Por Pablo Polese

Nessa loucura há método (Shakespeare em Hamlet).

01 O Bolsonarismo acredita que há uma ampla e profunda conspiração comunista assolando a nação brasileira por meio de uma “guerra cultural” marxista, de cariz gramsciano. Nessa guerra cultural as esquerdas teriam levado a cabo um aparelhamento ideológico das instituições de arte, cultura e educação, onde estaria sendo preparado, com total hegemonia, um caldo cultural favorável ao Comunismo e contrário aos valores tradicionais “do Brasil”: valores da Família e do Cristianismo, do Exército, enfim, da Ordem. Neste cenário, o governo Bolsonaro busca, então, uma contraposição de guerrilha: se reapropriar de algumas dessas instituições e, principalmente, destruí-las por dentro. É o que explica a nomeação de antigestores: gestores contrários às pautas básicas das pastas, encarregados, por isso, não de gerir as instituições e sim de destruí-las. Os exemplos variam; há casos em que o gestor busca reorientar radicalmente a ação da instituição, colocando-a em conformidade com interesses ultraliberais de um desenvolvimentismo que não tem mais no Estado seu propulsor, mas tão somente sua salvaguarda em casos de riscos para a lucratividade. Como exemplo deste primeiro tipo de gestão podemos citar o caso do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Saúde. Há casos, contudo, em que o gestor tem como meta uma antigestão, que vai desde o travamento da instituição tornando-a inoperacional, até sua destruição: Incra, Funai, Ministérios e Secretarias de Educação, Arte e Cultura, Direitos Humanos, Fundação Palmares (onde foi colocado um presidente que nega que há racismo no Brasil etc.). A gestão voltada para a destruição é a regra em instituições que o bolsonarismo vê como dominadas pelo esquerdismo do marxismo cultural, como por exemplo a CAPES e as Instituições de Ensino Superior em Ciências Humanas e Sociais. A gestão “reapropriadora” é a regra em instituições com importância econômica para os setores que apoiam o bolsonarismo ou que, de todo modo, são importantes para a captação de recursos, inclusive em termos de financiamento da máquina estatal.

02 Ao contrário do antagonismo entre PT e Bolsonaro, que a aparência leva a supor, o bolsonarismo teve nos governos democrático-populares uma antessala que tornou possível que a tendência marginal do fascismo bolsonarista se convertesse em tendência dominante, chegando ao ponto de conseguirem eleger o presidente e uma ampla gama de representantes nos mais diversos níveis do Executivo e Legislativo. A principal tarefa cumprida pelo campo democrático-popular de modo a preparar o terreno para o bolsonarismo foi a cooptação das lideranças e a assimilação dos órgãos de luta da classe trabalhadora, em especial no aparato estatal e seus diversos órgãos de gestão participativa etc., mas também no que diz respeito à conversão das entidades sindicais em órgãos de gestão dos fundos de pensão e de negociação coletiva voltada para o distensionamento dos conflitos de classe. Essa assimilação estatal dos órgãos de luta dos trabalhadores converge com o bolsonarismo no sentido mais amplo da “defesa da ordem” e significou, do ponto de vista histórico e político, o desarmamento da classe trabalhadora, que, então, não teve condição de resistir à sequência de ataques aos seus direitos (incluindo aqui as condições de trabalho), iniciada no ciclo petista, aprofundada com Temer e levada ao paroxismo no momento presente.

03 O Bolsonarismo se alça ao lugar de tendência dominante impulsionado pela força das igrejas evangélicas, que ao longo do ciclo democrático-popular assumiram o papel de acolhimento material e espiritual da classe trabalhadora, enquanto os órgãos tradicionais “abandonavam o trabalho de base”. Houve aqui um casamento entre Bolsonaro e os evangélicos, que fortaleceu bastante o bolsonarismo e, em contrapartida, o próprio poder da bancada evangélica no legislativo. As Igrejas evangélicas adquiriram enorme influência junto aos trabalhadores enquanto as esquerdas tradicionais se concentravam no aferimento de vantagens junto a um governo “aberto ao diálogo” e ao aparelhamento, portanto enquanto elementos da gestão do Estado, e as esquerdas independentes, que não tinham esse vínculo, se digladiavam entre si e em disputas internas em torno da força social do identitarismo, que logrou adentrar até mesmo nas organizações marxistas mais ortodoxas.

