Por Jean Baudrillard

Este texto é a seção final do livro Le miroir de la production: ou l’illusion critique du matérialisme historique, quarto livro de Baudrillard, publicado em 1973. Hoje, o nome de Jean Baudrillard é mais associado a provocativas e abstratas teorias “pós-modernas”, mas em seus quatro primeiros livros – dos quais Le Miroir foi o único a não ser publicado no Brasil – ele empreende uma acurada análise da sociedade capitalista contemporânea, com alto teor crítico e revolucionário, que infelizmente perderia lugar em suas obras posteriores ao desencantamento e ao niilismo. Baudrillard nunca escondeu a forte influência que recebeu dos situacionistas (ele mesmo foi professor assistente de Henri Lefebvre), nítida nas suas primeiras obras e na revista Utopie, da qual participou até início dos anos 70. Pode-se dizer que na sua fase situacionista e revolucionária, Baudrillard conseguiu ir além deles teoricamente, e certamente construiu uma das melhores análises da sociedade capitalista contemporânea em A Sociedade de Consumo, Para Uma Crítica da Economia Política do Signo e Le Miroir de la production. Evidentemente, o excerto aqui apresentando é melhor compreendido dentro do conjunto dessas três obras.

De fato, Marx tem razão. Razão “objetivamente”. Mas essa razão e essa objetividade são alcançadas, como toda ciência, ao preço do mau-conhecimento, – mau-conhecimento da utopia radical contemporânea do Manifesto e do Capital. Pode-se tranqüilamente dizer que Marx “objetivamente” teorizou as relações sociais capitalistas, a luta de classes, o movimento da história, etc. A convulsão de uma ordem social, sua subversão imediata, a palavra de vida e de morte, libertadora no próprio instante, Marx a “objetivou” em uma revolução dialética de longo prazo, em uma finalidade em espiral que não é mais que uma rosca sem fim da economia política[1].

A poesia maldita, a arte não oficial, o escrito utópico, dando um conteúdo presente, imediato, à libertação do homem, deveriam ser a própria palavra do comunismo, sua profecia direta. Eles são apenas sua má consciência, exatamente porque neles alguma coisa do homem é imediatamente realizada, porque objetam sem piedade essa dimensão “política” da revolução, que não é mais que a dimensão do seu adiamento final. Eles são o equivalente no discurso a esses movimentos sociais selvagens, que nascem de uma situação simbólica de ruptura (simbólica, isto é, não universalizada, não dialetizada, não racionalizada no espelho de uma história objetiva imaginária). É por isso que a poesia (não a “Arte”) no fundo sempre esteve ligada aos movimentos de utopia social, de “romantismo revolucionário”, e jamais ao marxismo enquanto tal. É que no fundo o conteúdo do homem libertado tem menos importância do que a abolição da separação entre o presente e o futuro. A abolição dessa forma de tempo, dimensão da sublimação, é o que não perdoam os idealistas da dialética, que são ao mesmo tempo os realistas da política – para eles a revolução deve se destilar na história, ela deve vir a prazo, deve amadurecer ao sol das contradições – aqui, imediatamente, ela é impensável, ela é insuportável. O que a poesia e a revolta utópica têm em comum é essa instantaneidade radical, essa contestação das finalidades, essa imediaticidade do desejo, não mais exorcizado em uma libertação futura, mas exigido aqui, agora, na sua pulsão de morte também, na radical contabilidade da vida e da morte. Tal é o gozo, tal é a revolução. Ela não tem nada a ver com as prestações políticas da Revolução.

Contrariamente à análise marxista que coloca o homem como despossuído, como alienado, e o relaciona a um homem total, a um Outro total, que é a Razão futura (utópica, esta, no mau sentido do termo), que destina o homem a um projeto de totalização, a utopia, ela, não conhece o conceito de alienação: ela concebe que todo homem, toda sociedade está inteira já aqui, a cada momento social, na sua exigência simbólica. O marxismo nunca analisa a revolta, ou o próprio movimento da sociedade, a não ser em filigrana da revolução, como uma realidade em via de maturação. Racismo da perfeição, do estado acabado da razão, que reenvia todo o resto à insignificância das coisas ultrapassadas[2]. É aí que o marxismo permanece profundamente uma filosofia, por tudo que permanece nele, mesmo no estado “científico”, pretensamente como alienação. Atrás do pensamento “crítico”, em termos de “alienação”, está sempre uma essência total, que assombra uma existência dividida. Ora, essa metafísica da totalidade não se opõe de modo algum à realidade imediata da divisão: ela faz sistema com ela. A perspectiva para o sujeito, ao fim da história, de reencontrar sua transparência, ou seu “valor de uso” total, é tão religiosa quanto a reintegração das essências. A “alienação” é ainda o imaginário do sujeito, seja ele sujeito da história. O sujeito não tem que voltar a ser um homem total, não tem que se reencontrar, ele tem hoje é que se perder. A totalização do sujeito é ainda o fim do fim da economia política da consciência, selada pela identidade do sujeito como a economia política o é pelo princípio da equivalência. É aquela que deve ser abolida, no lugar de inculcar nos homens o fantasma de sua identidade perdida, de sua autonomia futura.

Que absurdo pretender que os homens são “outros”, e de buscar os convencer que seu mais precioso desejo é voltar a ser “eles mesmos”! Cada homem está inteiro a cada instante. A sociedade, ela também, está inteira a cada instante. Courderoy[3], os Ludditas, Rimbaud, os Communards, as pessoas das greves selvagens, aqueles de Maio de 68, não é a revolução que fala em filigrana, eles são a revolução, e não conceitos em trânsito. Sua palavra é simbólica, e não visa essência – é uma palavra diante da história, diante da política, diante da verdade, palavra diante da separação e da totalidade futura – a única que, falando o mundo como não separado, o revoluciona verdadeiramente.

Não há possível ou impossível. A utopia está lá, em todas as energias levantadas contra a economia política. Mas essa violência utópica não se acumula, ela se perde. Ela não busca se acumular, como o valor econômico, para abolir a morte. Ela não quer jamais o poder. Encerrar os “explorados” na única possibilidade histórica de tomar o poder é a pior distorção da revolução que tem ocorrido. É aí que se vê quão profundamente os axiomas da economia política tem minado, investido, distorcido a perspectiva revolucionária. A utopia quer a palavra contra o poder, e contra o princípio de realidade, que não é mais que o fantasma do sistema e de sua reprodução indefinida. Ela quer apenas a palavra, e para aí se perder.

Traduzido por Leo Vinicius

As ilustrações do artigo são de Hans Holbein the Younger(1497-1543)

Notas:

[1] Não é verdade que Marx tenha “superado dialeticamente” a utopia, conservando seu “projeto” em um modelo “científico” de revolução. Marx escreveu a Revolução segundo a lei e não fez a síntese dialética entre este prazo necessário e a exigência passional, imediata, utópica de transfusão das relações sociais, pelo motivo de toda dialética entre esses dois termos antagonistas ser uma vã palavra. O que o materialismo histórico ultrapassa conservando, é pura e simplesmente a economia política.

[2] Assim, durante muito tempo tomou-se o desenho por esboço de uma obra que, uma vez acabada, o reenviaria ao esquecimento e à insignificância. Isso é falso: o desenho é já toda a obra, não há outra.

[3] Ernest Courderoy (1825-1862), socialista libertário francês que adotou posições radicais na revolução de 1848, vivendo o resto de sua vida no exílio (N.T.)

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