Por Anônimo

Nota do Passa Palavra: enquanto vemos certa euforia com novos regimes surgidos da mais recente onda de golpes militares no Burkina Faso, no Gabão, no Chade, na Guiné, no Sudão e no Mali, em especial pelos muitos vídeos que circulam pela internet com a população depositando nos novos ditadores militares altas esperanças de que acabem com a “corrupção” e com o “colonialismo”, poucos se debruçam sobre estes fatos tentando dissipar a neblina da guerra em busca das contradições e conflitos internos que contribuem para formar estes regimes. Mais raros ainda são os que olham para os militares de forma crítica, como parte de uma sociedade local muito mais complexa que certos olhares paternalistas e certas fantasias edênicas de uma África “pura” permitem conceber. O texto a seguir, de autor anônimo e publicado em 2021 pelo coletivo Ill Will, mesmo com suas limitações, é uma tentativa de remar contra a maré e lançar sondas para auscultar o trabalho das correntes sociais sob a superfície. Esperamos que sirva de provocação a outros leitores mais atentos ao que se passa na África que se disponham a estender o debate.

As revoluções proletárias… zombam impiedosamente das hesitações, fraquezas e inadequações de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para vê-lo extrair novas forças da terra e erguer-se novamente de forma formidável diante delas, recuam repetidamente diante da imensidão de suas tarefas, até que finalmente é criada uma situação que torna impossível qualquer retorno, e as próprias condições gritam: “hic Rhodus, hic salta!”
— Marx

No final de 2018, o Sudão estava em meio a uma crise econômica. O governo começou a implementar medidas de austeridade. Isso incluiu o corte de subsídios para combustível e trigo. Em resposta, houve tumultos em Atbar, uma cidade no norte. Os protestos se espalharam rapidamente para meia dúzia de cidades e, depois, para quase todos os lugares. Logo os manifestantes estavam exigindo não apenas o fim da austeridade, mas a queda do regime.

Os protestos diminuíram e fluíram por meses até o início de abril, quando um acampamento em massa começou do lado de fora do quartel-general militar em Cartum. A ocupação rapidamente se tornou o local de confrontos com a polícia e, depois, entre diferentes facções das forças armadas. Os soldados começaram a desertar. Em uma semana, foi anunciado que o presidente al-Bashir havia sido preso e que um Conselho Militar de Transição (TMC) assumiria o poder para supervisionar a transição para a democracia.

A revolução no Egito, que começou em 2011, teve um fim abrupto quando os militares tomaram o poder em um golpe. Determinado a não seguir o mesmo caminho, o movimento no Sudão tinha como objetivo derrubar também esse novo regime militar. “Vitória ou Egito” tornou-se a nova palavra de ordem da revolução. Seguiram-se meses de greves, manifestações e bloqueios. O acampamento em Cartum se expandiu até chegar a quase um quilômetro de comprimento, com mais de cem mil pessoas à noite. Isso culminou em uma greve geral no final de maio.

Em 3 de junho, o regime militar massacrou os manifestantes ocupantes e incendiou o acampamento de Cartum até o chão. O movimento reagiu com outra onda de greves e protestos em massa coordenados. Porém, logo em seguida, com medo de que levar as coisas adiante significasse o risco de uma guerra civil, os representantes do movimento entraram em negociações com o regime. Isso resultou em um acordo de compartilhamento de poder no qual um governo provisório composto por representantes militares e civis administraria a transição.

A seguir, algumas reflexões sobre a revolta no Sudão e sua importância global.

I.
A revolução no Sudão nos dá o vislumbre mais claro da forma da revolução social que está por vir. Ela também apresenta o maior contraste entre os limites e os potenciais da luta contemporânea.

II.
A Primavera Árabe levantou a questão da revolução pela primeira vez em uma geração e abriu uma nova sequência global de lutas. Mas em quase todos os lugares essas revoluções terminaram em um golpe militar ou em uma guerra civil. Se as revoluções na Tunísia e no Egito inspiraram a sensação de que tudo era possível, a longa contrarrevolução que se seguiu indicou que qualquer tentativa de mudar a ordem das coisas levaria a uma catástrofe. Essa derrota lançou uma longa sombra sobre o mundo.