04 A assimilação estatal e empresarial dos órgãos de luta coletiva dos trabalhadores ocorreu de forma concomitante com as mudanças na forma de organização dos processos de trabalho, em especial com o fenômeno da uberização, e na forma de luta por direitos, antes coletivos, depois focados em grupos cada vez mais restritos e, por fim, reduzidos à defesa de sistemas de concessão individualizada, em conformidade com a lógica empresarial de merecimento, o princípio da eficiência, a lógica dos resultados etc. Esse processo, somado à ideologia do empreendedorismo de si mesmo, reforçou nos trabalhadores a sensação de isolamento de uns face aos outros, o que, somado a outras tendências e forças sociais, resultou na hegemonia do individualismo e no solapamento de valores coletivistas e de solidariedade de classe. Houve e ainda existem exceções à regra, ou seja, experiências de solidariedade entre trabalhadores nos locais de trabalho e moradia, mas a tendência dominante foi e é outra: a solidariedade foi encontrada especialmente noutro lugar e delineada noutra chave, não mais classista: na irmandade das igrejas.

05 A atuação da esquerda em face de todo este processo caminhou no sentido de adoção do identitarismo, o que reforçou as tendências à fragmentação em marcha na sociedade, ao invés de contrapô-las. Não se buscou a construção de alternativas materiais e organizativas capazes de responder às demandas dos trabalhadores e, assim, de se pôr em conflito com as tendências individualizantes e de defesa da ordem. Pelo contrário, as pautas e formas organizativas da esquerda identitária, que assumiu a hegemonia no âmbito das esquerdas, reforçaram o enfraquecimento da organização coletiva dos trabalhadores, na medida em que os dividia numa miríade de subgrupos em disputa entre si por recursos e direitos cada vez mais escassos. Limitada às pautas de inclusão das mulheres e negros na ordem social do capital, ou seja, a inclusão de populações historicamente oprimidas em melhores condições econômicas, de status e de representatividade nos espaços de poder, e fornecendo alternativas a debilidades históricas da esquerda tradicional, a esquerda identitária colocou resolutamente suas pautas na ordem do dia, mas tais pautas não entravam em disputa com as tendências conservadoras em desenvolvimento na sociedade e, por mim, as reforçavam. Atuando num mesmo caldo de defesa da ordem e ideologicamente mobilizando, para tal, elementos da biologia e da história alternadamente, bem como uma forma de organização que apaga as distinções de classe em prol de distinções discursivas e biologizantes, a esquerda identitária se mostra como uma contraface de seu arquirrival inimigo, o bolsonarismo, que pode ser visto como outra forma de identitarismo: masculino, branco, cristão, heterossexual e nacionalista. Nesse sentido as lutas entre estes polos podem ser consideradas como uma disputa de identitarismos e, no limite, uma disputa de fascismos.


06 O bolsonarismo destruiu os conselhos de políticas públicas e demais órgãos democrático-populares de “governo por meio da participação”, o que representa uma mudança importante na forma de gestão dos conflitos por parte do Estado e, portanto, uma ruptura entre o “modo bolsonarista” e o “modo petista de governar”. No entanto, o modelo bolsonarista prioriza, no lugar da participação e do diálogo, a centralização e automatização do processo decisório e de praticamente todas as etapas e componentes dos mecanismos de gestão dos recursos e, por aí, dos conflitos sociais em torno destes recursos e de direitos. Essa automatização é notável em praticamente todas as instituições estatais brasileiras: “agora é tudo pelo sistema”, “agora é tudo automatizado”, “agora é virtual”, “agora é digital” são frases que sintetizam a mudança em curso. Essa mudança, ao caminhar rumo a um “e-governo” ou “governo digitalizado” concentra poderes decisórios “na máquina” e nos poucos gestores que sobram, por isso pode ser considerada uma “uberização do Estado”, onde os servidores são cada vez mais prestadores de serviços por demanda. Contudo, há continuidade na ruptura: esse processo só foi possível porque a experiência democrático-popular colheu uma ampla dosagem de experiências que, sistematizadas do ponto de vista contábil, foram convertidas em dados usados para alimentar algoritmos e demais elementos da nova tecnologia de “gestão computadorizada”. A uberização do Estado expressa, nesse âmbito, uma espécie de subsunção real do trabalho ao capital na esfera da gestão de recursos e administração dos serviços públicos, o que retira das lideranças populares certo poder de influência, diálogo e pressão junto aos governantes, transferindo este poder para as máquinas e sua lógica algorítmica inquestionável, o que resulta no fortalecimento da tecnocracia estatal e no aprimoramento das formas de dominação dos trabalhadores.

07 O processo de uberização do Estado resulta no enxugamento dos recursos e na eliminação (arrastada) das políticas públicas e, assim, retira o lastro material que legitimava as lideranças dos movimentos sociais enquanto lideranças, reforçando, assim, o desmonte e destruição dos órgãos de luta integrados à lógica estatal (às vezes a destruição se dá por mecanismos mais diretos, como, por exemplo, nas mudanças das regras de imposto sindical). Estes sindicatos, partidos e movimentos sociais, quando ainda existem, passam agora a atuar prioritariamente no âmbito simbólico, discursivo e performático. Para tais lideranças e órgãos de luta, em especial aquelas intimamente atreladas ao petismo, é interessante a sobrevivência do governo Bolsonaro, na medida em que o bolsonarismo reforça suas posições enquanto alternativa possível, necessária e desejável. Nesse sentido o bolsonarismo aparece a estas organizações como funcional, na exata medida em que expurga os erros dos governos democrático-populares como se fossem um “mal infinitamente menor” e abre, assim, perspectivas para um saudosismo que na prática corresponde à volta desses ex-gestores e ex-burocratas à gestão do Estado — o que estava virtualmente bloqueado em decorrência tanto do esgotamento do modelo, patente desde as revoltas populares de 2013, quanto devido ao peso político da identificação entre PT e organização criminosa, por obra da Lava Jato.


