Por Anônimo
Nota do Passa Palavra: enquanto vemos certa euforia com novos regimes surgidos da mais recente onda de golpes militares no Burkina Faso, no Gabão, no Chade, na Guiné, no Sudão e no Mali, em especial pelos muitos vídeos que circulam pela internet com a população depositando nos novos ditadores militares altas esperanças de que acabem com a “corrupção” e com o “colonialismo”, poucos se debruçam sobre estes fatos tentando dissipar a neblina da guerra em busca das contradições e conflitos internos que contribuem para formar estes regimes. Mais raros ainda são os que olham para os militares de forma crítica, como parte de uma sociedade local muito mais complexa que certos olhares paternalistas e certas fantasias edênicas de uma África “pura” permitem conceber. O texto a seguir, de autor anônimo e publicado em 2021 pelo coletivo Ill Will, mesmo com suas limitações, é uma tentativa de remar contra a maré e lançar sondas para auscultar o trabalho das correntes sociais sob a superfície. Esperamos que sirva de provocação a outros leitores mais atentos ao que se passa na África que se disponham a estender o debate.
As revoluções proletárias… zombam impiedosamente das hesitações, fraquezas e inadequações de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para vê-lo extrair novas forças da terra e erguer-se novamente de forma formidável diante delas, recuam repetidamente diante da imensidão de suas tarefas, até que finalmente é criada uma situação que torna impossível qualquer retorno, e as próprias condições gritam: “hic Rhodus, hic salta!”
— Marx
No final de 2018, o Sudão estava em meio a uma crise econômica. O governo começou a implementar medidas de austeridade. Isso incluiu o corte de subsídios para combustível e trigo. Em resposta, houve tumultos em Atbar, uma cidade no norte. Os protestos se espalharam rapidamente para meia dúzia de cidades e, depois, para quase todos os lugares. Logo os manifestantes estavam exigindo não apenas o fim da austeridade, mas a queda do regime.
Os protestos diminuíram e fluíram por meses até o início de abril, quando um acampamento em massa começou do lado de fora do quartel-general militar em Cartum. A ocupação rapidamente se tornou o local de confrontos com a polícia e, depois, entre diferentes facções das forças armadas. Os soldados começaram a desertar. Em uma semana, foi anunciado que o presidente al-Bashir havia sido preso e que um Conselho Militar de Transição (TMC) assumiria o poder para supervisionar a transição para a democracia.
A revolução no Egito, que começou em 2011, teve um fim abrupto quando os militares tomaram o poder em um golpe. Determinado a não seguir o mesmo caminho, o movimento no Sudão tinha como objetivo derrubar também esse novo regime militar. “Vitória ou Egito” tornou-se a nova palavra de ordem da revolução. Seguiram-se meses de greves, manifestações e bloqueios. O acampamento em Cartum se expandiu até chegar a quase um quilômetro de comprimento, com mais de cem mil pessoas à noite. Isso culminou em uma greve geral no final de maio.
Em 3 de junho, o regime militar massacrou os manifestantes ocupantes e incendiou o acampamento de Cartum até o chão. O movimento reagiu com outra onda de greves e protestos em massa coordenados. Porém, logo em seguida, com medo de que levar as coisas adiante significasse o risco de uma guerra civil, os representantes do movimento entraram em negociações com o regime. Isso resultou em um acordo de compartilhamento de poder no qual um governo provisório composto por representantes militares e civis administraria a transição.
A seguir, algumas reflexões sobre a revolta no Sudão e sua importância global.
I.
A revolução no Sudão nos dá o vislumbre mais claro da forma da revolução social que está por vir. Ela também apresenta o maior contraste entre os limites e os potenciais da luta contemporânea.
II.
A Primavera Árabe levantou a questão da revolução pela primeira vez em uma geração e abriu uma nova sequência global de lutas. Mas em quase todos os lugares essas revoluções terminaram em um golpe militar ou em uma guerra civil. Se as revoluções na Tunísia e no Egito inspiraram a sensação de que tudo era possível, a longa contrarrevolução que se seguiu indicou que qualquer tentativa de mudar a ordem das coisas levaria a uma catástrofe. Essa derrota lançou uma longa sombra sobre o mundo.
III.
