Por Joseph Daher
O artigo a seguir, publicado em 4 partes, é o quinto capítulo do livro Síria Depois Dos Levantes, de Joseph Daher. A versão integral do livro foi traduzida pela Contrabando Editorial e será publicada no fim de 2023
O regime, o PYD e Rojava
Logo após o início do levante, em 2011, a liderança do PYD pôde retornar à Síria, apesar da banição do partido no país. Saleh Muslim, seu líder a época, voltou à cidade síria de Qamishli em abril de 2011. Ele havia se refugiado em um acampamento do PKK no Iraque em 2010, depois de ser preso junto com sua esposa, na Síria [1].
Com o retorno da direção do PYD, a organização começou a realizar ações políticas e paramilitares para mobilizar apoio entre os curdos sírios. Nesse quadro, o PKK transferiu entre 500 e 1000 combatentes armados para criar a ala militar do PYD, o YPG (ICG 2013: 2), que operava como exército. Em outubro de 2011, o regime liberou diversos presos políticos curdos e, logo depois, Damasco permitiu que o PYD abrisse seis “escolas de língua” curda no norte da Síria, que o grupo usava, na prática, para fazer trabalho político. Em março de 2012, o PKK foi capaz de transferir entre 1500 e 2000 militantes do enclave montanhoso de Qandil (na fronteira entre Iraque e Irã) para a Síria. Já a Turquia adotava uma posição mais hostil em relação ao regime Assad entre meados e o final de 2011 (Cagaptay 2012; IRIN 2012). Assad permitiu que o PYD desenvolvesse e ampliasse sua influência para pressionar os turcos. Do ponto de vista militar, a direção exilada do PKK, baseada nas montanhas Qandil, exerceu autoridade sobre o YPG durante todo o levante, cuja liderança era dominada por combatentes sírios e estrangeiros (curdos de outras nacionalidades) do PKK, treinados em Qandil (ICG 2014a: 5; Grojean 2017: 125).
O regime sírio retirou parcialmente suas forças de algumas áreas habitadas por maiorias curdas em julho de 2011, ou pelo menos deixou de atuar naquelas regiões. O PYD e as forças curdas mais tarde unificadas no KNC competiam pela representação dos interesses curdos na Síria. A capacidade do PYD de se organizar abertamente pelo país levantou suspeitas de que o partido havia firmado um acordo com o regime, que lhe permitiria reestabelecer sua presença e livre operação. Em troca, o PYD cooperaria com as forças de segurança para suprimir os protestos antirregime nas áreas de maioria curda e marginalizar outros partidos políticos curdos, a fim de conquistar a hegemonia no cenário político curdo na Síria. O PYD dispunha-se a preencher com vigor o vácuo de poder deixado pelo regime (IRIN 2012; ICG 2013: 2; Grojean 2017: 123).
Paralelo a isso, durante esse período, o PYD utilizou-se cada vez mais das redes sociais para projetar suas credenciais antirregime e de apoio ao levante, principalmente a partir do início de 2012 (IRIN 2012; ICG 2013: 14). Nesse fase, as tensões entre o regime e o PYD tornaram-se mais agudas em algumas áreas, a exemplo da batalha armada ocorrida em Kobani entre o PYD e os apoiadores do regime, assim como contra membros do Serviço de Inteligência da Força Aérea. Um tribunal militar em Alepo condenou quatro apoiadores do PYD a 15 anos de prisão por pertencerem à organização. Ademais, na véspera do referendo constitucional do regime Assad, em 26 de fevereiro de 2012, o PYD fez campanha pelo boicote às urnas, alegando que a nova constituição nada oferecia aos curdos (Hossino e Tanir 2012).
Longe de uma marionete de Assad, o PYD desempenhava um papel mutuamente benéfico a si mesmo e ao regime. Ele projetou-se na falta de segurança e expandiu a área que controlava, a fim de alcançar seus objetivos políticos, garantindo alguma forma de autonomia para os curdos nas regiões onde eram maioria. Ao mesmo tempo, o regime foi capaz de concentrar suas forças militares em outras regiões onde ocorriam protestos e resistência armada, enquanto o PYD, em geral, mostrava-se hostil a vários grupos armados de oposição, evitando que eles entrassem em seus territórios. A presença do PYD ao longo da fronteira norte do país também privava algumas forças da oposição síria de suas bases e linhas de suprimento, que atravessavam a Turquia. Como mencionado, a expansão da influência do PYD também foi um instrumento utilizado por Damasco para pressionar a Turquia, cuja hostilidade ao regime, e intervenção a favor das forças de oposição, cresciam na Síria.