III.
As revoluções no Sudão e na Argélia foram os primeiros esforços conscientes para ir além dos impasses alcançados pelo Egito. Elas não conseguiram ultrapassar esses limites. Mas, em suas tentativas, mostraram que as tentativas revolucionárias não precisam inevitavelmente mergulhar a região no caos. Os historiadores que olham para trás provavelmente concluirão que isso foi necessário para que uma nova onda de lutas se abrisse da maneira que aconteceu em 2019.

IV.
As lutas mais intensas de nosso tempo chegam a um precipício e depois voltam atrás. Ir além significaria dar um salto para o desconhecido. Ninguém quer ser o primeiro a pular e ver se descobre novas terras ou se simplesmente cai em queda livre. Ainda não sabemos como será criada uma situação que torne impossível voltar atrás e na qual as próprias condições clamem: “hic Rhodus, hic salta!

V.
As lutas contra a austeridade tendem a se entender como uma crítica à corrupção do Estado. Mas, na longa crise, o Estado de fato tem pouco espaço de manobra. Pode haver pouco que ele possa fazer além de implementar a austeridade, esteja ou não livre das amarras da corrupção. Os políticos que se aproveitam dessas ondas de agitação para assumir o cargo geralmente acabam implementando políticas notavelmente semelhantes às dos governos que substituíram.

VI.
As revoluções de nosso século se encontram imediatamente emaranhadas em uma teia de geopolítica. A Síria tornou-se o local de um conflito por procuração entre potências globais. O curso da revolução do Sudão foi sobredeterminado por outros conflitos mais regionais. Primeiro, a revolução terá de se espalhar rapidamente e encontrar sua escala adequada. Não existe revolução social em um único país. Em segundo lugar, uma onda revolucionária provavelmente terá de se espalhar e repercutir nas metrópoles capitalistas. Por enquanto, as lutas nesses locais são menos determinadas por manobras geopolíticas e podem ter a capacidade de destruir totalmente a arquitetura geopolítica.

VII.
Uma situação revolucionária começa no momento em que as forças armadas se recusam a disparar contra a multidão. As revoluções sociais dos séculos XIX e XX foram possíveis porque as forças armadas entraram em colapso, geralmente como resultado da perda de uma guerra interimperialista. No caos que se seguiu, parecia possível não apenas substituir o governo, mas destruir o Estado.

Por outro lado, as revoluções de nosso século ocorreram em países onde os militares funcionam como um Estado dual. No Egito, na Argélia e no Sudão, isso levou a uma continuidade essencial entre o regime que caiu e o que o substituiu. Em outros lugares, como na Síria, os militares se dividiram ao longo da revolução, dando início a um período de guerra civil.

VIII.
Um dos principais limites das lutas contemporâneas tem sido a incapacidade de superar as separações reinantes nas sociedades das quais elas emergem. O Sudão, um país predominantemente árabe muçulmano com grandes minorias étnicas africanas e religiosas, foi construído sobre uma base de separações raciais. Ele foi ainda mais dilacerado por décadas de guerras civis e limpeza étnica. As atrocidades em Darfur são apenas o exemplo mais infame.

Os manifestantes se orgulhavam de ter superado essas divisões no decorrer da revolta. As origens africanas do antigo Sudão foram um dos principais temas de palestras e discussões no acampamento de Cartum. Quando, no início, o regime tentou culpar os estudantes de Darfur pela agitação em Cartum, o movimento respondeu com a palavra de ordem: somos todos Darfuri. Ainda não está claro até que ponto essas divisões voltarão a surgir agora que a onda revolucionária está recuando.

IX.
Outras divisões, como as de classe e geração, ressurgiram de fato dentro do movimento. O Conselho Militar de Transição conseguiu explorar essas tensões para abrir brechas entre a revolução e seu apoio popular, entre o acampamento e as favelas ao redor, e entre o movimento nas ruas e as organizações que o representavam. Essas separações e repúdios prepararam o cenário para o massacre de Cartum.

