Por Joseph Daher
O artigo a seguir, publicado em 4 partes, é o quinto capítulo do livro Síria Depois Dos Levantes, de Joseph Daher. A versão integral do livro foi traduzida pela Contrabando Editorial e será publicada no fim de 2023
A organização dos primeiros partidos curdos na Síria tem origem nos anos 1950. Surgiram em meio a uma guinada agressiva e chauvinista do nacionalismo árabe, assim como das frustrações crescentes dos filiados curdos do Partido Comunista Sírio, visto por muitos como desinteressado, ou até contrário, aos direitos nacionais curdos(Tejel 2009: 48). A vasta maioria desses novos movimentos curdos adotavam ideologias socialistas, apesar da elite tribal ter permanecido bem representada em suas direções. As notáveis exceções a essa dinâmica, já mencionadas, foram o Partido dos Trabalhadores Curdos (Partiya Karkerên Kurdistanê, ou PKK) e, depois, o Partido da União Democrática (Partiya Yekîtiya Demokrat, ou PYD) – organizações que, desde o início, buscaram representar as classes populares curdas, tratando a elite tribal como colaboradores na colonização do Curdistão.(Van Bruinessen 2016: 7) Em grau menor, o Partido Yekiti também mobilizou inúmeros seguidores nos anos 1990 e 2000, antes de sua fragmentação[1].
Esse capítulo relata o papel das forças políticas e a participação curda no levante sírio. No início, manifestantes curdos organizaram-se como os ativistas das outras áreas, criando Comitês de Coordenação Local (CCL). Porém, a colaboração entre os comitês de coordenação e as juventudes árabe e curda diminuiu com o tempo. Elas cessaram devido à divisão e aos desacordos com os grupos árabes sírios de oposição no exílio, bem como pela crescente tensão étnica, em geral, entre ambas as comunidades.
Ao longo do tempo, o PYD – com o beneplácito do regime de Assad – fortaleceu-se na cena política curda síria. O partido tirou vantagem das divisões entre os vários atores internacionais que intervinham no país – especialmente ao receber ajuda dos Estados Unidos (e, em grau menor, da Rússia) para avançar interesses políticos próprios. No entanto, esse apoio dos estrangeiros aos poucos diminuiu, tornando-se menos garantido. A autonomia assegurada pelo PYD nas regiões curdas converteu-se em foco de conflito entre diversos sujeitos locais e regionais.
A questão curda antes de 2011: repressão e cooptação
Nos anos 1950 e 1960, os curdos tornaram-se os principais bodes expiatórios do crescente nacionalismo árabe na Síria – incluindo o período da República Árabe Unida (RAU)[2] seguida, a partir de 1963, pelo domínio do Partido Baath. Os curdos acabaram retratados como agentes trabalhando a serviço de poderosos inimigos estrangeiros, em particular Israel e o imperialismo norte-americano.(Tejel 2009: 41)
Eles foram objeto de políticas discriminatórias e repressivas, como nas primeiras medidas do “Cinturão Árabe”. Iniciado em 1962, consistia em um cordão sanitário entre os sírios árabes e os curdos ao longo da fronteira do país com a Turquia e o Iraque, locais que formavam o perímetro norte e nordeste da região de Jazira, majoritariamente curda. Um “censo excepcional” da população realizada ali em 1962 negou nacionalidade a cerca de 120 mil curdos, declarados estrangeiros. Seus filhos tampouco foram contemplados com direitos civis básicos, sendo condenados à pobreza e à discriminação.[3]
A descriminalização racial contra os curdos, em particular pelo projeto do Cinturão Árabe, foi institucionalizada pelo regime de Assad. Entre 1972 e 1977, como parte de uma política de colonização, cerca de 25 mil camponeses árabes – cujas terras haviam sido inundadas pela construção da barragem Tabqa – acabaram enviados à Jazira, onde o regime sírio assentou a nova população em “vilarejos modernos” ao lado dos lugarejos curdos.(Seurat 2012: 183)