Autodeterminação
Os dilemas históricos em torno da questão curda reapareceram com o levante popular [2]. A oposição árabe rejeitou as demandas da oposição curda síria e do KNC, assim como do PYD. Em meados de julho de 2011, representantes curdos no encontro de Istambul retiraram-se em protesto à negativa de alterar o nome do país de República Árabe Síria para República Síria. (Kajjo e Sicnlair 2011)
As relações entre o CNS e o KNC foram difíceis desde o início. O primeiro presidente do CNS, Burhan Ghalioun, recusou a principal demanda do KNC por um modelo federativo na Síria pós-Assad, chamando-o de “delírio”. Em novembro de 2011, Ghalioun também enfureceu os curdos sírios ao compará-los a “imigrantes na França”, explicitando sua exterioridade à Síria (Abdallah, Abd Hayy (al-) e Khoury 2012). Respondendo à contínua recusa às demandas curdas nos conselhos da oposição, em 30 de março de 2012, os ativistas e movimentos curdos denominaram as manifestações de sexta-feira como “dos direitos curdos” (Allsopp 2015: 206).
As tensões entre o KNC e o CNS aumentaram consideravelmente depois da publicação, pelo CNS, de “Carta Nacional: A Questão Curda na Síria”, em abril de 2012. O documento abandonava formulações anteriores que reconheciam uma nação curda dentro da Síria, presentes na proposta final de declaração do encontro dos Amigos da Síria, reunidos na Tunísia. Isso resultou na saída do KNC dos diálogos de unidade com o CNS, e que depois acusou a Turquia de influência excessiva na política do CNS (Carnegie 2012b). Dentro da Síria, respondendo à recusa dos direitos nacionais curdos pelo CNS em 20 de abril, grupos de juventude e partidos políticos levantaram faixas afirmando “Aqui está o Curdistão”. Duas semanas antes, na sexta-feira de 6 de abril, os protestos tinham como palavra de ordem central, “Direitos curdos acima de qualquer conselho” (Allsopp 2015: 206).
A oposição árabe síria acertou outro duro golpe no KNC ao recusar a menção do termo “povo curdo na Síria” em seu encontro no mês de julho de 2012, no Cairo (Sary 2015: 9). Mais tarde, em 27 de agosto de 2013, o KNC juntou-se à Coalizão Nacional Síria da Oposição e das Forças Revolucionárias, esperando obter resultados melhores, porém sem sucesso. O CNS e a Coalizão Nacional continuaram obstruindo os partidos e ignorando os interesses curdos. O KNC também foi incluído no Comitê de Altas Negociações (CAN) (KNC 2016a) após a Conferência da Oposição em Riyadh, em dezembro de 2015. Isso não evitou a contínua recusa aos direitos curdos, nem afirmações chauvinistas pelos membros árabes da Coalizão Nacional. Em 29 de março de 2016, por exemplo, o chefe da delegação do CAN em Genebra, o ex-general As’ad al-Zo’abi, declarou à televisão Radio Orient:
Os curdos representam 1% da população e apenas queriam receber seus documentos durante a era de Hafez al-Assad, para provar que eram “seres humanos” (…) (Smart News Agency 2016).
Respondendo a tais afirmações racistas, organizaram-se protestos contra o CAN em diversas cidades de maioria curda (SMART News Agency 2016).
O CNS e a Coalizão mantiveram uma atitude de confronto em relação ao PYD, caracterizando-os como inimigos da revolução. Em janeiro de 2016, o então presidente do CNS, George Sabra, alegou que o PYD não integrava a oposição, e que politicamente era muito próximo ao regime, além de integrar o PKK, classificado como organização terrorista. A declaração, portanto, endossava a posição oficial da Turquia em relação ao grupo (al-Jazeera English 2016).
A grande maioria dos movimentos políticos curdos sírios, incluindo ambos PYD e KNC, ficaram descontentes com o plano de transição proposto em setembro de 2016 pelo Comitê de Altas Negociações, da oposição. O KNC reiterou que
O documento não é parte da solução, ele representa uma ameaça a uma Síria democrática, plural e unida, garantidora dos direitos culturais, sociais e políticos de todos os seus grupos étnicos, religiosos e linguísticos.
E acrescentou:
Nota-se de partida que o primeiro ponto dos “Princípios Gerais” lista apenas a cultura árabe e o Islã como fontes da produção intelectual e das relações sociais. Essa definição claramente exclui outras culturas – sejam elas etnias, grupos linguísticos ou religiosos – e estabelece a cultura majoritária como principal. Enquanto curdos sírios, repudiamos essa percepção estreita do povo sírio. As semelhanças entre tal conceituação e as políticas chauvinistas do regime Assad são inegáveis.
