Por Valéria Pinheiro
Tenho acompanhado a relação entre facções e milícias e a produção do espaço construído formal e informal. A pesquisadora Valéria tem sido a ponte em Fortaleza, e a convidei para fazer um relato da sua pesquisa. Ela mostra o grau de violência ao qual moradores de conjuntos do MCMV estão sendo submetidos na cidade por conta da disputa entre facções paulistas, cariocas e locais pelo domínio de uma cidade chave na logística do tráfico de drogas internacional. (Isadora Guerreiro)
Este processo de pesquisa surge de dois grandes temas que se atravessam. Primeiro partindo de levantamentos de dados, cruzamento de informações e produção de sínteses e incidência sobre despejos na cidade, nos deparamos, enquanto Laboratório de Estudos da Habitação (LEHAB-UFC) com o crescimento de um terceiro agente promotor de remoções, além do Estado e da iniciativa privada: as facções criminosas, a partir de 2017. Segundo, consideramos também os anos de acompanhamento pelo LEHAB de grandes projetos urbanos em Fortaleza, processos de favelização e monitoramento da (falta de) política habitacional, e levantamento de informações de pesquisas anteriores sobre conjuntos de interesse social produzidos pelo MCMV. Desta junção de experiências fizemos a escolha pela observância da intersecção destes dois grandes e complexos temas: o domínio das facções nos territórios populares e a existência cotidiana em grandes conjuntos do Minha Casa Minha Vida (MCMV) em Fortaleza, com o apoio do Laboratório de Estudos da Violência (LEV-UFC).
O MCMV em Fortaleza
O Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) em Fortaleza fez uma escolha prioritária pela construção de grandes conjuntos habitacionais em áreas que a lei do Plano Diretor indica justamente que se haja ocupação restrita ou requalificação urbana, principalmente pela falta de infraestrutura, equipamentos e serviços. Lembremos que as diretrizes do programa indicam a necessidade destes elementos, mas a sua ausência, surpreendentemente, não implicou em dificuldades de aprovação dos projetos.
Em Fortaleza, importa ressaltar que mesmo que os dados oficiais apontem a existência de alguma infraestrutura e serviços urbanos públicos no entorno dos conjuntos, o acesso a estes muitas vezes se inviabiliza pelas fronteiras invisíveis estabelecidas pelos grupos criminais nos territórios.
Lembremos que esta decisão locacional dos empreendimentos é também “justificada” pela mudança na fase 2 do programa que passou a aceitar empreendimentos monofuncionais de mais de 5 mil unidades por contrato, a despeito de estudos acadêmicos, bem como dos posicionamentos de entidades do campo do direito à cidade, de que o limite de 500 UHs era importante para assegurar acesso à terra urbana de qualidade. Ao priorizar escala na produção, sabe-se que apenas terrenos bem periféricos proporcionam espaço para tantas unidades – inclusive porque também foi recorrente a construção de condomínios vizinhos uns aos outros, mesmo que de contratos diferentes. Isso ocasionou enorme margem de lucro a construtores e incorporadores e ônus a ser pago principalmente pelos moradores na redução de sua qualidade de vida.
Por exemplo, há irregularidade no abastecimento de água, apontada como um dos principais problemas pelos moradores – juntamente com a falta de segurança e esgotamento sanitário. Isso tem relação com a localização, mais do que com problemas construtivos, pois, pela distância dos empreendimentos, a viabilidade do atendimento pelas concessionárias é considerada economicamente negativa. Localizar-se distante dos grandes centros também significa pouca oferta de transporte público – inclusive alguns conjuntos não são servidos de nenhuma linha de ônibus próxima, demandando mais tempo de deslocamento casa-trabalho e outras necessidades de circulação.
A chegada de grandes conjuntos nas periferias mais distantes reedita a produção habitacional do período militar, quando o Banco Nacional de Habitação (BNH) instalou empreendimentos em territórios dispersos da cidade, existentes até hoje, mantidas suas precariedades e inacessibilidades. Alguns residenciais do MCMV, inclusive, são construídos ao lado de antigos do BNH, agravando a densidade destes setores e reforçando a segregação dos mais pobres. Importa ressaltar que o MCMV funciona também como viabilizador de remoções por conta de grandes projetos urbanos de interesse do capital imobiliário, cujas comunidades atingidas são realocadas de áreas valorizadas ou em valorização para os novos conjuntos do programa.