As revoluções no Sudão e na Argélia foram os primeiros esforços conscientes para ir além dos impasses alcançados pelo Egito. Elas não conseguiram ultrapassar esses limites. Mas, em suas tentativas, mostraram que as tentativas revolucionárias não precisam inevitavelmente mergulhar a região no caos. Os historiadores que olham para trás provavelmente concluirão que isso foi necessário para que uma nova onda de lutas se abrisse da maneira que aconteceu em 2019.
IV.
As lutas mais intensas de nosso tempo chegam a um precipício e depois voltam atrás. Ir além significaria dar um salto para o desconhecido. Ninguém quer ser o primeiro a pular e ver se descobre novas terras ou se simplesmente cai em queda livre. Ainda não sabemos como será criada uma situação que torne impossível voltar atrás e na qual as próprias condições clamem: “hic Rhodus, hic salta!”
V.
As lutas contra a austeridade tendem a se entender como uma crítica à corrupção do Estado. Mas, na longa crise, o Estado de fato tem pouco espaço de manobra. Pode haver pouco que ele possa fazer além de implementar a austeridade, esteja ou não livre das amarras da corrupção. Os políticos que se aproveitam dessas ondas de agitação para assumir o cargo geralmente acabam implementando políticas notavelmente semelhantes às dos governos que substituíram.
VI.
As revoluções de nosso século se encontram imediatamente emaranhadas em uma teia de geopolítica. A Síria tornou-se o local de um conflito por procuração entre potências globais. O curso da revolução do Sudão foi sobredeterminado por outros conflitos mais regionais. Primeiro, a revolução terá de se espalhar rapidamente e encontrar sua escala adequada. Não existe revolução social em um único país. Em segundo lugar, uma onda revolucionária provavelmente terá de se espalhar e repercutir nas metrópoles capitalistas. Por enquanto, as lutas nesses locais são menos determinadas por manobras geopolíticas e podem ter a capacidade de destruir totalmente a arquitetura geopolítica.
VII.
Uma situação revolucionária começa no momento em que as forças armadas se recusam a disparar contra a multidão. As revoluções sociais dos séculos XIX e XX foram possíveis porque as forças armadas entraram em colapso, geralmente como resultado da perda de uma guerra interimperialista. No caos que se seguiu, parecia possível não apenas substituir o governo, mas destruir o Estado.
Por outro lado, as revoluções de nosso século ocorreram em países onde os militares funcionam como um Estado dual. No Egito, na Argélia e no Sudão, isso levou a uma continuidade essencial entre o regime que caiu e o que o substituiu. Em outros lugares, como na Síria, os militares se dividiram ao longo da revolução, dando início a um período de guerra civil.
VIII.
Um dos principais limites das lutas contemporâneas tem sido a incapacidade de superar as separações reinantes nas sociedades das quais elas emergem. O Sudão, um país predominantemente árabe muçulmano com grandes minorias étnicas africanas e religiosas, foi construído sobre uma base de separações raciais. Ele foi ainda mais dilacerado por décadas de guerras civis e limpeza étnica. As atrocidades em Darfur são apenas o exemplo mais infame.
Os manifestantes se orgulhavam de ter superado essas divisões no decorrer da revolta. As origens africanas do antigo Sudão foram um dos principais temas de palestras e discussões no acampamento de Cartum. Quando, no início, o regime tentou culpar os estudantes de Darfur pela agitação em Cartum, o movimento respondeu com a palavra de ordem: somos todos Darfuri. Ainda não está claro até que ponto essas divisões voltarão a surgir agora que a onda revolucionária está recuando.
IX.
Outras divisões, como as de classe e geração, ressurgiram de fato dentro do movimento. O Conselho Militar de Transição conseguiu explorar essas tensões para abrir brechas entre a revolução e seu apoio popular, entre o acampamento e as favelas ao redor, e entre o movimento nas ruas e as organizações que o representavam. Essas separações e repúdios prepararam o cenário para o massacre de Cartum.
X.
