Por Luhuna Carvalho
Os Situacionistas uma vez reivindicaram ter tido um genitor amado, o Dadaísmo, e um rejeitado, o Surrealismo. Para muitos de nós, Toni Negri era ambos. Muito novos para tê-los testemunhado em primeira mão, os anos setenta italianos constituem um dos nossos últimos mitos reinantes. Quer saibamos disto ou não, a maior parte das nossas experiências de luta, desde as ocupações até às praças, desenrolou-se no âmbito dos seus vestígios e registos fragmentados, como a única coletividade real que conhecemos.
O Negri que adorávamos foi o Negri que relegou uma promissória e confortável carreira acadêmica para se tornar um agitador. Foi o Negri que nos ensinou como a ira, a raiva, o desespero, o ódio e a alienação que sentíamos era nada mais que um desejo febril por um mundo e uma vida diferentes, nada a não ser uma estranha e profunda paixão pelos nossos camaradas, nada além de uma exaustiva e obsessiva dedicação a abolir a tirania do Capital. Foi o Negri que disse que “começar de novo não significa voltar para trás” [1], transformando Poder Operário em Autonomia, estabelecendo um método de ruptura que celebrasse a recusa proletária à melancolia e memória institucional da esquerda. Foi o Negri que leu cada conceito da economia vulgar como uma categoria antagônica. O Negri que nos apresentou a dignidade, ardor, e a inerente alegria no ato de luta que está fora do alcance do cinismo da crítica. O Negri que tomou os dizeres de Marx que comunismo era “um movimento real de abolição” de um jeito literal, compreendendo como momentos de luta são também momentos de comunismo, portanto são também instantes de algo por vir.
O Negri que rejeitamos, com uma impaciência reservada apenas àqueles que se ama, foi o Negri da perseguição de Sísifo ao próximo sujeito coletivo, cada nova hipótese dissolvendo-se em fumo, uma após outra. Era o Negri que reivindicou que cada modismo social era uma nova expressão de “resistência”, sem nunca explicar realmente por que ou como. Foi o Negri que converteu o pós-operaísmo em uma sociologia branda. Foi o Negri da União Europeia, o Negri da renda básica universal, o Negri constituinte, o Negri democrático, o Negri aceleracionista, etc.
Não há, na realidade, qualquer oposição entre o Negri de balaclava e o Negri cidadão. Após a sua morte, temos de admitir, com toda a honestidade, que essa distinção foi uma invenção nossa. Negri era totalmente coerente. A continuidade do seu pensamento residia no modo como o seu otimismo beckettiano estava intrinsecamente tecido na sua obra filosófica e política.
Tudo começou com o lendário parágrafo vermelho de Classe operaia, a “virada copernicana” de Tronti, agora quase um salmo: “temos de inverter o problema, mudar o sinal, recomeçar do princípio, e o princípio é a luta de classes”. Foram as próprias lutas que obrigaram os capitalistas a criar o capitalismo e as suas expressões mais avançadas continuam a dirigir o desenvolvimento capitalista. A tradução inglesa da declaração seminal de Tronti, no entanto, sempre soou um pouco estranha. No original lê-se lotta di classe operaia (luta de classe operária), e não apenas lotta di classe (luta de classes). A primazia das lutas baseava-se no ser social específico representado pela classe operária industrial italiana do pós-guerra, e não no trabalho como um todo. O antagonismo espontâneo e criativo desta classe operária industrial provinha de uma conjunção singular entre inclusão econômica e exclusão política, que só se manifestava verdadeiramente no espaço fechado da fábrica. A ontologia política do operaismo baseava-se na diferença entre o operai e a classe trabalhadora enquanto tal.
A abordagem de Negri à teoria de Tronti sobre a primazia das lutas sobre o capital aboliu esta diferença, um gesto simultaneamente brilhante e maldito. A essência de tal antagonismo não era qualquer tipo de trabalho produtivo em si, mas antes as condições muito específicas de separação e alienação sofridas por esses operários. A extensão do comando capitalista sobre a reprodução social significava que essa separação e alienação podiam agora ser encontradas em todo o lado.
Ao observar a mudança através da qual o antagonismo de classe se espalhou da fábrica para a metrópole, Negri desenvolveu as ferramentas conceptuais para nomear, armar e organizar esse antagonismo difuso. Ao fazê-lo, desenvolveu uma teoria de um comunismo que era imediato e imanente às lutas em si mesmas. O comunismo não era o prêmio que aguardava o trabalho árduo e interminável através das fases aleatórias do materialismo dialético, estava já aqui, presente na inteligência violenta, radical e coletiva que se desenrola em mil atos de antagonismo, insurreição e comunização.