Direcionando o olhar agora para a escala dos empreendimentos, ressaltamos a princípio a forma condomínio, nunca vivenciada pela maioria dos seus ocupantes. O trabalho social previsto no programa não acontece de forma satisfatória e as famílias são colocadas lá sem preparo para as responsabilidades compartilhadas advindas desse formato. O uso e conservação dos espaços comuns, as taxas, a gestão de conflitos entre vizinhos, manutenção de funcionários, pagamento de água e luz, dentre outras decisões que precisam passar por todos e todas são inviabilizadas, inclusive pelo atravessamento das dinâmicas violentas cotidianas.
Nesse sentido, a permanência das famílias nos conjuntos do MCMV tem sido dificultada por inúmeros fatores. Já nas entrevistas realizadas pelo LEHAB em 2013 e 2014 se apontava a existência de apartamentos trocados, alugados, vendidos ou simplesmente vazios/abandonados. Os síndicos, à época, destacavam casos de repasses de unidades a familiares e desistências de imóveis decorrentes da localização e quebra dos vínculos sociais existentes nos seus locais originários (PEQUENO E ROSA, 2015).
Ao mesmo tempo, sinalizava-se o interesse de compradores por conta dos muros e cercas elétricas de alguns condomínios que transpareciam locais mais protegidos que seu entorno. O que, no entendimento de quem já vivia neles, não se confirmava. Frente aos casos de violência associados ao tráfico de drogas presentes em muitos bairros periféricos, os empreendimentos do PMCMV em um primeiro momento estariam imunes considerando seus muros. Entretanto, esta foi uma queixa recorrente dos moradores indicando que mesmo com portaria, cercas elétricas e altos muros, os condomínios mostram se vulneráveis como qualquer outro assentamento periférico. Síndicos ameaçados, imóveis entregues devido a dívida com o tráfico, abandono de imóveis e mesmo homicídios foram relatados nas entrevistas. (PEQUENO E ROSA, 2015, P. 13).
Em tempo: não é permitida a comercialização de imóveis do MCMV, mas casos de venda e aluguel ocorrem frequentemente desde os primeiros conjuntos entregues. Dado este gancho, gostaríamos então de adentrar no principal aspecto proposto nessa pesquisa, que atravessa significativamente o cenário descrito acima: a presença das facções nos conjuntos habitacionais e suas formas de controle.
Facções em Fortaleza
Nos anos 90 o cotidiano criminal em Fortaleza foi marcado por coletivos de jovens que constituíam as gangues (Paiva, 2019). Decorridos alguns anos, algumas de suas lideranças se tornam traficantes e se acirram os conflitos com clara demarcação territorial. Em 2016 se evidencia a existência das facções no Estado, no total de quatro: Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Família do Norte (FDN) e uma nascida aqui, chamada Guardiões do Estado (GDE).
Neste mesmo ano, ocorreu um suposto acordo de paz entre os grupos criminais, que implicou em proibição de assaltos nas periferias e interrupção do ciclo de vinganças entre eles, o que gerou uma sensação de segurança nos territórios anteriormente conflagrados, uma certa ideia de que as facções protegiam as comunidades. Esse breve período também implicou numa maior liberdade de circulação na cidade. Mas sabe-se que esta suposta paz foi à custa de muitos episódios de justiçamento a quem desobedecia aos comandos. Neste período, o Governo do Estado aproveitou para vincular a melhora nos índices de violência à sua atuação, ignorando o acordo e reorganização dos coletivos que disputavam mercados ilegais em Fortaleza (BARROS et al, 2018, p.118).
Ainda em 2016, movimentações nos presídios locais e entre os grupos em escala nacional, somado a mudanças na condução da política de segurança pública no Estado, mais quebras de acordo entre as facções, externaram o fim da “pacificação”. Seguiu-se então um período bastante gravoso no Ceará que se estende até os dias atuais.
Destacamos nesta síntese apenas algumas mudanças relevantes entre os coletivos que fazem o crime na cidade, como um escalonamento na cooptação de adolescentes e jovens, no envolvimento de mulheres, e nas estratégias de controle territorial.
Facções e o domínio territorial
A disputa territorial passou a ir além de buscar e eliminar – matando ou expulsando-os diretamente envolvidos. Observamos que o território passa a funcionar também para o coletivo como uma espécie de ativo financeiro e/ou de reserva de mercado.