Durante esse período, para fomentar a política externa do governo, o regime Assad procurou cooptar certos segmentos da sociedade curda (ao final dos anos 1970 e início dos anos 1980, no contexto da crescente oposição mencionada no capítulo 1). Algumas elites curdas participaram do sistema político do regime, a exemplo dos líderes curdos das irmandades religiosas, como Muhammad Sa’id Ramadan al-Buti, e sheiks oficiais como Ahmad Kuftaro, Mufti da República entre 1964 e 2004.(Pinto 2010: 265) Diversos curdos obtiveram cargos de autoridades locais, enquanto outros alcançavam altos postos nacionais, tais quais o Primeiro-Ministro Mahmud Ayyubi (1972-1976), ou Hikmat Shikaki, chefe da inteligência militar (1970-1974) e Chefe do Estado-Maior (1974-1998). No entanto, isso ocorria sob a condição de que não demonstrassem qualquer consciência étnica curda, em particular na retórica ou estratégia política. No final da década de 1970 e durante os anos 1980, alguns curdos também foram absorvidos nas divisões de elite do exército, ou ligados a grupos militares específicos que serviam ao regime. Outra forma de cooptação foi a cumplicidade dos serviços locais de segurança com certas famílias de contrabandistas curdos ativos na região da Jazira, nas fronteiras da Síria com a Turquia e Iraque.(Tejel 2009: 66-67)
Essa política de cooptação também incluía alguns partidos políticos curdos. O regime de Assad forjou acordos políticos com o PKK, transformando seu líder, Abdullah Öcalan, em convidado oficial do regime no início dos anos 1980, quando as tensões entre Síria e Turquia explodiram. O PKK foi autorizado a recrutar militantes e combatentes, organizando de 5 mil a 10 mil pessoas nos anos 1990,(Bozarslan 2009: 68; Allsopp 2015:40) enquanto lançava operações militares contra o exército turco a partir da Síria. Com escritórios em Damasco e em diversas cidades no Norte, seus militantes assumiram o controle de facto de fatias do território sírio, especialmente na província de Afrin.(McDowall 1998: 65 – Tejel 2009: 78) Outros partidos políticos curdos também colaboraram com o regime sírio, como a União Patriótica do Curdistão (PUK)[4] dirigida por Jalal Talabani, presente no país desde 1972; seguido, mais tarde, a partir de 1979, pelo Partido Democrático Curdo (KDP)[5], afiliado a Masoud Barzani.(Tejel 2009: 72-78)
A condição sine qua non para obter apoio do regime sírio era o compromisso de que os movimentos curdos do Iraque e Turquia se abstivessem de qualquer tentativa de mobilizar curdos sírios contra Assad. Damasco foi capaz de instrumentalizar esses grupos, usando-os como ferramenta de relações internacionais para alcançar algumas ambições regionais e, em nível doméstico, desviar a questão curda para fora da Síria, em direção aos Estados turco e iraquiano.
Entre o final dos anos 1990 e início dos 2000, as relações entre os partidos políticos curdos e o regime sírio deterioraram-se. Uma melhora nas relações entre Turquia e Síria induziu as forças sírias de segurança a lançar várias ondas de repressão contra os elementos remanescentes do PKK no país(ICG 2013: 12). Após o exílio de Öcalan em 1998 e a prisão de inúmeros militantes, o grupo estabeleceu novas organizações, com o duplo objetivo de se proteger da repressão estatal e oferecer apoio social aos seus milhares de membros e simpatizantes. O PYD, criado em 2003 como um sucessor do PKK na Síria,(Tejel 2009: 79) era parte da estratégia regional do partido de estabelecer braços locais nas nações vizinhas. Paralelo a isso, a partir de 2000, os vínculos do regime com o KDP e o PUK foram enfraquecendo, enquanto Damasco tentava normalizar suas relações com o governo em Bagdá, colocando um termo à sua interferência nas questões curdas no Iraque.(ICG 2011: 21)
[PKK – O PKK foi formado no final da década de 1970, na Turquia, sendo sua ideologia, originalmente, uma fusão de marxismo, terceiro-mundismo e nacionalismo curdo. Contudo, a ideologia do grupo evoluiu para além disso, refletindo a influência do teórico socialista estadunidense Murray Bookchin, um pensador que advogava o “comunalismo libertário.”]