As revoltas geralmente passam por uma sequência de “marcadores rítmicos” que servem como pivôs ou pontos de virada que catalisam novas energias. A revolta do Sudão passou por pelo menos quatro: tumultos, não-violência em massa, ocupação do espaço público e uma greve geral. O ponto de ignição da revolta foi uma onda de tumultos espontâneos. Mas, para que ela se generalizasse, teve de assumir o caráter de não-violência em massa coordenada. A ocupação, as barricadas e sua defesa proporcionaram um contexto para a confraternização com os soldados, para a deserção deles e para a abertura de divisões dentro das forças armadas. A greve geral foi capaz de esclarecer até que ponto o movimento poderia mobilizar o apoio popular, mas não foi suficiente para paralisar o governo ou a economia.
XI.
As formações militantes forjadas em ondas anteriores de luta podem atuar como vetores de intensificação. As revoltas contra a austeridade surgiram e desapareceram no passado. Uma diferença importante em 2018 foi a presença de organizações que se formaram após a repressão de um movimento antiausteridade em 2013. Isso inclui os comitês de resistência baseados em bairros e a Associação Profissional do Sudão (SPA). Por serem capazes de fornecer alguma infraestrutura, coordenação e determinação, esses grupos puderam contribuir para o salto do tumulto para a insurreição.
XII.
Entretanto, essas formações também podem se tornar uma barreira que precisará ser superada. As organizações que passaram a representar a revolução estavam muito mais ansiosas para entrar em negociações com o governo do que muitas das que estavam nas ruas. O SPA, por exemplo, foi formado para fazer lobby por um aumento no salário mínimo, não para liderar uma revolução, para a qual eles se sentiram arrastados pelos jovens. Eles estavam ansiosos para voltar ao normal.
XIII.
A proeminência da SPA deixa claro o papel de liderança das classes médias profissionais na revolução. Sudaneses de quase todas as classes e grupos sociais participaram da revolução. Mas em sua vanguarda estavam os estudantes e os profissionais. Esses grupos foram motivados tanto por sua preocupação com as condições terríveis dos pobres quanto por suas próprias expectativas frustradas. Com as condições repressivas específicas, as classes médias profissionais foram mais capazes de se organizar, fornecer alguma coordenação para um movimento nacional e articular o que parecia ser um interesse geral. Paul Mason observa em algum lugar que a Revolução Francesa de 1789 “não foi produto de pessoas pobres, mas de advogados pobres”. A revolução, portanto, pode ter menos a ver com o aumento da pauperização e mais a ver com o aumento das expectativas que não podem ser atendidas pela situação atual.
XIV.
No entanto, o curso da revolta aponta para a possibilidade de surgimento de uma política proletária autônoma. Os tumultos que deram início à revolução começaram por causa do preço do pão. Os acampamentos eram habitados em grande parte pela população urbana pobre. Muitos deles tentaram ultrapassar os representantes do movimento que entraram em negociações. Em cada etapa da revolução, os proletários desempenharam um papel prático fundamental. Mas eles não conseguiram encontrar uma base para coordenar e articular suas próprias atividades de forma distinta. É possível, embora não seja certo, que surja um polo nitidamente proletário em futuros levantes que tenha confiança em sua própria iniciativa.
XV.
Deve-se lembrar que foi necessário um ciclo inteiro de tumultos, insurreições e revoluções – de 1830 a 1848 – para que o proletariado de Paris começasse a hastear a bandeira vermelha em suas barricadas. Foi somente em 1871 que a escolha foi claramente colocada entre uma república burguesa e uma comuna proletária. Os eventos de nosso jovem século podem ser acelerados, mas essas coisas levam tempo.
XVI.
Nos acampamentos em todo o país, mas especialmente em Cartum, temos um vislumbre dos contornos emergentes da comuna. Como disse um observador, esses acampamentos “inadvertidamente… constituem um desafio político e social fundamental para o Estado”. Ele explica melhor:
“A organização e as atividades do sit-in proporcionaram um modelo igualitário e democrático sobre o qual um modelo radicalmente diferente de governança e sociedade poderia ter sido construído. Assim, constituiu o alicerce da revolução social, mas poucos participantes o entenderam como tal, e a liderança da SPA e da FFC considerou as manifestações como meramente instrumentais.”
XVII.
Essa comuna parece não ter nada do formalismo democrático que deu às comunas e aos conselhos do movimento operário a qualidade de parlamentos operários adjuntos. Isso talvez nos permita distinguir a futura comuna destituinte das comunas constituintes do passado.
XVIII.