Em termos estritamente econômicos, para ser um ativo, a facção precisaria ter a propriedade formalizada da terra e que a comercializasse com lucro. Parece então mais adequado avaliar os territórios populares como reserva de mercado, pois os grupos faccionados passam a extrair mais renda naquela delimitação geográfica por ter o poderio da força e assim conseguem controlar as fontes de consumo de bens ou serviços pelos moradores do local.
Como temos dialogado na rede de pesquisa, em Fortaleza temos também os agentes faccionados agindo como agentes de mercado e os territórios populares se consolidando como fronteiras de expansão do mercado. E qual seria a funcionalidade ou as possibilidades de maior ganho? Agir junto ao mercado imobiliário informal? Faz sentido alguma incidência dos mesmos junto ao poder público? Por mais descabida que pareça essa pergunta, nos deparamos em Fortaleza com pessoas que guardam, digamos, alguma proximidade com esses grupos, atuando junto a órgãos de governo, presentes em conselhos de políticas públicas, interessados no debate de revisão do plano diretor, monitorando ações de assessorias populares.
Ouvimos inclusive que “do jeito que eles estão, um dia vão tomar a prefeitura” (morador).
As remoções de moradores são um relevante aspecto nos processos de mercantilização, exploração e controle dos territórios populares por grupos detentores do monopólio da violência local, como apontado no início deste texto. Pelo apreendido por diversos estudos, o poder público sempre subdimensionou este fenômeno dos deslocados pelas facções – bem como o poderio das facções como um todo (PAIVA e PIRES, 2023) – e não agiu no princípio para cessar essa estratégia.
Em pesquisa anterior realizada pelo LEHAB entrevistamos 18 entidades/instituições governamentais e da sociedade civil que estavam de alguma maneira recebendo demandas e denúncias ou tendo algum contato com deslocados urbanos o que nos permitiu ter uma melhor noção da dimensão deste problema em Fortaleza. Inclusive nos deparamos com a criação de programas específicos de proteção para este público, a chegada do comitê internacional da Cruz Vermelha (CICV) com experiência em refugiados urbanos atuando nisso na cidade, repercussões na imprensa de casos de ruas inteiras removidas… e um Estado considerando como casos isolados e sob controle. Numa das entrevistas, por exemplo, com técnicas de um Programa de Proteção, ouvimos que tinha sido contratada uma equipe com uma meta de atender 80 pessoas/famílias removidas em um ano, e no momento da nossa conversa, com apenas 3 meses de funcionamento do projeto, já havia atendido 86 casos.
“Nos conjuntos é pior, não sei porque”
Essa afirmação, ouvida em uma das entrevistas e reiterada em outros momentos, com outros interlocutores acabou tornando-se o mote para nossa investigação. Nos questionamos se o programa Minha Casa Minha Vida, pensado e executado como descrito anteriormente, pode funcionar para dar mais efetividade aos controles dos grupos faccionados nos territórios.
Sabemos que há um ciclo de vulnerabilidades imputado historicamente aos moradores de periferias. Os estudos demonstram que a mudança pros conjuntos o aprofunda. Informações dadas por moradores e assessorias dão conta da ausência do trabalho social prévio e na chegada dos beneficiários. Um dos entrevistados relata que no conjunto onde mora apenas agora está tendo algum trabalho social, por uma empresa terceirizada, sete anos após a entrega das casas.
Para além dos fatores implicados na segregação socioterritorial descritos no início do texto, caracterizada pela falta de infraestrutura urbana, serviços, equipamentos comunitários, empregos, cultura, lazer etc, tivemos a inserção de pessoas de territórios diversos de maneira abrupta em um mesmo conjunto habitacional. Falamos de dezenas de milhares de pessoas que foram levadas por sorteio ou por se encontrarem em comunidades alvo de grandes projetos urbanos, ou áreas de risco realocadas e ao chegar na tão esperada unidade habitacional, se deparando com a proibição de permanecerem no conjunto dominado por facção diferente do seu lugar de origem. A junção de famílias que vem de territórios dominados por facções diferentes tensiona ou até inviabiliza a permanência delas desde sua chegada. Dezenas de casos como esses são retratados na imprensa.
A informação de qual grupo comandará aquele residencial é inclusive prévia à entrega do mesmo. Há famílias que nem se dão ao trabalho de se mudar, porque sabem que não conseguirão ficar. Ouvimos de outras que “nem conseguimos descarregar o caminhão da mudança”.