O ano de 2004 marca o início de um levante curdo na cidade de Qamishli, que se espalhou pelas regiões habitadas majoritariamente por curdos – Jazira, Afrin, mas também Alepo e Damasco, onde as manifestações foram reprimidas com brutalidade pelas forças de segurança. O regime apelou à colaboração de algumas tribos árabes do Nordeste que mantinham ligações históricas com a família Assad. Cerca de 2 mil manifestantes foram presos e 36 mortos, enquanto outros eram forçados a deixar o país.(Lowe 2006: 5) A Intifada curda, assim como a evolução política do Curdistão iraquiano, que ganhou crescente autonomia, hasteando bandeiras e símbolos próprios, levantaram o ânimo dos curdos sírios e sua autoconfiança na mobilização por direitos, fortalecendo a consciência nacionalista da nova geração, e encorajando seu desejo por mudanças.
O TCK, Movimento da Juventude Curda na Síria (Tevgera Ciwanên Kurd) surgiu de forma clandestina em março de 2005, um ano após a repressão ao levante curdo, tornando-se o maior grupo político de juventude no país após 2004. Ele se tornaria um dos principais atores nos protestos de 2011 nas áreas de maioria curda.(Schmidinger 2018: 76)
Os curdos seguiram afirmando sua identidade étnica, organizando atividades culturais e mobilizando contra as políticas anticurdas do regime. Estudantes de vários grupos políticos também mantiveram atividades intensas ao longo desse período nos campi universitários – em particular em Damasco e Alepo.
O início do levante sírio – março de 2011
Os protestos nas áreas de maioria curda começaram logo ao final de março de 2011, em Amuda e Qamishli, onde as palavras de ordem exigiam liberdade e irmandade entre árabes e curdos, assim como solidariedade com Dar’a(Kurd Watch 2012a; Aziz Abd El-Krim 2016; Darwish 2016a; Hassaf 2018). As manifestações rapidamente alastraram-se por outras cidades curdas.
O movimento nessas regiões foi despertado pelos grupos de juventude pré-existentes, como o TCK ou pelos os Comitês de Coordenação Local que surgiam como parte de um movimento nacional de protestos contra o regime. Ao longo do ano de 2011, como explicado pelo ativista curdo sírio Alan Hassaf,(Alan Hassaf, 2018)
Através de diversas redes, os comitês locais curdos coordenavam e cooperavam com as entidades equivalentes no movimento das diferentes cidades sírias.
Os protestos continuaram durante todo mês seguinte, apesar de o regime tentar conquistar apoio (ou, pelo menos, a não-oposição) dos partidos políticos curdos. No início de março de 2011, por exemplo, o Ministério de Assuntos Sociais decidiu normalizar o status dos curdos em todas as questões relacionadas a emprego, revogando também o Decreto Nº 49, que havia impedido a transferência de terras nas regiões fronteiriças que afetavam a população curda.(Kurd Watch 2013b: 4) Em 20 de março, o regime reconheceu e celebrou o Nowruz, o Ano Novo persa e curdo, que pela primeira vez foi transmitido na televisão estatal e coberto em diversos ângulos pela agência nacional de notícias.(ICG 2011: 22) Nos anos seguintes, o festival seria celebrado de forma muito pública pelo regime.(Sabbagh 2016b) No entanto, os Comitês Curdos de Coordenação cancelaram as comemorações seguintes do Nowruz em março de 2012, transformando-as em manifestações pela derrubada do regime.(Abdallah, al-Abd Hayy, e Khoury 2012)
Após reuniões com representantes curdos, em abril de 2011, Bashar al-Assad publicou um decreto estendendo a nacionalidade síria na província de Hasakah a pessoas registradas como estrangeiros. Os ajanib, enquanto curdos sem registros, conhecidos como maktumin, foram excluídos da medida, ao mesmo tempo em que 48 presos, a maioria curda, também foram soltos[6]. Apesar dessas decisões, milhares marcharam pacificamente em diversas cidades – sobretudo em Qamishli, Amuda e Hasakah – cantando “Não queremos só nacionalidade, queremos também liberdade”(Orient le Jour 2011e).