X.
As revoltas geralmente passam por uma sequência de “marcadores rítmicos” que servem como pivôs ou pontos de virada que catalisam novas energias. A revolta do Sudão passou por pelo menos quatro: tumultos, não-violência em massa, ocupação do espaço público e uma greve geral. O ponto de ignição da revolta foi uma onda de tumultos espontâneos. Mas, para que ela se generalizasse, teve de assumir o caráter de não-violência em massa coordenada. A ocupação, as barricadas e sua defesa proporcionaram um contexto para a confraternização com os soldados, para a deserção deles e para a abertura de divisões dentro das forças armadas. A greve geral foi capaz de esclarecer até que ponto o movimento poderia mobilizar o apoio popular, mas não foi suficiente para paralisar o governo ou a economia.

XI.
As formações militantes forjadas em ondas anteriores de luta podem atuar como vetores de intensificação. As revoltas contra a austeridade surgiram e desapareceram no passado. Uma diferença importante em 2018 foi a presença de organizações que se formaram após a repressão de um movimento antiausteridade em 2013. Isso inclui os comitês de resistência baseados em bairros e a Associação Profissional do Sudão (SPA). Por serem capazes de fornecer alguma infraestrutura, coordenação e determinação, esses grupos puderam contribuir para o salto do tumulto para a insurreição.

XII.
Entretanto, essas formações também podem se tornar uma barreira que precisará ser superada. As organizações que passaram a representar a revolução estavam muito mais ansiosas para entrar em negociações com o governo do que muitas das que estavam nas ruas. O SPA, por exemplo, foi formado para fazer lobby por um aumento no salário mínimo, não para liderar uma revolução, para a qual eles se sentiram arrastados pelos jovens. Eles estavam ansiosos para voltar ao normal.

XIII.
A proeminência da SPA deixa claro o papel de liderança das classes médias profissionais na revolução. Sudaneses de quase todas as classes e grupos sociais participaram da revolução. Mas em sua vanguarda estavam os estudantes e os profissionais. Esses grupos foram motivados tanto por sua preocupação com as condições terríveis dos pobres quanto por suas próprias expectativas frustradas. Com as condições repressivas específicas, as classes médias profissionais foram mais capazes de se organizar, fornecer alguma coordenação para um movimento nacional e articular o que parecia ser um interesse geral. Paul Mason observa em algum lugar que a Revolução Francesa de 1789 “não foi produto de pessoas pobres, mas de advogados pobres”. A revolução, portanto, pode ter menos a ver com o aumento da pauperização e mais a ver com o aumento das expectativas que não podem ser atendidas pela situação atual.

XIV.
No entanto, o curso da revolta aponta para a possibilidade de surgimento de uma política proletária autônoma. Os tumultos que deram início à revolução começaram por causa do preço do pão. Os acampamentos eram habitados em grande parte pela população urbana pobre. Muitos deles tentaram ultrapassar os representantes do movimento que entraram em negociações. Em cada etapa da revolução, os proletários desempenharam um papel prático fundamental. Mas eles não conseguiram encontrar uma base para coordenar e articular suas próprias atividades de forma distinta. É possível, embora não seja certo, que surja um polo nitidamente proletário em futuros levantes que tenha confiança em sua própria iniciativa.

XV.
Deve-se lembrar que foi necessário um ciclo inteiro de tumultos, insurreições e revoluções – de 1830 a 1848 – para que o proletariado de Paris começasse a hastear a bandeira vermelha em suas barricadas. Foi somente em 1871 que a escolha foi claramente colocada entre uma república burguesa e uma comuna proletária. Os eventos de nosso jovem século podem ser acelerados, mas essas coisas levam tempo.