Os observadores frequentemente comentavam que o acampamento de Cartum tinha mais a sensação de um festival do que de uma manifestação política. Palcos para apresentações de música, teatro e poesia e tendas para arte estavam espalhados por todo o acampamento. Era um lugar para fazer experimentos sobre como viver. Isso assume um caráter particularmente urgente e subversivo em um país dominado por um regime islâmico. A observação da Internacional Situacionista sobre a Comuna de Paris poderia muito bem ter se aplicado a Cartum: “A Comuna foi o maior festival do século XIX. Subjacente aos eventos daquela primavera de 1871, pode-se ver o sentimento dos insurgentes de que se tornaram os mestres de sua própria história, não tanto no nível da política ‘governamental’, mas no nível de sua vida cotidiana”.
XIX.
Ninguém teve a coragem ou a previsão de reconhecer esse desenvolvimento pelo que ele era. Para C. L. R. James, o papel dos pró-revolucionários era registrar e refletir as inovações espontâneas que surgiam no decorrer da luta. Para ele, essa era a genialidade das Teses de Abril de Lênin, que reconhecia um salto adiante que a classe ainda não via em suas próprias ações e tirava as conclusões necessárias: todo poder aos sovietes.
XX.
O regime militar percebeu claramente a ameaça representada pelo acampamento, o que explica a intensidade com que foi reprimido. A comuna emergente é o principal inimigo do Estado. Onde quer que a comuna se reúna, haverá uma Tiananmen e, mais cedo ou mais tarde, os tanques aparecerão.
XXI.
Com o surgimento da comuna, suas tarefas imediatas são claras: expansão da área de autonomia, bloqueio da economia e defesa contra seus inimigos. A cada novo ataque da polícia, o movimento respondia expandindo o acampamento e barricando novas estradas e pontes. Essa estratégia se torna quase intuitiva quando existe um acampamento como esse.
XXII.
O surgimento da comuna levanta imediatamente o espectro da insurreição e, portanto, da guerra civil. A dinâmica básica é a seguinte: o surgimento de acampamentos como esse aponta para a possibilidade de uma revolução social. Isso é claramente reconhecido pelo Estado, que tenta reprimi-la. Em resposta, os acampamentos tentam intuitivamente se expandir. Isso levanta a questão da insurreição. A comuna deve suprimir o Estado para evitar ser suprimida por ele. Mas a insurreição sempre implica o risco de guerra civil.
XXIII.
Um, dois, muitos Sudões. A guerra social da qual a Revolução do Sudão foi um episódio ainda está sendo travada hoje. Provavelmente veremos novas tentativas de ultrapassar os limites da luta contemporânea. A cada novo experimento, poderemos ver emergir mais claramente os contornos da comuna e da autonomia proletária. Em algum momento, pode haver um avanço, em que a revolução política dê lugar à revolução social. Então, à medida que esse avanço repercute no exterior, poderemos ver a propagação de uma onda revolucionária.
Todo o poder para as comunas.
Instigante artigo sobre as lutas no Sudão. Nos falta uma contextualização da situação geral no Sudão e sobre as forças , inclusive externas ali presente.
LB já tocou mais e melhores blues…
pois justamente ontem o Russia Today publicou uma matéria que dá um bom panorama daquilo que Lucia Bruno, e muitos de nós, sente falta:
https://www.rt.com/africa/591328-sudans-transition-civilian-rule/
Para quem não saiba, RT, ou Russia Today, é um órgão subsidiado e directamente controlado pelo governo da Federação Russa.
O que ocorreu com essa comuna após a conflagração entre as Forças Armadas do Sudão e a Tropa Rápida de Apoio?
É deveras extraordinário que se discuta a possível continuação do processo revolucionário no Sudão, quando a grande questão consiste em saber quantos sudaneses ainda restarão vivos no final do ano.
The Economist de hoje, 29 de Agosto de 2024, publica um artigo intitulado Anarchy in Sudan has spawned the world’s worst famine in 40 years. Transcrevo-o aqui na versão inglesa original. Peço desculpa a quem não saiba inglês, mas não tenho agora tempo para o traduzir.
« IT IS OFFICIAL: for only the third time in the past 20 years, the UN has declared a full-blown famine. The declaration concerns a refugee camp called Zamzam, on the outskirts of the city of el-Fasher in Sudan. As long ago as April, Médecins Sans Frontières, a charity, estimated that every two hours a child in the camp was dying from starvation or disease—and since then the situation has got worse.
