Por Salvador Schavelzon [*]
A tentativa de golpe do General Juan José Zúñiga revive o debate sobre a instabilidade e fragilidade institucional sul-americana, a partir de uma crise política na Bolívia que avança enquanto se aproximam as eleições presidenciais de agosto de 2025. A partir desses acontecimentos nos perguntamos e buscamos responder aqui quais forças prevalecem hoje no capitalismo da região.
Uma tentativa de golpe que morreu na praia e foi controlada rapidamente pelo governo de Luis Arce Catacora, sem forças militares acudindo ao chamado de um general, permitem ver exposta como uma radiografia a situação política que vive o país. Para além de reconhecer a força do argumento mais fácil que explica os atos como uma aventura individual de um militar que fez um golpe porque seria demitido, e que descarta assim outras explicações, como a teoria do autogolpe do Arce e a da tentativa de intervenção norte-americana na busca do lítio do país, o episódio quixotesco permite ver:
1) Um contexto político: o governo progressista debilitado.
Após quase 20 anos no governo e 30 da sua fundação, o MAS [Movimiento al Socialismo] apresenta uma crise relacionada com a gestão do poder, a falta de projeto e a distância com os movimentos sociais e lutas que lhe deram origem. Com a crise da sucessão de fundo, o governo aparece sem respostas frente a uma crise econômica, com a escassez de dólares e de combustíveis interrompendo a estabilidade anterior e abrindo o caminho para o aprofundamento do discurso do cansaço com o sistema político. A situação tem dado espaço a discursos populistas de direita crescentes no país, na região e no mundo. Essa crise derivou na explicação que o Zúñiga deu quando percebia que seu movimento não terminaria bem: seria um pedido do presidente para melhorar a imagem.
2) Sucessão indefinida dentro do MAS.
Vemos o conflito candente em torno da possível nova candidatura para 2025 de Evo Morales. Além da oposição de parte dos cidadãos a uma nova reeleição, rejeitada no referendo de 2016 e que levou ao levante de 2019, a candidatura enfrenta hoje a oposição do presidente atual, seu sucessor e ex-ministro da fazenda por vários anos. Luis Arce foi indicado para o cargo pelo próprio Morales contradizendo a decisão das bases do MAS, que votaram a favor do atual vice-presidente, David Choquehuanca, também ex-ministro de Evo Morales e possível candidato. A disputa por cargos e a centralização do poder não permitem a renovação e vitalidade de um partido que nasceu como partido-movimento e que hoje se encontra em guerra entre as duas facções: evistas e arcistas.
As candidaturas do Evo, como foram as do Lula, Maduro e Cristina Kirchner tem se tornado uma plataforma para o crescimento e organização das forças de oposição. O progressismo se encontra preso na disjuntiva entre o respeito e lealdade ao líder e a dificuldade de lidar com formas personalistas de poder que empobrecem processos e afastam o poder das bases sociais. Ao mesmo tempo, a volatilidade política se impõe quando nem as enquetes, nem a experiência de 2019 transformam Evo em candidato natural imprescindível para manter o poder com o progressismo, como se acreditava antes de 2016. Ao mesmo tempo, o MAS ainda é a principal força política e recuperou apoio popular durante o governo de Jeanine Áñez. Se não fosse pela disputa de facções, poderia permanecer no governo. Tragicamente para o MAS, no entanto, a briga se encontra num ponto de não retorno. Tanto Arce quanto Morales vão lutar até o fim para que o outro não seja candidato, e um terceiro não alinhado, por enquanto, não aparece como possibilidade.
3) Forças armadas descontentes e buscando participar nas decisões.
Influenciadas pelos discursos anti-sistema da direita populista, os militares se encontram hoje ganhando espaço na política, tanto nos discursos de “intervenção militar”, quanto vestidos de democratas e opinadores nas redes sociais. Fortalece esse posicionamento a tendência na população a seguir discursos de mão dura na linha de Bukele, assim como da crítica da “casta política” ao modo de Milei, Vox, Trump e outras direitas. Isso se encontra com o contexto boliviano onde os aquartelamentos e tensões entre poder político, militares e policiais tem ocorrido com alguma frequência. Houve confrontos entre militares e policiais em fevereiro de 2003 por questões gremiais e salariais; militares e policiais interferiram como grupo de pressão na redação da nova constituição em 2007; se recusaram a agir contra a mobilização autonomista da Meia Lua em 2008; e desobedeceram o governo do Morales em 2019, na recusa da repressão dos mobilizados.