XVI.
Nos acampamentos em todo o país, mas especialmente em Cartum, temos um vislumbre dos contornos emergentes da comuna. Como disse um observador, esses acampamentos “inadvertidamente… constituem um desafio político e social fundamental para o Estado”. Ele explica melhor:

“A organização e as atividades do sit-in proporcionaram um modelo igualitário e democrático sobre o qual um modelo radicalmente diferente de governança e sociedade poderia ter sido construído. Assim, constituiu o alicerce da revolução social, mas poucos participantes o entenderam como tal, e a liderança da SPA e da FFC considerou as manifestações como meramente instrumentais.”

XVII.
Essa comuna parece não ter nada do formalismo democrático que deu às comunas e aos conselhos do movimento operário a qualidade de parlamentos operários adjuntos. Isso talvez nos permita distinguir a futura comuna destituinte das comunas constituintes do passado.

XVIII.
Os observadores frequentemente comentavam que o acampamento de Cartum tinha mais a sensação de um festival do que de uma manifestação política. Palcos para apresentações de música, teatro e poesia e tendas para arte estavam espalhados por todo o acampamento. Era um lugar para fazer experimentos sobre como viver. Isso assume um caráter particularmente urgente e subversivo em um país dominado por um regime islâmico. A observação da Internacional Situacionista sobre a Comuna de Paris poderia muito bem ter se aplicado a Cartum: “A Comuna foi o maior festival do século XIX. Subjacente aos eventos daquela primavera de 1871, pode-se ver o sentimento dos insurgentes de que se tornaram os mestres de sua própria história, não tanto no nível da política ‘governamental’, mas no nível de sua vida cotidiana”.

XIX.
Ninguém teve a coragem ou a previsão de reconhecer esse desenvolvimento pelo que ele era. Para C. L. R. James, o papel dos pró-revolucionários era registrar e refletir as inovações espontâneas que surgiam no decorrer da luta. Para ele, essa era a genialidade das Teses de Abril de Lênin, que reconhecia um salto adiante que a classe ainda não via em suas próprias ações e tirava as conclusões necessárias: todo poder aos sovietes.

XX.
O regime militar percebeu claramente a ameaça representada pelo acampamento, o que explica a intensidade com que foi reprimido. A comuna emergente é o principal inimigo do Estado. Onde quer que a comuna se reúna, haverá uma Tiananmen e, mais cedo ou mais tarde, os tanques aparecerão.

XXI.
Com o surgimento da comuna, suas tarefas imediatas são claras: expansão da área de autonomia, bloqueio da economia e defesa contra seus inimigos. A cada novo ataque da polícia, o movimento respondia expandindo o acampamento e barricando novas estradas e pontes. Essa estratégia se torna quase intuitiva quando existe um acampamento como esse.

XXII.
O surgimento da comuna levanta imediatamente o espectro da insurreição e, portanto, da guerra civil. A dinâmica básica é a seguinte: o surgimento de acampamentos como esse aponta para a possibilidade de uma revolução social. Isso é claramente reconhecido pelo Estado, que tenta reprimi-la. Em resposta, os acampamentos tentam intuitivamente se expandir. Isso levanta a questão da insurreição. A comuna deve suprimir o Estado para evitar ser suprimida por ele. Mas a insurreição sempre implica o risco de guerra civil.

XXIII.
Um, dois, muitos Sudões. A guerra social da qual a Revolução do Sudão foi um episódio ainda está sendo travada hoje. Provavelmente veremos novas tentativas de ultrapassar os limites da luta contemporânea. A cada novo experimento, poderemos ver emergir mais claramente os contornos da comuna e da autonomia proletária. Em algum momento, pode haver um avanço, em que a revolução política dê lugar à revolução social. Então, à medida que esse avanço repercute no exterior, poderemos ver a propagação de uma onda revolucionária.

Todo o poder para as comunas.

5 COMENTÁRIOS

  1. Instigante artigo sobre as lutas no Sudão. Nos falta uma contextualização da situação geral no Sudão e sobre as forças , inclusive externas ali presente.

  2. Para quem não saiba, RT, ou Russia Today, é um órgão subsidiado e directamente controlado pelo governo da Federação Russa.

  3. O que ocorreu com essa comuna após a conflagração entre as Forças Armadas do Sudão e a Tropa Rápida de Apoio?

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