expressividade política de uma nova direita organizada que hoje expressa negativamente a utopia, o desejo de mudança reacionária, a transformação estrutural contra a ordem institucional democrática e dentro da ordem de um capitalismo ultraneoliberal dotado de um Estado penal. Enquanto isso a esquerda, assimilada na órbita petista, expressa o desejo de um Estado Social farsesco e de um desenvolvimento capitalista democrático e identitário dentro da ordem. Neste cenário de expectativas sociais decrescentes onde o fazer político parece se restringir à dual disputa entre forças fascistas e forças de uma democracia de cooptação dirigida por uma esquerda do possível, as forças políticas e sociais de uma esquerda do impossível, revolucionária e anticapitalista, estão relegadas à impotência.
A leitura democrático-popular da formação social brasileira (suas características, contradições, antagonismos estruturais e formas de superação) possui inúmeros anacronismos, e é este o principal motivo da perda de capacidade mobilizadora do campo democrático-popular (PT, MST, MTST, CUT e organizações menores que giram em torno da órbita petista). O PT e as organizações que giram em torno de sua órbita são hoje completamente incapazes de enfrentar e até mesmo de formular teoricamente os desafios históricos postos à classe trabalhadora. Sua leitura de Brasil é anacrônica e seus órgãos inadequados para representar os interesses dos trabalhadores. Sua ideologia ainda está presa a uma visão civilizatória e estatista de luta por direitos típica do período da redemocratização, enquanto o contexto atual é de colapso, dessocialização e crise do trabalho, do Estado e do capital, acompanhados por processos de financeirização dos direitos e monetarização da política social. Processos que, conformados ao fetichismo da mercadoria e aos interesses últimos das empresas, são usados como meio de apropriação do fundo público e de heterogestão das lutas sociais.
Por sua vez, a incapacidade do campo democrático-popular em compreender junho de 2013 diz respeito a uma necessidade, pois requereria aceitar sua impotência política, sua perda da posição de referencial de esquerda e, acima de tudo, aceitar que se fosse possível apontar os sujeitos que chocaram o ovo da serpente fascista no Brasil certamente um deles seria o PT e o campo democrático-popular. O fascismo historicamente surge no refluxo das lutas sociais radicais, quando a esquerda está débil, e a principal força debilitadora da esquerda no Brasil foi o PT, ao assimilar as organizações para sua órbita política, ideológica, estatal e governista, tirando delas qualquer potencial organizativo que as tornasse aptas a esmagar a extrema-direita e seus ataques às conquistas históricas da classe trabalhadora. Assim, permitiu-se que as tendências fascistas crescessem na confluência da crise econômica, das mutações na composição das classes sociais e formas de organização dos processos de exploração dos trabalhadores, do trabalho de base das Igrejas, dos pactos recuados entre centrais sindicais e patronato, do recuo agroecológico e por créditos estatais do movimento dos sem-terra, dos conluios com empreiteiras (e com o crime) dos movimentos por moradia, dos arranjos eleitoreiros desastrosos, do silenciamento da esquerda pró-capital face às criminalizações das lutas e pelo estrangulamento, por inanição e por métodos de assimilação de organizações e cooptação de lideranças, de toda e qualquer experiência política e social autônoma, feita “por fora” das estruturas hegemônicas do campo democrático-popular.
Por outro lado, reconhecer a parcela de culpa do PT e do campo democrático-popular não implica atribuir ao processo tão somente um erro político de direção ou de tática e estratégia do Partido e das organizações. Trata-se de um movimento da própria classe trabalhadora, que se mostrou incapaz de engendrar alternativas radicais que construíssem um cenário mais apropriado para experiências anticapitalistas. Esse movimento histórico de perda de potencial político da esquerda no Brasil se deu e se dá tanto nos órgãos de luta que a classe trabalhadora forjou e segue forjando quanto no mundo material, em um solo econômico cada vez mais caracterizado pelo predomínio da barbárie e da falência das instituições democráticas. Quando o campo democrático-popular assimila no Estado os órgãos de luta e as lideranças das organizações, esse processo não é um movimento de “traição” do PT e sim um movimento da própria classe trabalhadora organizada e desorganizada, decorrente de fatores de ordem política, ideológica, cultural e econômica. A extrema-esquerda exterior ao campo democrático-popular também tem parcela de culpa nesse processo todo, na medida em que não foi capaz de fomentar e construir alternativas viáveis.
Para a esquerda histórica a incompreensão de junho de 2013 é, portanto, uma necessidade. Como as forças do campo democrático-popular não podem, objetivamente, assumir que construíram sua própria debilidade e sua impotência política ao se integrarem ao aparato estatal, cuja captura, pela teoria da pinça, há décadas havia sido o alvo estratégico, elas precisam culpar 2013 como acontecimento golpista, como se houvesse um fator externo e tão somente externo causador do aborto de seu projeto de governo (e de país) e da perda de sua hegemonia no âmbito das lutas sociais e, posteriormente, perda do poder via impeachment e Lava-Jato.