A quem consegue chegar e ficar, a ameaça de remoção é constante. Ela pode ocorrer por diversos motivos, inclusive não declarados. Mas pelo que já pudemos apreender, há casos de famílias expulsas porque um dos membros desobedeceu algum comando ou desagradou alguém do grupo; porque o apartamento tem uma localização estratégica para vigilância do conjunto; porque precisam do imóvel para armazenar drogas, armas ou produtos de crimes; porque querem usar o espaço para reuniões e outras atividades da organização; para alocar famílias protegidas ou indicadas que não foram beneficiárias do programa, tendo estas que pagar aluguel à facção; ou até casos em que um bloco inteiro de apartamentos foi desalojado e virou uma facção de roupas, gerenciada pelo tráfico.
Geralmente o anúncio da necessidade de saída da família é feito de maneira direta e sem apelação, tendo casos em que às famílias não é permitido retirar seus pertences de casa, ou que não conseguem mais retornar ao território nem para pegar o documento de transferência da escola dos filhos.
Para além da ocupação dos apartamentos, os conjuntos do MCMV também têm tido seus espaços de lazer (salões de festa) e lixeiras transformados em espaços comerciais, também sob controle dos grupos.
E o que acontece com quem sai? Mesmo com quase 8 anos de registros de ocorrências destes casos, ainda não há, por parte do poder público estadual nem municipal, um protocolo de acolhimento, proteção e resolução do problema habitacional dessas famílias. Nem citamos aqui os outros problemas de ordem psicológica, jurídica, perda de acesso às escolas, creches e outros serviços públicos do território, perda de empregos, de documentos, de móveis, de relações, que ocorrem com essas famílias. Nesse campo, algumas entidades da sociedade civil, e do sistema de justiça tem dado algum suporte, mas bastante longe de atender a todos os deslocados urbanos. São famílias e mais famílias que se veem sem teto do dia para noite.
“Os deslocados urbanos estão entulhando as ruas” (gestora estadual). Uma interlocutora do Ministério Público, em uma reunião, ao comentar sobre as expulsões dos MCMV, disse que essas pessoas hoje estão sendo contabilizadas como moradores de rua, que a população de rua de Fortaleza tem aumentado consideravelmente por conta desses “refugiados urbanos”.
Cabe ressaltar que inclusive na população em situação de rua os controles incidem. Pesquisas (CAVALCANTE, 2019) e conversas informais dão conta de que até quem chega em alguma praça para se abrigar, é identificado pelo seu local de origem e proibido de permanecer ali, caso seja proveniente de território do inimigo.
No caso de beneficiários do MCMV, inclusive, havia o agravante de continuarem devendo as parcelas, até que se conseguiu o reconhecimento deste problema por parte das entidades financiadoras e a criação de saídas administrativas/jurídicas para que se realize o distrato das famílias devedoras e que estas possam voltar pra enorme fila do cadastro único.
Algumas ações de iniciativa do governo do estado e/ou do Ministério Público tem gerado operações nos conjuntos habitacionais. Sobre elas, muitas críticas advindas dos movimentos sociais presentes nesses territórios quanto à truculência e a ineficácia dessas operações, como diz parte de uma nota de repúdio lançada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) à operação nos conjuntos Maria Tomásia, Luiz Gonzaga e José Euclides:
A operação representa o completo oposto da agenda proposta pelo governador Elmano de Freitas (PT), que ganhou as eleições para governador propondo uma agenda de garantia de direitos sociais e respeito aos trabalhadores. (MTST, 2023)
“A polícia tá sempre presente. Não é falta de polícia.”
Nas entrevistas há registros de medo pela presença da polícia nos conjuntos e de falta de efetividade das operações. “A polícia nos dá uma sensação de insegurança tão grande.” (Moradora). Por mais que a polícia consiga entrar nas unidades e retomar os imóveis, as famílias beneficiárias originais não querem e não podem retornar, por óbvio. Inclusive alguns entrevistados relataram que a própria polícia orienta que não voltem para as casas, por não poderem garantir sua segurança. Ouvimos então, por mais de um interlocutor, que temos alguns “blocos fantasmas”, esvaziados, nos conjuntos habitacionais, mesmo diante do alto déficit existente na cidade.