Novos atritos ocorreram em março de 2017, durante outra rodada das negociações de paz em Genebra, quando representantes do CCN e do CAN se recusaram a juntar um documento redigido pelo KNC para o enviado especial da ONU, Staffan de Mistura. Esse afirmava a representação curda no processo de negociação de paz, exigindo a inclusão da questão curda e os interesses de outros segmentos da população síria na agenda de negociações. Em resposta, o KNC suspendeu sua participação nas negociações e nas reuniões com o Comitê de Altas Negociações (KNC 2017).
O CCN não foi muito diferente do CNS e do Comitê de Altas Negociações na problemática. Sua posição original previa uma “solução democrática para a questão curda como parte da unidade da terra síria sem contradizer a Síria como parte integrante do mundo árabe.” Em fevereiro de 2012, os partidos curdos que pertenciam ao CCN (excluindo o PYD) retiraram-se, para se unir ao KNC. A Coalizão modificou levemente suas posições em abril do mesmo ano, endossando a implantação de “princípios descentralizados” numa futura Síria, porém, sem conseguir atrair o retorno dos partidos curdos (Carnegie 2012b). Mantiveram, ainda assim, sua oposição a um sistema federativo na Síria.
O Exército Livre da Síria (ELS) não mantinha uma posição oficial, mas a maioria da sua direção era hostil aos direitos e demandas nacionais curdas. O Coronel Riad al-As’ad, um dos líderes do ELS, declarou que o grupo não permitiria que qualquer território fosse separado da Síria e que “nós jamais deixaremos Qamishli (…) Não cederemos nem um metro de solo sírio e nos dispomos ir à guerra por isso” (citado em Dunya Times 2012).
Autoadministração
Em junho de 2012, Massud Barzani mediou um acordo de partilha de poder entre os dois principais grupos curdos, o Conselho Nacional Curdo e os Conselhos Populares do Curdistão Ocidental. Conhecido como a Declaração de Erbil, afirmava disposição das partes em governar o conjunto das regiões curdas da Síria durante um período de transição, por meio de um recém-criado Comitê Supremo Curdo (Kurd Watch 2012b). No entanto, a Declaração de Erbil permaneceu letra morta, já que as posições do PYD na Síria se fortaleciam por sua recusa em dividir o poder com outras forças políticas curdas.
Apenas em 19 de julho de 2012, 17 meses após o início do levante, as forças do regime se retiraram de nove cidades majoritariamente curdas, que passaram ao controle do PYD. Os militantes do PYD afirmaram que os representantes do regime se retiraram após um ultimato e ameaça de ataques pelo partido nas 24 horas seguintes, enquanto o CNS e alguns rivais curdos acusaram o PYD de operar um acordo com o regime (ICG 2013: 14; Ayboga, Flach e Knapp 2016: 56-57).
Muito provavelmente, a retirada das forças de Assad resultou de um acordo tácito com o PYD, que conseguiu se reorganizar alguns meses após o início da revolta. O regime sírio precisava de todas as suas forças armadas para reprimir as manifestações em outras partes do país, evitando abrir uma nova frente militar, apesar de manter uma pequena presença em algumas cidades, como em Qamishli e Hasaka. Isso também incluía a estratégia assadista de fragmentar o levante em divisões étnicas e religiosas, na medida em que o PYD adotou inicialmente uma posição neutra em relação a grandes setores da oposição, negando-se a colaborar com grupos e ativistas populares nas áreas majoritariamente árabes e tentando, ao mesmo tempo, dominar e controlar a população curda na Síria.
O PYD ocupou os prédios municipais do regime em ao menos cinco de seus redutos – Kobani, Amuda, al-Malikiyah (Derek), Afrin e Jinderes – substituindo a bandeira síria por seus símbolos. O controle do PYD sobre tais territórios, tão próximos à fronteira turca, alarmou o governo em Ancara. Seu primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdoğan, condenou quaisquer planos de estabelecer uma região autônoma curda na Síria antes da visita de Salih Muslim, líder do PYD, para discussões em Ancara em julho de 2013 (Naharnet 2013). Apesar das garantias afirmadas pelo líder do PYD ao governo turco de que a exigência por autonomia local nas regiões curdas da Síria não significariam uma divisão do país (Khoshnawi 2013), as relações entre ambos os lados se deterioraram rapidamente, reforçadas também pelo fim do processo de paz na Turquia entre o PKK e o governo de Erdoğan.
O pleno controle do PYD sobre as regiões de maioria curda levou a organização a recusar a proposta na Declaração de Erbil de partilhar o poder, defendida por Barzani. Propuseram, em seu lugar, formar um conselho independente temporário para gerir o Curdistão Ocidental (noroeste da Síria) até o final da guerra civil, voltado às necessidades da população local, de melhorar a economia e responder aos ataques do regime Assad, das forças islâmicas e do exército turco. O PYD recusou a entrada no país dos combatentes peshmerga – afiliados ao KDP de Barzani – fora do comando direto do YPG. O KNC discordou dessas condições e reafirmou a importância da cooperação e diálogo com as forças revolucionárias e a oposição nacional na Síria (IRIN 2012; ICG 2014a: 2-3).