Junho de 2013 fora um grito de que era possível e desejável mais do que um governo neodesenvolvimentista de pacto social caracterizado por programas compensatórios de transferência de renda, cotas e políticas de ampliação do crédito. Não estávamos diante do início de uma atrofia política e sim de uma demonstração autônoma de capacidade imaginativa e de criação e imposição de pauta política por fora das estruturas organizativas clássicas, os partidos, sindicatos e movimentos sociais. Não se iniciava e sim se atestava a atrofia das organizações democrático-populares, já integradas à ordem. Essa pequena divergência para com a análise de época do artigo de Safatle me parece importante, pois sem esse encadeamento de fatores não se pode chegar à compreensão de que as forças potencialmente anticapitalistas estão contrapostas tanto ao bolsonarismo quanto às organizações e ao ideário político-estratégico democrático-popular. É claro que o fascismo assusta mais, ao colocar em risco a existência física da esquerda radical, mas a própria fragilidade dos trabalhadores precisa ser historicamente explicada: não foi o bolsonarismo ou a oposição de direita, e sim a própria esquerda no poder que despotencializou a capacidade de transformação social e de resistência política das organizações históricas de luta dos trabalhadores, integrando-as e assimilando-as ao Estado, ao mesmo tempo em que cooptava lideranças surgidas no bojo da classe trabalhadora.
A compreensão de que 2013 não causa e sim permite ver a anterior e profunda crise da esquerda hegemônica democrático-popular impede que caiamos — dado um medo-pânico do fascismo bolsonarista — na lógica acrítica de que colocar e manter o PT no poder e reviver as debilitadas organizações democrático-populares, em renovado esforço de “acúmulo de forças”, é nossa única opção de sobrevivência política enquanto forças antifascistas. O PT e o campo democrático-popular buscam se colocar como única via de uma “esquerda do possível”, quando, aliada a mudanças na composição das classes sociais e nos métodos de exploração, a restrição do nosso horizonte de expectativas foi obra não da oposição de direita ou de forças fascistas que em silêncio cresceram pelo trabalho de base das Igrejas, mas justamente do próprio método democrático-popular de confecção de pactos sociais pela via da assimilação dos órgãos de luta da classe trabalhadora. Se o ovo da serpente fascista foi chocado, não foi por revoltas populares que passaram por cima das forças de gestão da barbárie, e sim por mudanças no solo econômico e, principalmente, pelo processo histórico de enfraquecimento das organizações dos trabalhadores e da sua capacidade de fomentar lutas sociais contra o Estado e o capital, um processo politicamente capitaneado pelo PT.
Não se pode esquecer ainda que para retornar ao poder e se legitimar enquanto esquerda do possível (e mal menor) o PT e as organizações que giram em torno de sua órbita democrático-popular aceitaram até mesmo o risco de eleger Bolsonaro em 2018, ao invés de se retirar da disputa eleitoral ou se colocar como vice de Ciro ou coisa que o valha. E não bastasse esse desastroso erro de cálculo eleitoral, de 2019 a 2022 essas forças trabalharam contra o impeachment de Bolsonaro, avaliando que o único modo de voltar ao poder em 2023 era enfrentando, em uma disputa épica de “barbárie contra civilização”, Bolsonaro e não outro candidato. Tiveram sucesso eleitoral graças a uma frente de esquerda, é verdade, mas ao preço de que nenhum passo fosse dado no sentido de reabilitar os trabalhadores a resistir ao moinho do capital e à própria ascensão do fascismo no Brasil. Ao invés disso, está dada uma nova gestão petista do Estado, pretensamente incriticável à esquerda, e que assume para si a tarefa nefasta de conter, praticamente sem ferramentas à disposição, a velocidade e intensidade das transformações sociais em um cenário de crise econômica que nos leva a um cada vez maior predomínio cotidiano do capital sem antagonistas, ou seja, a barbárie.
Referências
CORDEIRO, Leo & MARTINS, Caio. (2014). Revolta popular: o limite da tática. Disp. em: https://passapalavra.info/2014/05/95701/
GUIMARÃES, Juarez. (1990). A estratégia da pinça. Disp. em: https://teoriaedebate.org.br/debate/estrategia-politica-do-pt-2/
IASI, Mauro. (2012) Democracia de cooptação e o apassivamento da classe trabalhadora. In: BEHRING, E. et. all. Financeirização, fundo público e política social. SP: Cortez. PASSAPALAVRA. (2012). Estado e movimentos sociais. Disp. em: https://passapalavra.info/2012/02/52448/
. (2012a). Ainda sobre o Estado e os movimentos sociais. Disp. em: https://passapalavra.info/2012/02/53308/
POLESE, Pablo. (2015). Tempestade Perfeita. A oposição de direita e os desafios para a extrema esquerda. https://passapalavra.info/2015/07/105485/
___. (2020) Teses sobre o bolsonarismo e a conjuntura brasileira. https://passapalavra.info/2020/07/133249/
SAFATLE, Vladimir. (2023). O dia no qual o Brasil parou por dez anos. Disp. em: https://aterraeredonda.com.br/o-dia-no-qual-o-brasil-parou-por-dez-anos/
Excelente contribuição! É uma ilusão perigosa essa analise de que 2013 é ponto original de alguma atrofia. Fundamental articular o fracasso da estratégia democrático-popular à organização politica e popular da extrema direita no Brasil. Felizmente o tema vem sendo amplamente discutido e são boas as obras críticas lançadas nos últimos anos sobre a estratégia e o governo PT. Infelizmente isso não tem se traduzido em organização política. Mas é isso… Sigamos!