Apesar das tentativas de modificar as forças armadas nos primeiros governos do MAS, que inclusive começaram a gritar as palavras do Che Guevara “Pátria ou Morte, Venceremos”, as mesmas sempre conservam uma tendência a se posicionar de forma antidemocrática. Na América Latina se colocam como grupo de poder que obtém benefícios orçamentários e influência na gestão pública, com inserção em lugares de mando político, com o caso exemplar dos 10 mil militares no anterior governo do Brasil. A vice-presidenta de Milei foi escolhida por sua proximidade com o setor militar mais reacionário, negacionista do terrorismo do Estado da mesma forma que Jair Bolsonaro.
4) A explicação geopolítica.
A tentativa de golpe retorna à discussão dos interesses internacionais pelos recursos naturais e o lítio, presente no imaginário da esquerda e do nacionalismo. Nas interpretações da esquerda, é preciso esclarecer qual tem sido a política do MAS em relação a esse tema e também dos Estados Unidos e outras potências, que parecem longe de buscar uma solução com uma ação improvisada e desajeitada como foi a do Zúñiga no dia 24 de junho, por mais antipatia que possam ter com o MAS, que no passado já expulsou embaixadores, a DEA e a agência de cooperação e desenvolvimento norteamericana USAID.
Como no Equador, que nos últimos anos passou de cenários de mobilização social indígena e urbana, com protagonismo da confederação de nacionalidades indígenas para uma agenda de segurança pública e respostas à direita, a Bolívia hoje parece estar longe da época em que o questionamento da ordem vinha da força da comunidade andina e dos movimentos sociais. Nem a força sindical de trabalhadores do campo ou das minas, nem as comunidades indígenas que deram lugar à plurinacionalidade aparecem hoje com força após um ciclo político de quase 20 anos que se iniciou com movimentos nas ruas mas se constituiu como projeto de Estado com discurso orientado à classe média urbana, assumindo o contexto neoliberal, as rendas estatais para os mais pobres como programa eleitoral e o foco no estímulo ao consumo.
Mas se o progressismo do MAS está em crise e dividido, também é verdade que nem a Meia Lua nem a direita tradicional ou republicana tem respostas para a crise e também não tem um bom candidato para se opor ao MAS. A extrema direita, racista, religiosa e violenta, apareceu na Bolívia com dez anos de antecedência em relação a países como Brasil e Argentina, e também não está controlando a situação política. Grupos políticos representados por nomes como Tuto Quiroga, ex vice-presidente do ditador Hugo Banzer – eleito na democracia – e Fernando Camacho, governador de Santa Cruz preso pelos acontecimentos de 2019, representante da linha dura da Meia Lua, fracassaram no governo da Jeanine Áñez. Ninguém aposta muito nas candidaturas da direita liberal republicana, como Carlos Mesa e Doria Medina, atores políticos desprestigiados e associados à “la casta” tanto quanto o MAS pelas novas direitas. O empresário e pastor evangélico de origem sul coreana, Chi Hyun Chung, que ficou em terceiro em 2019 e foi chamado de Bolsonaro da Bolívia, também não tem tido presença nem capacidade de sedução eleitoral.
Modalidades novas e velhas de golpe na América do Sul
A esquerda latino-americana discutiu até o cansaço sobre golpes de Estado e avanço da direita nos últimos anos na região, após os casos do Paraguai com Fernando Lugo, em 2012, e Manuel Zelaya em Honduras, em 2009. Ao mesmo tempo, a democracia prevalece em toda a região. Inclusive a tentativa de evitar demissão do Zúñiga foi feita com vociferação em defesa da democracia, embora isso seja feito com tanques na frente do Palácio de governo.
A ideia de golpe foi o enquadramento que o PT deu para o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, mesmo que o governo Temer não tenha sido, nos fatos, considerado ou tratado pelo partido como uma ditadura. Se trataria de um golpe porque as pedaladas fiscais não configurariam um crime de responsabilidade. Mas Dilma foi destituída por não contar com votos para impedi-lo no Congresso Nacional, frente ao avanço eleitoral das forças opositoras. Da mesma forma, Pedro Castillo viria a ser destituído, no Peru, quando fez um discurso para fechar o congresso e convocar uma Assembleia Constituinte, que derivou na sua detenção, acusado de tentar realizar um autogolpe.
Dina Boluarte, a vice-presidenta que sucedeu Castillo em dezembro de 2022, não chamou eleições como deveria ter feito e se entrincheirou no poder, com apoio conservador do parlamento que quis se manter – corporativamente – com mandato e das forças armadas. Seu governo é sim considerado ditatorial pela oposição, mas como em outros casos, infelizmente não houve um governo de reformas importantes que pudessem explicar a queda do Castillo como contrarrevolução, ou resistência a reformas progressistas favoráveis a um povo mobilizado ou com demandas atendidas.