But it is not just Zamzam that is suffering a horrifying catastrophe. The camp has been singled out solely because it is one of the few places in war-torn Sudan about which the UN has reliable information. In fact, famine is consuming much of the country (see map). It is almost certain to be as bad as, or worse than, the one that afflicted Ethiopia in the 1980s. If much more help does not arrive very soon, it may prove the worst anywhere in the world since millions starved to death during China’s Great Leap Forward in the late 1950s and early 1960s.
In May the Clingendael Institute, a Dutch think-tank, released a report which estimated that hunger and related diseases would kill more than 2m people in Sudan by the end of the year. Timmo Gaasbeek, the report’s author, has since extended his projections to cover the next two years. In an “optimistic scenario”, in which fighting stops and this year’s harvest, expected in October, is slightly better than the last, he predicts around 6m “excess deaths” by 2027. In the (more likely) scenario in which fighting continues until early next year, more than 10m may perish. Although some experts have lower estimates, there is an emerging consensus that without decisive action Sudan faces mass starvation on a scale not seen in decades.
Rapid collapse
The cause of the famine is Sudan’s civil war, which began in April 2023, when the army and an auxiliary paramilitary, the Rapid Support Forces (RSF), fell out. The ensuing conflict has a strong claim to be the biggest and most destructive in the world today. Perhaps 150,000 people have been killed by the fighting itself. At least 245 towns or villages have been burnt. Much of Khartoum, the capital, has been flattened. More than 20% of the country’s pre-war population of roughly 50m have been forced to flee their homes. Some have taken refuge in neighbouring countries such as Egypt, but the vast majority of the displaced—nearly 8m—remain inside Sudan, many of them in camps like Zamzam. Médecins Sans Frontières estimates that 80% of health facilities in war-torn areas are so ravaged by bullets and bombs that they are no longer functional. “Our country is being destroyed by the hour,” says Burai Sidig Ali, the governor of the central bank, which itself has been pillaged and torched.
At first, fighting was largely confined to Khartoum and Darfur, a region the size of Spain where the RSF has resumed a campaign of ethnic cleansing against black African ethnic groups first initiated by Arab militias 20 years ago. But the conflict has evolved, in the words of Tom Perriello, America’s special envoy to Sudan, into “five or six different wars at the same time”.
Both sides encompass an increasingly complex constellation of armed factions. The regular Sudanese Armed Forces (SAF) have enlisted both Islamist militias and voluntary civilian defence units. Foreign mercenaries and Arab tribal militias work with the RSF, itself best understood as a sprawling network of business interests underwritten by plunder. Though it is the more decentralised of the two sides, neither has complete control over its forces. Both block aid and terrorise civilians.
Three times a refugee
One victim of the spiralling violence is Husna Abdul Qader, a mother of five who has been forced to relocate three times in 16 months. She fled Khartoum when the RSF and the army first came to blows, narrowly escaping a volley of bullets aimed at the bus driving her out of the city. Drone strikes in the eastern town of Gedaref, where she spent much of the past year, then pushed her south to Sennar, her family’s home state. Then, in early July, RSF fighters tore through her village on motorbikes, prompting Ms Abdul Qader to move again. She arrived two weeks later in Port Sudan on the Red Sea, carrying nothing but her slippers. All her other possessions had been either abandoned or stolen.
xpectations that the war would come to a quick conclusion, either on the battlefield or through negotiations, have been dashed. Other countries have become involved. Efforts to broker peace have failed. The army refused even to attend peace talks held this month in Switzerland.
In Darfur the RSF and its local allies have crushed the SAF, besieged towns and expelled non-Arabs. Their goal, says Yacob Mohammed, a traditional leader of the Masalit people, who were ethnically cleansed from the city of el-Geneina in Darfur last year, is “land, money and power”. The RSF hopes to wrest control of Sudan’s western frontier from Libya in the north-west to South Sudan in the south. Doing so would secure it critical supplies of arms, fuel and mercenaries from its allies and business partners in the wider Sahel region.