A partir do verão de 2011, a bandeira curda passou a ser erguida com frequência por manifestantes ao lado da bandeira Síria. Em outubro, ocorreram manifestações massivas na cidade de Qamishli, após o assassinato do respeitado militante curdo-sírio Mishal Tammo. Dirigente do Movimento Futuro Curdo na Síria (Şepêla Pêşeroj a Kurdî li Sûriyê) e solto após mais de dois anos nas prisões do regime, Tammo também integrou o comitê executivo do Congresso Nacional Sírio (CNS). Com a notícia de sua morte, milhares de manifestantes saíram às ruas contra o regime.(Nono Ali 2011)
Os protestos de massa continuaram em Qamishli, atingindo seu ápice em meados de 2011. Elas diminuíram consideravelmente depois, devido à militarização do levante e o crescimento progressivo do PYD nas cidades.(Darwish 2016a)
A colaboração entre os grupos de juventude árabe e curdo, e os CCLs, continuaram até meados de março de 2012. Depois desse período, os ativistas curdos começaram a usar palavras de ordem próprias, com referência a questões curdas que não haviam sido previamente aceitas como slogans gerais. No entanto, o uso de algumas palavras de ordem religiosas por vários grupos árabes também gerou discórdia entre os curdos.(Kurd Watch 2013b: 4; Hassaf 2018)
Parte dos ativistas e dos comitês curdos foram inicialmente receptivos ao surgimento do Exército Livre da Síria (ELS). No entanto, passaram a se opor cada vez mais a ele na medida em que o ELS recorria à ajuda e patrocínio de potências exteriores, em particular da Turquia, práticas religiosas extremistas e atitudes hostis às demandas políticas e aos símbolos curdos.(Youssef S. 2016; Abd el-Krim 2016; Hassaf 2018) Ao mesmo tempo, o apoio tácito, ou até a adoção por inúmeros ativistas árabes da retórica anticurda, desde o início do levante, produziu rusgas. Militantes curdos eram acusados de separatismo e de buscar a independência do Curdistão. Quando ativistas da comunidade criticavam as práticas da oposição, ou se mencionassem os direitos nacionais curdos, eram frequentemente acusados de traição. Como relatado por um ativista curdo de Alepo, ver os revolucionários árabes tratando-os como fazia o regime, empurrou cada vez mais a comunidade em direção ao PYD.(Lundi Matin 2018)
Simultaneamente, os comitês curdos de juventude seguiam capazes de organizar mobilizações eficientes e protestos contra o regime sírio, assim como diluir tensões árabes-curdas em muitas áreas durante os primeiros anos do levante.(Tansîqîya al-tâkhî al-kûrdîya 2011; All4Syria 2013) Ao longo do tempo, a influência da maioria desses comitês, porém, foi perdendo força na sua base.
Os manifestantes curdos não se limitavam às exigências ditas corporativas, como a concessão de nacionalidade síria aos curdos apátridas; eles integravam um movimento de protesto muito maior, em todo o país. Essa perspectiva era endossada por diversos ativistas curdos-sírios, que se viam parte da construção plural de um novo país.(Youssef S. 2014; Abd El-Krim 2016; Hassaf 2018) Isso não significava que as demandas nacionais curdas tradicionais fossem postas de lado pela juventude e os manifestantes, elas também integravam seus horizontes e lutas mais amplas contra o regime Assad.