08 A destruição das instituições estatais vistas como atreladas aos valores esquerdistas antecipa e inicia uma almejada destruição física dos esquerdistas, vistos sob um ponto de vista militar: como inimigo interno. Algumas medidas tomadas visam claramente o esvaziamento e a morte, simbólica, dos “esquerdistas”, como, por exemplo, as reiteradas tentativas de corte total de verbas para pesquisas na área de ciências humanas e sociais e a redução de verbas para o funcionamento (e muito menos para a ampliação) dos cursos de filosofia e ciências sociais, tidos como fábrica de esquerdistas. A designação de esquerdista e de comunista é fluida e plástica, como o demonstra o caso Moro, o que permite aplicar o conceito a qualquer sujeito ou instituição que se coloque em conflito com o projeto fascista do governo bolsonarista.

09 As elites e instituições nacionais imaginaram ser fortes o suficiente para controlar o bolsonarismo (visto especialmente sob a ótica de uma de suas figuras, Jair Bolsonaro), por meio dos mecanismos econômicos e políticos normais da governabilidade capitalista, ou seja, o toma lá, dá cá da política, as sanções econômicas e os interesses internacionais em matéria de política externa etc. Após um ano e meio de governo por meio do desgoverno, as instituições (em especial o STF) perceberam que não detinham o controle da situação. A partir de então buscaram meios de retomá-lo. Estas instituições do legislativo e do judiciário veem a força do bolsonarismo apenas em um de seus fatores, a máquina de propaganda e contra-propaganda das “Fake News”, motivo pelo qual estão concentrando esforços no sentido de desarticulação desta máquina e retirada de jogo de algumas das figuras do bolsonarismo, como, por exemplo, seus filhos e, se possível, o próprio presidente. O bolsonarismo, porém, tem raízes mais profundas e sobreviverá após a queda dos Bolsonaro e a desarticulação da rede midiática de mentiras, só podendo ser de fato extirpado por obra dos trabalhadores organizados em redes de solidariedade, o que implica o reforço, por meio da prática, de valores antagônicos aos que sustentam o bolsonarismo.


10 Forjado ao longo de décadas nas mais diferentes frentes e matrizes ideológicas contrarrevolucionárias (anticomunistas, conservadoras, reacionárias, individualistas, nacionalistas, evangélicas e ultraliberais) que finalmente confluíram em um casamento, o chamado bolsonarismo já adquiriu consistência ideológica e adesão social a ponto de ultrapassar os Bolsonaro. Essa consistência se amplia a cada expurgo (a lista de ex-bolsonaristas é enorme e toca até mesmo a sigla que elegeu o presidente) e chega ao ponto de podermos dizer que o bolsonarismo, em caso de sucesso da contraofensiva das instituições, é capaz de se auto-organizar com vistas ao confronto ideológico e físico por meio das milícias digital e militar (no sentido amplo de milícias armadas oriundas de inúmeros aparatos repressivos estatais e paraestatais, com destaque para as polícias militares). Tais milícias não são algo novo na história dos fascismos e terão como objetivo a realização da plataforma ideológica nacionalista, ultraliberal e anticomunista do bolsonarismo, podendo, inclusive, ter papel decisivo na própria permanência de Bolsonaro no poder.

11 O bolsonarismo conseguiu ampla adesão dos trabalhadores porque frente a um mundo hostil e de expectativas decrescentes apresenta uma proposta ampla de transformação profunda – uma revolução dentro da ordem – enquanto a esquerda, por outro lado, é menos radical e propõe a) reformas e manutenções de direitos, b) alternâncias de poder por meio das eleições, c) ocupação de espaços de poder (identitarismo) ou d) simulacros de uma proposta radical já há muito vista como anacrônica (socialismo e comunismo bolchevique).

O artigo está ilustrado com obras de Rikardo Druškić.

1 COMENTÁRIO

  1. Análise precisa e sem os deslizes da criminalização da esquerda tradicional. Não consegui me lembrar de algum aspecto que tenha ficado de fora. Embasado na análise de luta de classes e sem idealismo ou ideologização. É deste tipo de análise que contribui para aluta que precisamos. Parabéns e obrigado.

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