The only big city in Darfur still outside the RSF’s control is el-Fasher. But with the RSF dug in around the city and nearby camps, including Zamzam, hundreds of thousands of civilians are being slowly “strangulated”, says Nathaniel Raymond of Yale University. More than a million may have fled. Satellites reveal swelling cemeteries.
In Khartoum the battle lines have been relatively static for months. Despite some gains by the SAF earlier this year, most of the city centre remains under the RSF. The army’s leaders and remnants of the civil authorities have decamped to Port Sudan, where they have established a sort of government-in-exile. The generals insist the move is temporary. “We are not going to stop until we control the whole country,” says General Ibrahim Jaber, a member of the “sovereign council” that administers the areas the SAF controls. But the SAF has nonetheless begun renovating a British colonial mansion in Port Sudan to serve as the council’s headquarters.
Elsewhere the front lines are growing more fluid. In South Kordofan, on the border with South Sudan, the war is a three-way fight between the RSF, the SAF and a faction of the Sudan People’s Liberation Movement-North (SPLM-N), a local rebel group. In Blue Nile, near Ethiopia, a bit of the SPLM-N allied to the army is trying to beat back the RSF’s southward march from Sennar, a breadbasket state, most of which it overran in July. Some places in the south and west are under the control of neither the army nor the RSF.
Most alarming is the RSF’s south-eastward advance. Unpublished satellite imagery shows trucks in Sennar state dumping objects “the size of bodies” into the Nile, says Mr Raymond. More than 700,000 people have fled the region, including Ms Abdul Qader. Many, including her oldest son, have arrived in the eastern state of Gedaref, which is also home to tens of thousands of refugees from Ethiopia. Conditions in the makeshift camps they have built are “deplorable”, says Abdirahman Ali of CARE, another charity. Clean water and medical care are desperately scarce. The rainy season is helping to spread cholera and other diseases, which are especially dangerous to those weakened by hunger.
Military analysts think the RSF aims to fight its way to the Ethiopian border to open up a new supply line. It may then turn northwards, either to Port Sudan or to the SAF’s remaining toeholds in Sennar, White Nile and Gezira states. These are productive agricultural zones; the threat of more fighting in such places is one reason why Mr Gaasbeek thinks famine will blight an even greater area next year.
The ever-shifting battlefield is also impeding the flow of humanitarian aid. Eddie Rowes, the head in Sudan of the World Food Programme, a UN agency, says it delivered more than 200,000 tonnes of food between April 2023 and July 2024, far less than is needed. Some of the shortage is down to theft and damage by the RSF and other militias. But much blame lies also with the SAF, which is loth to allow food into areas, including most of Darfur, under the control of the RSF.
A single convoy of aid trucks can wait six weeks or more in Port Sudan to be cleared by the SAF for onward travel. Even then, almost all of it goes to SAF-controlled areas. Only a tiny fraction has reached Darfur. On August 15th the SAF agreed to allow aid agencies to resume shipments via a crucial border post controlled by the RSF between Chad and Darfur. That should help, but the army continues to drag its feet with the necessary paperwork. By spurning peace talks and impeding aid, the two sides are sentencing millions of Sudanese to death.»
É OFICIAL: pela terceira vez nos últimos 20 anos, a ONU declarou uma fome em grande escala. A declaração diz respeito a um campo de refugiados chamado Zamzam, nos arredores da cidade de El-Fasher, no Sudão. Já em abril, a organização Médicos Sem Fronteiras estimava que, a cada duas horas, uma criança no campo morria de fome ou doença — e desde então, a situação piorou.
Mas não é apenas Zamzam que está sofrendo uma catástrofe horrível. O campo foi destacado apenas porque é um dos poucos lugares no Sudão devastado pela guerra sobre os quais a ONU tem informações confiáveis. Na verdade, a fome está consumindo grande parte do país (veja o mapa). É quase certo que seja tão grave quanto, ou pior do que, a que atingiu a Etiópia na década de 1980. Se não chegar muito mais ajuda muito em breve, pode ser a pior fome em qualquer lugar do mundo desde que milhões morreram de fome durante o Grande Salto Adiante na China, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960.