A primazia absoluta que Negri concedeu às lutas deu um conteúdo positivo à recusa do trabalho. Por detrás da sabotagem no chão de fábrica e da subversão metropolitana, havia uma forma proletária de trabalho que se esforçava por se materializar. Esta ideia constituiria a base da ontologia de Negri ao longo das décadas seguintes. “Auto-valorização” foi um dos seus primeiros nomes, “multidão” um dos últimos.
Este antagonismo operário generalizado a toda a esfera social foi evidente durante os anos setenta, mas quando o longo maio italiano chegou ao fim, essa primazia da luta parecia cada vez menos defensável. Como poderia o “conteúdo positivo” de Negri, implícito na recusa proletária do trabalho, exprimir-se quando essa recusa do trabalho já não era evidente? Se o método de Negri pretendia sustentar uma primazia social, não fabril, das lutas, então tinha de se tornar uma teoria de pleno direito da vida social contemporânea. O pós-operaísmo passou a ver cada pequena contração do corpo social como “auto-valorização” e como uma possibilidade de “resistência”, sem nunca desenvolver um critério exaustivo para avaliar tal pretensão. O resultado final foi que a “resistência” estava em todo o lado e em lado nenhum ao mesmo tempo.
Os críticos de Negri acusam-no recorrentemente de não ter sido suficientemente “dialético”. Seus defensores — além dele mesmo — concordariam de bom grado. Mas se ele pode ser acusado de algo, é talvez de ser dialético demais. Se Tronti foi, segundo suas próprias palavras, antes um político e só então um “pensador”, Negri foi — orgulhosamente — primeiro um militante e somente então um filósofo. Negri escreveu para o “movimento”, consciente de que abordar esse tema era, de certa forma, um método para o conceber. Não havia um ponto de vista da razão externo ao movimento subjetivo da classe trabalhadora, à afirmação do seu conteúdo positivo, e por isso a consistência do trabalho conceitual de Negri encontrou seu fundamento e confirmação precisamente nessas lutas. A “auto-valorização” e a “multidão” eram conceitos válidos precisamente na medida em que a ideia de Negri sobre o que constitui um movimento se reconhecia neles, e nos processos políticos neles pressupostos. Por outras palavras, a “multidão” só existia quando acreditava que existia. Pertence à natureza de tal movimento pressupor suas próprias condições materiais e históricas (Estado e Capital). O seu antagonismo triunfante só existia na medida em que partilhava o campo de disputa com a força adversária, mas isso significava que cada objetivo marcado significava uma aceitação das regras do jogo. Por isso Negri nunca foi um anarquista, nem jamais sugeriu ser, apesar de seus escritos terem sempre uma roupagem vagamente libertária. Para ele, conceitos e ideias somentem existem quando se tornam movimento, e movimento só existe quando articulado com realidades institucionais concretas de seu próprio período — Seja ele o Partido Comunista Italiano ou a União Europeia, seja a Fiat Mirafiori ou o empreendedorismo neo-liberal.
De qualquer maneira, como insurreições vieram e se foram, a coerência interna de cada instância do “movimento” pareceu se dissipar ainda mais. O negrismo funcionou como suposição de que o núcleo dinâmico da política contemporânea reside na oscilação entre formas constituintes e constituídas. Mas o poder de hoje se afirma entre sua capacidade de destruir, desmantelar e aniquilar seu próprio corpo social através da austeridade, ostracismo, ou a guerra total. A integridade de qualquer substância revolucionária positiva só poderia manter-se enquanto essa dialética constitucional também se mantivesse, mesmo que o “poder constituinte” permanente de Negri pretendesse pará-la no seu caminho. O otimismo inabalável de Negri começou lentamente a ter um sabor cada vez mais amargo, como se a única estratégia que restasse fosse repetir ferozmente “estamos a ganhar” perante a derrota óbvia. A autonomia, para Negri, existia como forma de libertar o PCI da sua ortodoxia e complacência, não como forma de o destruir. Mas a UE não é o PCI, e bitcoin não é Mirafiori.