Apesar de ativos no levante, os CCLs curdos enfrentavam o ceticismo e a oposição dos partidos políticos curdos tradicionais, na sua maioria pouco inclinados a participar ou a ter um papel de direção nos protestos contra o regime.(ICG 2013: 9) Apenas o Movimento Futuro, liderado por Mishal Tammo, e o Partido Yekiti apoiaram publicamente o levante desde o início. Muitos ativistas da juventude do partido estavam entre os organizadores dos protestos nas regiões curdas.(Kurd Watch 2013b: 4; Othman 2016) O Congresso Político Curdo,[7] fundado em 2009, cresceu com o início do levante na primavera de 2011. Ao final de abril, criou o Movimento Nacional dos Partidos Curdos, que incluía três novas organizações; entre eles, o PYD. Em maio de 2011, o Movimento Nacional dos Partidos Curdos anunciou seu programa, incluindo o fim do unipartidarismo na Síria, igualdade para todos os cidadãos e um Estado laico.(Kajj e Sinclair 2011)
Uma nova conferência foi organizada em outubro de 2011, reunindo a maioria dos partidos políticos curdos, ativistas independentes, organizações de mulheres curdas, movimentos de juventude, ativistas de direitos humanos e representantes de categorias profissionais, com o objetivo de unir a oposição curda na Síria.(Allsopp 2015: 201) Isso levou à criação do Congresso Nacional Curdo (KNC), logo após a do Congresso Nacional Sírio. Fundado em Erbil, no Iraque, o KNC surgiu sob o patrocínio de Massoud Barzani, então presidente do Governo Regional do Curdistão, no Norte do Iraque,(Carnegie 2012b) um importante aliado da Turquia, à época. Barzani exercia grande influência sobre diversos grupos de oposição sírios e curdos. A missão declarada do KNC era encontrar uma “solução democrática para a questão curda, enfatizando ao mesmo tempo sua participação na revolução”.(Hossino e Tanir 2012: 3)
Registravam-se ainda problemas dentro do KNC, pelo pouco poder nas mãos de ativistas independentes e organizações de juventude, se comparados aos partidos políticos. Quarenta e cinco pessoas foram eleitas para o comitê executivo inicial, incluindo 20 representantes de partidos e seis de organizações de juventude. Depois, em janeiro de 2012[8], o comitê executivo foi ampliado para 47 membros, integrando novos partidos políticos. Alguns grupos de juventude também foram absorvidos pelos partidos existentes, perdendo, assim, a sua independência e muitas vezes diminuindo seu papel nas ruas. Enquanto isso, os movimentos de juventude que permaneceram independentes eram cada vez mais marginalizados pelos partidos que dominavam o KNC.(Allsopp 2015: 203-204) Algumas organizações e partidos continuaram filiados à entidade apenas simbolicamente, ao passo que outros a abandonaram ou deixaram de cooperar com ela.(Halhalli 2018: 40; Hassaf 2018)
Dois dos partidos que participaram da conferência de fundação optaram por não integrar o KNC: o PYD e o Movimento Futuro. Esse último citou quatro pontos de objeção ao KNC: falta de comprometimento com a derrubada do regime, apoio insuficiente ao movimento de juventude, excesso de influência e intervenção estrangeira na entidade, e falta de maior relevância na representação de ativistas independentes no conselho.(Allsopp 2015: 2014) O PYD participou da conferência de fundação do KNC após seu lançamento, em outubro, antes de decidir boicotar o grupo e integrar o Comitê de Coordenação Nacional.(Hossino e Tanir, 2012) O PYD opunha-se ao papel e à influência turca na criação do Conselho Nacional Sírio, assim como do Congresso Nacional Curdo, pela relação próxima de seu principal patrocinador, Massud Barzani, com o governo em Ancara. Em períodos distintos, ambos os militares turcos e os peshmergas (combatentes curdos) de Barzani atacaram bases militares do PKK no Iraque.