Em maio, o Instituto Clingendael, um think tank holandês, divulgou um relatório que estimava que a fome e as doenças relacionadas matariam mais de 2 milhões de pessoas no Sudão até o final do ano. Timmo Gaasbeek, o autor do relatório, desde então estendeu suas projeções para cobrir os próximos dois anos. Em um “cenário otimista”, no qual a luta para e a colheita deste ano, prevista para outubro, é um pouco melhor do que a última, ele prevê cerca de 6 milhões de “mortes em excesso” até 2027. No cenário (mais provável) em que a luta continua até o início do próximo ano, mais de 10 milhões podem perecer. Embora alguns especialistas tenham estimativas mais baixas, há um consenso emergente de que, sem ação decisiva, o Sudão enfrenta uma fome em massa em uma escala não vista em décadas.
Colapso rápido
A causa da fome é a guerra civil no Sudão, que começou em abril de 2023, quando o exército e uma força paramilitar auxiliar, as Forças de Suporte Rápido (RSF), entraram em conflito. O conflito resultante tem uma forte alegação de ser o maior e mais destrutivo do mundo atualmente. Talvez 150.000 pessoas tenham sido mortas pela própria luta. Pelo menos 245 cidades ou vilarejos foram incendiados. Grande parte de Cartum, a capital, foi arrasada. Mais de 20% da população do país antes da guerra, de aproximadamente 50 milhões, foram forçados a fugir de suas casas. Alguns se refugiaram em países vizinhos, como o Egito, mas a grande maioria dos deslocados — quase 8 milhões — permanece no Sudão, muitos deles em campos como Zamzam. Médicos Sem Fronteiras estima que 80% das instalações de saúde em áreas devastadas pela guerra estão tão arruinadas por balas e bombas que não são mais funcionais. “Nosso país está sendo destruído a cada hora”, diz Burai Sidig Ali, o governador do banco central, que também foi saqueado e incendiado.
Inicialmente, os combates estavam confinados principalmente a Cartum e Darfur, uma região do tamanho da Espanha onde as RSF retomaram uma campanha de limpeza étnica contra grupos étnicos africanos negros, iniciada por milícias árabes há 20 anos. Mas o conflito evoluiu, nas palavras de Tom Perriello, enviado especial da América ao Sudão, para “cinco ou seis guerras diferentes ao mesmo tempo”.
Ambos os lados englobam uma constelação cada vez mais complexa de facções armadas. As Forças Armadas regulares do Sudão (SAF) alistaram tanto milícias islâmicas quanto unidades de defesa civil voluntárias. Mercenários estrangeiros e milícias tribais árabes trabalham com as RSF, que são melhor entendidas como uma vasta rede de interesses comerciais sustentada por saques. Embora seja o lado mais descentralizado dos dois, nenhum tem controle completo sobre suas forças. Ambos bloqueiam ajuda e aterrorizam civis.
Três vezes refugiada
Uma das vítimas da violência crescente é Husna Abdul Qader, mãe de cinco filhos que foi forçada a se realocar três vezes em 16 meses. Ela fugiu de Cartum quando as RSF e o exército começaram a se enfrentar, escapando por pouco de uma saraivada de balas disparadas contra o ônibus que a tirava da cidade. Ataques de drones na cidade oriental de Gedaref, onde ela passou grande parte do último ano, a empurraram para o sul, para Sennar, estado natal de sua família. Então, no início de julho, combatentes das RSF invadiram sua aldeia em motocicletas, levando a Sra. Abdul Qader a se mudar novamente. Ela chegou duas semanas depois em Porto Sudão, no Mar Vermelho, carregando apenas seus chinelos. Todos os seus outros pertences foram abandonados ou roubados.
As expectativas de que a guerra terminasse rapidamente, seja no campo de batalha ou através de negociações, foram frustradas. Outros países se envolveram. Esforços para mediar a paz falharam. O exército se recusou até mesmo a participar das negociações de paz realizadas este mês na Suíça.
Em Darfur, as RSF e seus aliados locais esmagaram as SAF, sitiaram cidades e expulsaram não-árabes. Seu objetivo, diz Yacob Mohammed, líder tradicional do povo Masalit, que foi alvo de limpeza étnica da cidade de El-Geneina em Darfur no ano passado, é “terra, dinheiro e poder”. As RSF esperam conquistar o controle da fronteira ocidental do Sudão, da Líbia no noroeste até o Sudão do Sul no sul. Fazer isso garantiria a elas suprimentos críticos de armas, combustível e mercenários de seus aliados e parceiros comerciais na região mais ampla do Sahel.