Negri estava correto de um jeito que poucos outros alguma vez foram, nomeadamente em sua insistência de que o comunismo está sempre prontamente presente. Sua vida consistiu, em suas próprias palavras, em uma “vida comunista”. Alegar que a vida é comunista não significa afirmar que o comunismo se realizou na integridade ética das ações e dos afetos de cada um, nem acreditar que uma história pessoal única possa representar o significado do comunismo. Significa em vez disso que este escolheu viver pela questão comunista, com seus singulares e coletivos prazeres e tentativas. A morte de Negri, junto da de Tronti e outros, põe a questão da continuidade, especialmente àqueles que, de uma forma ou outra, foram formados em tradições militantes devidas a estas figuras imponentes. Em um mundo que permite pouca esperança, sua lendária tenacidade é inspiradora e onerosa. Talvez a única maneira honesta de permanecer fiel a isso é, em nossos termos, uma vez mais assumir a inerente ruptura em seus pensamentos. É precisamente porque podemos prezar pelo otimismo de Negri que podemos sugerir que, agora mesmo, começar de novo pode ter passado a significar voltar atrás — voltar atrás à questão: o que é uma vida comunista?
Notas
[1] Ricominciare da capo non significa andare indietro.
Originalmente publicado em inglês em Dezembro de 2023 pelo blog ILL WILL, este artigo foi traduzido por Alan Fernandes.
“(…) o Negri da União Europeia”, escreveu Luhuna Carvalho. Fujo um pouco do assunto central do texto e reconheço ainda que não sei nada dos pensamentos de Carvalho e ILL WILL sobre a UE. No entanto é cada vez mais fácil encontrar militantes e organizações que se dizem de esquerda implicando com a UE, ao mesmo tempo que ignoram completamente o direito de livre circulação para passeio, trabalho e residência que é garantido também aos trabalhadores dos 27 Estados membros, incluindo os territórios ultramarinos – pelo menos no caso francês tenho certeza que sim. Ora, nesse sentido a situação já foi melhor, já que até 2020 o Reino Unido também fazia parte da UE. Recordo que no Brasil da década de 1990, velhos comunistas diziam a mim e aos meus camaradas que tal direito de livre circulação era uma grande vantagem para a classe trabalhadora e para os militantes comunistas.
Hoje em dia aqui na França, mas também já ouvi isso na Holanda, seja dentro de um prédio em construção, ou mesmo dentro de qualquer empresa, é muito comum você ouvir os trabalhadores oriundos de Portugal, Espanha, Itália, por exemplo, reconhecendo a importância do direito de livre circulação. Como é também comum a gente ouvir dos trabalhadores com origem em países que hoje em dia estão em negociação para entrar na UE que torcem por uma entrada o mais rápido possível, e que a mesma é o caminho certo para a regularização da situação na França, parando de usar documentos falsos, talvez conseguir melhor emprego, e poder trazer seus familiares para cá com mais tranquilidade e segurança.
Tem uma certa esquerda que a cada dia que passa dialoga mais e melhor com a direita identitária, ambas defendendo as mesmas merdas. O resultado disso a gente já sabe.
Fernando, acho que a UE é algo mais (mas muito, muito mais) que a “livre circulação”. Pode perguntar aos gregos, que sabem algo sobre o assunto. Infelizmente, a UE foi uma estrategia muito bem sucedida de:
– afastamento dos processos decisionais da(s) cidadania(s): o Parlamento UE tem um papel praticamente apenas ornamental, o governo UE não é votado pelo povo nem diretamente (presidencialismo), nem através do parlamento (parlamentarismo), e é completamente separado de sua política econômica (BCE)
– polarização da riqueza ao interior da própria Europa: a moeda única impede de se fazer políticas econômicas autônomas em base ao tecido produtivo e a orientação importadora-exportadora dos países, tendendo a favorecer alguns países do norte com maior orientação industrial avançada (Alemanha) ou financeira (Paises Baixos ecc) em detrimento de outros. Por outro lado, a completa falta de uma política fiscal homogênea impede qualquer possibilidade de redistribuição da riqueza dentro das fronteiras europeias.
20-25 anos atrás, quem dizia esse tipo de coisas eram os movimentos anti-globalização, 10-15 anos atrás eram as acampadas espanholas e o movimento de Praça Syntagma na Grécia, hoje tudo isso soa de extrema direita.
Dito isso, é obvio que uma posição anti-capitalista não pode opor ao liberalismo monetarista da UE um nacionalismo nativista, ou seja a bandeira “Não UE” como tal nunca foi (nem mesmo 15-20 anos atrás) uma bandeira da esquerda anticapitalista.