A crescente hegemonia política e militar do PYD e a incapacidade do KNC em projetar sua influência dentro da Síria enfraqueceu ainda mais a organização, aprofundando suas divisões internas. Alguns partidos dentro do KNC viam a cooperação com o PYD como a única maneira de manter uma base política na Síria e se defender das forças de oposição, islâmicas ou jihadistas que atacavam as regiões habitadas pelos curdos. A campanha “O Curdistão Ocidental para seus filhos”, organizada pelo PYD no verão de 2012 contra os ataques de grupos armados, também diminuiu as críticas ao partido, unindo temporariamente os curdos sírios de todo o espectro político (ICG 2014a: 3). O ativista curdo sírio Shiyar Youssef (2016) explicou:
Mesmo os mais críticos ao PYD começaram a vê-lo como “o menor de dois males” após os ataques do ELS e das forças islamistas e jihadistas contra as áreas habitadas pelos curdos. Eu conheço muitos ativistas em Qamishli, Amuda e em outras áreas que, antes, organizavam manifestações e escreviam contra o PYD. Mas agora, na nova conjuntura, começaram a se voluntariar nas fileiras do YPG para lutar contra os islamistas, porque, se eles vencerem, dominarão tudo, impondo seus valores, que são estranhos à população local (…)
Argumentações similares foram expostas por outros ativistas (Abd El-Krim 2016; Hassaf 2018), fortalecendo o discurso do PYD em ser a única defesa viável curda síria contra as ameaças externas. Esse sentimento consolidado entre os curdos na Síria só aumentou ao longo do levante.
As relações entre o KNC e o PYD seguiram deteriorando-se, pois não havia espaço na cena política para o KNC e suas várias facções. A fronteira entre a Síria e a região curda do Iraque, controlada pelo chefe do KNC, Massud Barzani, tornou-se uma arena para a competição intercurda. Temendo que o PYD aumentasse sua influência e protagonismo, controlando a distribuição de ajuda humanitária, o Governo Regional do Curdistão no Iraque fechou por alguns períodos o acesso ao seu lado da fronteira, impedindo a entrada de suprimentos. Com isso, as condições de vida deterioraram-se rapidamente nas áreas curdas da Síria.
Sofrendo com a falta contínua de eletricidade, água, alimentos e gás, em meados de 2013, um fluxo populacional seguiu em direção ao Curdistão iraquiano. Ao mesmo tempo, diversas áreas habitadas por curdos no nordeste da Síria sofreram ataques de grupos fundamentalistas islâmicos e jihadistas. Em 15 de agosto, o KDP abriu a fronteira, mas fechou-a novamente três dias depois. Nesse período, entre 40 e 70 mil curdos fugiram para o Curdistão iraquiano. O número de refugiados na região iraquiana chegou a quase 200 mil até o início de agosto de 2013. As relações se deterioraram ao ponto do KDP proibir que os membros do PYD entrassem na província de Erbil, reprimindo alguns dos seus militantes. Em resposta, o PYD impediu que líderes pró-Barzani cruzassem para a Síria, igualmente reprimindo seus apoiadores (IRIN 2013; Eakin 2013; ICG 2014a: 10-11).
Notas:
[1] Carnegie 2011, Sua liderança foi reconfirmada no quinto congresso extraordinário do PYD, realizado em 16 de junho de 2012, em que o Comitê Central do partido foi expandido, introduzindo-se a liderança dupla para aumentar e promover a representação das mulheres no partido, e elegendo Asiyah Abdullah copresidente do partido (Carnegie 2012a). No sétimo congresso do PYD, em setembro de 2017, ocorrido na cidade de Rmeilan, no nordeste da Síria, elegeu-se uma nova liderança. Shahoz Hasan e Aysha Hisso substituíram Saleh Muslim e Asya Abdullah como novos copresidentes do PYD (Aarafat 2017b). No entanto, Saleh Muslim prosseguiu como figura chave e influente no partido.
[2] Apesar de a Declaração de Damasco de 2005 reconhecer explicitamente a questão curda, os quatro partidos curdos que a assinaram ainda não ficaram satisfeitos com a maneira como a grande maioria dos partidos políticos sírios e associações de direitos humanos limitaram a questão curda à um único item do censo de 1962, deixando os curdos privados de sua cidadania. A maioria não estava pronta para reconhecer os curdos como uma nação separada, nem estava disposta a escutar as exigências de federalismo e descentralização (Tejel 2009: 127).
A publicação deste artigo foi dividida em 4 partes, com publicação semanal:
Parte 1
PARTE 3
Parte 4A bibliografia pode ser conferida neste link.