A remoção é apenas uma das formas de manifestação da presença do crime no cotidiano das comunidades. O sentimento de medo e insegurança fazem parte do cotidiano e condicionam muitas ações que deveriam ser corriqueiras, ou frutos de escolhas pessoais, para que não gere uma “decretação” da pessoa ou da família inteira.
Paiva (2022) afirma que as facções tem características de uma comunidade política e moral e isto é relevante para o desenvolvimento da nossa investigação sobre o poderio coercitivo das mesmas no cotidiano das comunidades.
“É como se a formação do coletivo tivesse criado outras disposições e um sistema de dominação mais elaborado, com ambições mais amplas para o controle social da vida de pessoas não integradas à facção em função de sua decisão individual” (PAIVA, 2022, p. 104)
São diversas as formas de controle que incidem sobre as famílias que passam a ocupar os imóveis e são permanentemente vigiadas. Vamos citar aqui algumas das “regras”, expressas ou não, que tivemos conhecimento: não podem receber visitas – nem familiares – de territórios considerados inimigos; músicas que fazem menção ou que são provenientes até de comunidades cariocas mas dominadas pelo grupo opositor não podem ser veiculadas nas casas; uma moradora precisou pedir autorização para cortar uma árvore que ela mesma tinha plantado; decisão sobre o tipo de portão que pode colocar no apartamento; determinados cortes de cabelo ou de sobrancelha são mal vistos; toque de recolher é recorrente e isso inviabiliza a permanência nas escolas ou empregos mais distantes, pois o ônibus demora a chegar – para não arriscar serem mortos por voltarem depois do horário determinado, abandonam escolas e trabalhos; dentre outros aspectos regulados diuturnamente. Até conflitos de vizinhos, sobre som alto, viram questão de vida ou morte.
Redes de proteção
“Queria agradecer da gente poder falar. Porque somos silenciados, a gente se sente incapaz.” (Moradora)
Por fim, gostaríamos de comentar sobre um dos eixos da pesquisa que são as redes de proteção. Como já foi dito, pessoas envolvidas em atividades criminosas nos territórios populares sempre existiram. Por décadas e décadas coexistiram com organizações comunitárias e lideranças políticas locais, sem ingerências nem de uma parte nem de outra. Mas o estabelecimento das facções impactou de maneira determinante também nisso. Em meados dos anos de 2000, as gangues e os traficantes locais exerciam pouca influência na vida comunitária, exigindo apenas a não interferência nos seus negócios.
Hoje há uma ingerência quase completa também nesta dimensão, chegando a haver indicação de lideranças por parte dos coletivos criminais em alguns espaços de representação.
“Eu não conheço mais a minha comunidade como eu conhecia antes. A facção tirou as nossas rodas de conversa, a vivência comunitária” (moradora). A violência chegou perto das organizações, impedindo atividades, constrangendo lideranças, ocasionando inclusive morte de referências comunitárias, a partir de 2017. E mudando o papel de quem hoje faz a mediação de conflitos nos territórios populares, operando numa lógica extra legal.
Nos conjuntos habitacionais do MCMV a atuação política é mais difícil ainda, talvez por serem mais recentes e constituídos já na conjuntura de poderio das facções. O que escutamos é que os conjuntos não tem lideranças expressivas, apesar de em vários deles morarem membros de movimentos populares. Estes continuam envolvidos em lutas várias, mas para fora do território, em sua maioria.
Notamos uma certa mobilização por parte do MTST, demandando por infraestrutura nos conjuntos e denunciando as operações policiais ocorridas, inclusive com características de perseguição a militantes.
Tanto nossos interlocutores da defensoria pública como do Ministério público afirmam que conjuntos do MCMV que tem membros de movimentos sociais entre os beneficiários tem menos casos de remoção. Ao mesmo tempo, a leitura dos relatórios da polícia sobre as operações e a situação dos conjuntos sinalizam uma visão negativa por parte dos agentes de segurança sobre a presença de militantes nos residenciais.
A organização popular que se insurge neste cenário, com redes de solidariedade e sociabilidade constituídas historicamente é reconfigurada nos tempos atuais. Sem presença cotidiana do Estado que não seja através da violência policial, e a insuficiência dos circuitos de proteção social as pessoas desenvolvem estratégias de convívio com estes controles e de gestão das diversas precariedades. Pensamos inclusive que esta deve ser uma agenda de pesquisa bastante relevante daqui para frente.