Não me parece de jeito nenhum que o autor do artigo esteja implicando com a UE desde esse ponto de vista nacionalista-nativista. Ele está simplesmente criticando a forma do Negri ter sido capturado por esse debate sem sentido UE-antiUE, uma falsa polarização que de jeito nenhum opõe o movimento anticapitalista de um lado ou de outro. O Negri, de fato, sempre teve uma posição respeitável (em principio) mas ingenua senão até mesmo absurda (na prática) sobre a questão da unidade europeia: uma posição de antinacionalismo abstrato, e que, coerente com a sua hipótese tardia do “império” e da “multidão”, apostava pela “aceleração” das tendências da governance capitalista global para mais facilmente lhe opor uma multidão igualmente global. Como disse um texto muito bonito de homenagem ao Negri (e que espero que possa ser logo publicado pelo PassaPalavra), “ele era alheio a qualquer nostalgia, uma paixão triste pela qual sentia uma natural repulsa, mesmo à custa de flertar com o progresso capitalista.” Ele tão flertou com o progresso capitalista que até fez campanha com liberais e socialistas franceses pela aprovação da Constituição Europeia dos anos ’00, mesmo que aquela constituição representava um retrocesso em relação a muitos direitos sociais concretos garantidos pelas constituições nacionais antifascistas do pós-guerra (os cidadãos franceses entenderam isso muito bem, e votaram não, por isso desde então a constituição não foi submetida a nenhum outro processo referendário).
Compartilho totalmente o ódio sincero e visceral de Negri contra todo Estado-nação (algo que ele sempre lembrava: o trágico e infame erro dos socialistas europeus quando ao votar os créditos de guerra em 1914 se dividiram por linhas nacionais e não de classe) porém é o Negri “mau” aquele que, não aceitando que nessa falsa disputa (UE-nãoUE) os militantes anticapitalista simplesmente não tem lugar (ou tem um lugar que não se limita a um sim ou um não), quis forçar a barra (como sempre) para tomar uma posição simples, uma posição bem ruim mesmo.
PS: Mesmo falando de “livre circulação”, os movimentos de migrantes africanos ou do Oriente Médio bem sabem como para eles (cujos países jamais entrarão na UE) as fronteiras existem, e são muito muito rígidas: tem todo um conjunto de dispositivos de patrulhamento, impressões digitais, campos de concentração, e até mesmo decidida decisão de sacrificar esses indivíduos às mortes mais atrozes, que é operado desde o nível europeu pelos vários Shengen, Dublin III, Frontex etc.
Alessandro, hoje em dia eu sei bem o que é viver, trabalhar, usar documentos falsos e ser preso aqui sendo um sem-papel. Conheço na pele boa parte dessas limitações impostas pela UE e o Estado francês. Ainda que não fosse isso, continuaria a defender a livre circulação de todas as pessoas – todas! – por todos os cantos do mundo, como sempre defendi. Ela, no caso da UE, mesmo que limitada na atualidade, já é algo infinitamente melhor do que circulação nenhuma. Mas talvez as nossas cabeças estejam presas a universos muito distintos. Conforme o que eu disse antes, estou tão somente olhando para essa vantagem que os próprios trabalhadores reconhecem e a aproveitam atualmente, ou estão na torcida para que possam aproveitar disso em breve, estou falando do básico, do mínino, afinal, é um direito que mais está sendo usado para trabalhar do que qualquer outra coisa. Veja só você a que ponto chegamos: é para trabalhar, é para sobreviver, é para buscar uma vida melhor para si e para os seus.
Fernando,
Apesar das cartilhas políticas pré-fabricadas, provenientes sobretudo de quem nada conhece do assunto, vou dizer-lhe a opinião de quem viveu sob o fascismo e lutou activamente contra ele, experimentando na prática os inconvenientes que essa luta implicava. O processo revolucionário de 1974 e 1975 mudou Portugal politicamente, mas a herança do salazarismo continuou no que dizia respeito aos comportamentos e à vida social. Foi a entrada na União Europeia que mudou completamente os comportamentos dos portugueses e a sociedade portuguesa.
FRACASSANDO PIOR
de recuo em recuo
seja noético &/ pragmático
a revolução termina por lhes sair
pela culatra
haja
pois
oráculo & corifeu modernizante-conservador
foi assim com Castoriadis, Foucault etc.
e pelo visto
continua sendo
Fernando,
Concordo com você sobre esse aspecto específico da União Europeia e sobre a importância da livre circulação. Não questiono minimamente que isso é preferível ao fechar as fronteiras nacionais, embora ressalto que isso tem muitos limites e não defina, por si só, a incidência da União Europeia em relação a situação anterior a sua existência. Estou simplesmente argumentando em relação ao seu questionamento ao autor do artigo em crítica a Negri, e ao fato que não acho que essa posição seja próxima àquela da direita identitária. Não necessariamente, digamos.
Pobre Negri.
Igual o barango PT.
O PT é cafona e brega.
Neri é outro kitsch.
Se é Hirsch, prefiro Sonia.