Em dezembro de 2011 o PYD fundou o Conselho Popular do Curdistão Ocidental, constituído como alternativa ao KNC, ao qual recusara-se a se unir. O Conselho Popular foi descrito pela organização como uma assembleia local eleita, voltada a construir instituições civis e prover serviços sociais à população local.(ICG 2013: 13) A declaração da conferência apoiou o levante popular na Síria e em outros países da região, “visando estabelecer uma democracia pluralista”(CPCO 2011). As cinco organizações que compunham o Conselho Popular (Movimento de Rojava por uma Sociedade Democrática [TEV-DEM], Organização de Mulheres Yekîtiya Star, União das Famílias dos Mártires, Instituto de Educação e Linguagem e o Movimento da Juventude Revolucionária do Curdistão Ocidental) eram todas associadas ao PYD. Na verdade, o Conselho Popular funcionava como um guarda-chuva para abrigar grupos e movimentos filiados ao partido curdo.(Allsopp 2015: 205)
As atividades do Conselho Popular tinham como objetivo mobilizar apoio para o PYD nas regiões que enfrentavam um vácuo de poder, erguendo instituições civis como os Comitês Populares, responsáveis por atividades específicas nas áreas curdas sob seu controle, assim como as instituições de segurança, incluindo os Comitês e as Unidades de Proteção Popular (Yekîneyên Parastina Gel, ou YPG).(ICG 2013: 14)
Um termo de paz social selou-se entre o PYD e o KNC em janeiro de 2012, para evitar choques entre eles, porém o acordo jamais foi implementado, resultando em diversos ataques e repressão promovidos por apoiadores do PYD contra outros ativistas curdos.(Hossino e Tanir 2012; Human Rights Watch 2014; Abdelkrim 2014; Othman 2016; Youssef S. 2016; Hassaf 2018; Kurd Watch 2018) Em meio à multiplicação de choques entre apoiadores do PYD e do KNC, os movimentos de juventude curdos e seus apoiadores começaram a se opor à dominação e controle do PYD nas áreas curdas(ICG 2013: 10; Allsopp 2015: 210).
Na cidade de Amuda, os protestos evidenciaram a política da dura repressão levada a efeito pelo YPG. Em 17 de junho de 2013, forças policiais curdas (Asaish) prenderam três ativistas. Contra essas detenções, grupos de oposição curdos e seus apoiadores ergueram uma tenda, ocupando sua praça principal, que se transformou no centro de uma greve de fome.(Syria Freedom Forever 2013a) Em 27 de junho de 2013, soldados do YPG locais dispararam contra uma multidão de manifestantes, matando três homens.(Zakwan Hadid 2013) Já as forças de segurança do PYD tiraram a vida de mais duas pessoas naquela noite, e de uma terceira no dia seguinte, sempre em circunstâncias obscuras. Na noite de 27 de junho, o PYD também detive cerca de 50 membros e apoiadores do Partido Yekiti em Amuda, espancando-os em uma base militar do YPG.(Human Rights Watch 2014: 4) Após tais incidentes, os Comitês de Coordenação Local(2013b) publicaram uma declaração “A Respeito dos Atos de Violência contra Civis Curdos Sírios”, condenando o ocorrido.
As manifestações nas regiões habitadas por curdos tornaram-se cada vez mais fragmentadas segundo os diferentes partidos ou alianças políticas: em Qamishli, Amuda e Hasaka, por exemplo, de três a cinco mobilizações paralelas eram organizadas toda sexta-feira.(IRIN 2012; Allsopp 2015: 211; Schmidinger 2018: 90)
O PKK prosseguiu com suas duras críticas ao partido de Barzani, o PDK, e grupos simpáticos a ele, pela associação a práticas corruptas e feudais. Já o PDK culpava o PKK e a seu partido-irmão, o PYD, por políticas violentas e indisposição em colaborar com outras organizações, exceto quando na sua direção.(Van Bruinesse 2016: 11) Ao mesmo tempo, o PYD mantinha uma posição hostil em relação ao Congresso Nacional Sírio – visto como marionete da política externa turca, caracterizando de “colaboradores” os grupos e figuras curdas que se juntavam a ele. Os líderes do PYD argumentavam que o CNS não havia respondido de forma suficientemente positiva à questão das relações sunita-alauita na Síria pós-Assad ou à problemática curda, e que seu objetivo era o de facilitar a intervenção de potências estrangeiras, especialmente da Turquia (ver Capítulo 6), enveredando por um regime islâmico moderado que oprimiria os curdos no país.(Hossino e Tanir 2012).