A única grande cidade em Darfur ainda fora do controle das RSF é El-Fasher. Mas com as RSF entrincheiradas ao redor da cidade e dos campos próximos, incluindo Zamzam, centenas de milhares de civis estão sendo lentamente “estrangulados”, diz Nathaniel Raymond, da Universidade de Yale. Mais de um milhão podem ter fugido. Satélites revelam cemitérios inchados.
Em Cartum, as linhas de batalha estão relativamente estáticas há meses. Apesar de alguns ganhos das SAF no início deste ano, a maior parte do centro da cidade continua sob controle das RSF. Os líderes do exército e os remanescentes das autoridades civis se mudaram para Porto Sudão, onde estabeleceram uma espécie de governo no exílio. Os generais insistem que a mudança é temporária. “Não vamos parar até controlarmos todo o país”, diz o general Ibrahim Jaber, membro do “conselho soberano” que administra as áreas controladas pelas SAF. Mas as SAF, no entanto, começaram a renovar uma mansão colonial britânica em Porto Sudão para servir como sede do conselho.
Em outros lugares, as linhas de frente estão se tornando mais fluidas. Em Kordofan do Sul, na fronteira com o Sudão do Sul, a guerra é uma luta tripla entre as RSF, as SAF e uma facção do Movimento de Libertação do Povo Sudanês-Norte (SPLM-N), um grupo rebelde local. No Nilo Azul, perto da Etiópia, uma parte do SPLM-N aliada ao exército está tentando conter a marcha das RSF para o sul, a partir de Sennar, um estado celeiro, a maior parte do qual foi invadido em julho. Alguns lugares no sul e oeste estão sob o controle nem do exército nem das RSF.
O mais alarmante é o avanço sudeste das RSF. Imagens de satélite não publicadas mostram caminhões no estado de Sennar despejando objetos “do tamanho de corpos” no Nilo, diz o Sr. Raymond. Mais de 700.000 pessoas fugiram da região, incluindo a Sra. Abdul Qader. Muitos, incluindo seu filho mais velho, chegaram ao estado oriental de Gedaref, que também abriga dezenas de milhares de refugiados da Etiópia. As condições nos campos improvisados que eles construíram são “deploráveis”, diz Abdirahman Ali, da CARE, outra organização de caridade. Água limpa e atendimento médico são desesperadamente escassos. A estação chuvosa está ajudando a espalhar cólera e outras doenças, que são especialmente perigosas para os enfraquecidos pela fome.
Analistas militares acham que as RSF pretendem lutar até a fronteira com a Etiópia para abrir uma nova linha de abastecimento. Elas podem então se voltar para o norte, seja para Porto Sudão ou para as últimas áreas controladas pelas SAF em Sennar, Nilo Branco e estados de Gezira. Estas são zonas agrícolas produtivas; a ameaça de mais combates em tais lugares é uma das razões pelas quais o Sr. Gaasbeek acha que a fome atingirá uma área ainda maior no próximo ano.
O campo de batalha em constante mudança também está impedindo o fluxo de ajuda humanitária. Eddie Rowes, chefe do Programa Mundial de Alimentos no Sudão, uma agência da ONU, diz que entregou mais de 200.000 toneladas de alimentos entre abril de 2023 e julho de 2024, muito menos do que o necessário. Parte da escassez se deve a roubos e danos causados pelas RSF e outras milícias. Mas grande parte da culpa também recai sobre as SAF, que relutam em permitir que alimentos cheguem a áreas sob controle das RSF, incluindo a maior parte de Darfur.
Um único comboio de caminhões de ajuda pode esperar seis semanas ou mais em Porto Sudão para ser liberado pelas SAF para seguir viagem. Mesmo assim, quase toda a ajuda vai para áreas controladas pelas SAF. Apenas uma fração mínima chegou a Darfur. Em 15 de agosto, as SAF concordaram em permitir que as agências de ajuda retomassem os envios através de um posto fronteiriço crucial controlado pelas RSF entre o Chade e Darfur. Isso deve ajudar, mas o exército continua a procrastinar com a papelada necessária. Ao rejeitar as negociações de paz e impedir a ajuda, os dois lados estão condenando milhões de sudaneses à morte.