Em destaque, a foto de um protesto contra o regime de Assad durante o levante sírio, tirada na cidade sitiada de Al Qsair, em janeiro de 2012 (fotografia por Alessio Romenzi/Corbis)
Notas
[1] O Partido Yekiti foi criado em 1992, depois da unificação de diversos grupos curdos, a partir de origens da esquerda e nacionalistas. Estudantes, intelectuais e profissionais liberais dominavam suas fileiras, apesar de ser possível encontrar membros de todos os estratos.(Tejel 2009: 112)
[2] Em agosto de 1960, as autoridades da República Árabe Unida (RAU), lançaram uma dura campanha de repressão contra o principal partido curdo da época, o Partido Democrático do Curdistão Sírio. Mais de 5000 indivíduos terminaram presos e torturados, enquanto cerca de 20 de seus líderes foram aprisionados e acusados de separatismo.(118: Allsopp 2015: 21; Tejel 2009: 49) Alguns dos líderes do movimento migraram ao Curdistão iraquiano em busca de refúgio.(Allsopp 2015: 77)
[3] Seurat 2012: 181. Entre 120 mil e 150 mil curdos foram classificados como estrangeiros não-cidadãos (ajanib) nos seus documentos de identidade e não podem votar, ter propriedades ou obter empregos governamentais. Porém, não são isentos do serviço militar obrigatório e, assim como os chamados maktumin (não-registrados), não têm direito sequer a receber tratamento nos hospitais estatais, nem obter certificados de casamento. Os maktumin não são reconhecidos oficialmente de maneira alguma e não possuem documentos de identidade.
[4] A União Patriótica do Curdistão (Partiya Demokrat a Kurdistanê, conhecido pela sigla PUK) foi originalmente um partido político iraquiano-curdo de esquerda, que se separou do Partido Democrata do Curdistão (Yekêtîy Nîştimanîy Kurdistan, conhecido pela sigla KDP) em meados dos anos 1970.
[5] O KDP é o mais antigo partido político curdo no Curdistão iraquiano. Foi fundado em 1946 na região curda do Irã, onde os curdos iraquianos, liderados por Mustafa Barzani, se refugiavam.(The Kurdish Project 2017)
[6] A capacidade de avaliar as implicações do decreto de 2011 é prejudicada pelo fato de que o país entrou num conflito violento, compelindo grandes segmentos da população a deixar seu território. Nesse ínterim, houve complicações para sua aplicação. Além disso, uma das principais críticas ao Decreto No. 49 foi de que, não sendo retroativo, não oferecia compensações para a destituição de propriedades ou de direito à terra resultante da perda da nacionalidade de 1962.(Al-Barazi 2013: 24) Apesar de milhares de curdos terem conseguido obter cidadania síria após a aprovação do decreto, 19 mil deles permaneceram privados dela, enquanto outros 46 mil não foram registrados em 2018, segundo a ONG Syrian for Truth and Justice (Sírios pela Verdade e a Justiça).(Sheikho 2018)
[7] Em 2009 dez partidos políticos curdos estabeleceram o que ficou conhecido como o Congresso Político Curdo: o Partido Democrata Curdo Sírio, o Partido de Esquerda Curdo, o Partido Democrata Curdo na Síria, o Comitê de Coordenação Curdo, o Partido Yekiti Curdo na Síria, o Partido Azadi Curdo na Síria e o Movimento Futuro Curdo.(Hossino e Tamir 2012)
[8] O Partido da União do Curdistão na Síria, o Partido Democrata Curdo na Síria e o Partido do Acordo Democrático do Curdistão entraram no KNC no início de 2012.
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PARTE 3
Parte 4A bibliografia pode ser conferida neste link.