A resposta do Chávez ao golpe de 2002, que voltou ao poder depois de um golpe com apoio dos Estados Unidos consumado, graças a uma mobilização popular e militares leais que o reconduziram ao poder, não foi possível nem para o PT em 2016, nem para o MAS em 2019. Em junho de 2024 não teve um golpe consumado nem foi preciso mobilização que tanto Evo Morales como a Central Operária e as juntas vecinais tinham rapidamente convocado e não foi necessária porque Luis Arce se manteve firme no poder. Mas é importante entender politicamente a fragilidade que levou às queda da Dilma em 2016 e Evo em 2019.
A discussão continua até hoje ao redor da queda do Evo Morales na Bolívia em novembro de 2019, volta agora com o levantamento de Zúñiga. Houve dúvidas sobre a aplicabilidade do conceito de “golpe”, porque Evo Morales e Álvaro Garcia Linera deixavam o poder superados pelas manifestações de rua de espectro amplo contrárias à reeleição e não apenas associadas à direita conservadora. Em vários sentidos, a movimentação de Zúñiga teve mais forma de golpe de estado tradicional do que as recomendações do Kaliman para que Evo Morales renuncie. Houve desde a cúpula do MAS um chamado ao abandono dos cargos e mandatos parlamentares, não atendido, mas que deixou o país sem governo, talvez esperando uma forte mobilização que não se realizou.
A favor da tese do golpe se mencionava justamente o fato de que os militares recomendaram a renúncia e houve retirada de colaboração das forças armadas, que se negavam a continuar reprimindo sem garantias de que não seriam responsabilizados legalmente, como foram em 2003. Houve, porém, forças sociais relevantes como a Central Operária Boliviana que também apoiavam a demissão ou realização de novas eleições. Podemos falar em golpe, também, se atendemos à formação de um governo ilegítimo que não chamou a eleições imediatamente. Os detalhes são importantes para evitar explicações incompletas que aparecem na distância e enxergam equivocadamente em Evo ou Dilma uma situação como a do Salvador Allende ou, inversamente, definem a Evo como ditador.
É importante entender as diferenças essenciais de situações que derrubam, ou não, um governo, assim como o sentido político atual da disputa entre setores que buscam o controle do Estado. Qual é o projeto e objetivo de quem busca governar? São golpes que disputam apenas o poder entre grupos políticos? Ou, como décadas atrás, existe uma disputa geopolítica e local entre projetos alternativos de sociedade?
Em outubro de 2019 Evo Morales caiu após uma eleição polêmica que desafiava o referendum de 2016 – onde venceu o voto da população contrário à reforma da constituição para dar lugar à reeleição indefinida – e também a apuração dos votos ao vivo na TV foi interrompida, quando o MAS não conseguia a maioria necessária de dez pontos para impedir um segundo turno com Carlos Mesa. Essa interrupção não foi totalmente explicada, de modo que as suspeitas de fraude deram lugar a jornadas de mobilizações que, após vários dias de repressão nas ruas, mostraram fragilidade no controle dos poderes estabelecidos do Estado e a situação que fugiu do controle político do MAS.
A queda do Evo Morales acontece após esta autoridade deixar publicamente em mãos da OEA uma auditoria das eleições, e o órgão interamericano determinar que as mesmas deveriam ser realizadas novamente. A demissão autodeterminada da linha sucessória em mãos do MAS, deu lugar a uma posse ilegítima da segunda vice-presidente do senado. Jeanine Áñez e outros líderes seriam julgados e presos quando o MAS voltou à presidência com Luis Arce, em 2022.
A diferença com a confusa tentativa de golpe ou sublevação do Zúñiga é dada pela presença de uma forte mobilização cidadã nas ruas, em 2019, que não houve no 24 de junho. Zúñiga era um militar associado ao governo e assíduo dos movimentos sociais, que esteve longe de poder convocar uma sublevação popular. Entre 2019 e 2024 a diferença está entre militares que vão com tanques a ocupar a sede de governo e militares que decidem não usar as armas, se solidarizando com a população contra o governo. O debate latinoamericano tem se voltado a explicações formalistas sobre caracterização de um golpe quando o que importa para além das modalidades é a força política de um lado e de outro, o apoio de um governo ou de um motim ou rebelião golpista.
Não é algo que possa surpreender que os militares não sejam simpáticos aos governos progressistas com origem de esquerda ou de movimentos sociais. Muito dinheiro em bônus foi pago aos militares nos primeiros governos de Evo para comprar disciplina e obediência. Por isso a falta de colaboração após semanas de mobilizações não pode ser apontado como fator decisivo com o qual um governo do MAS não estivesse preparado para lidar. A recomendação de renúncia foi apenas um elemento a mais na definição da queda de um governo que tinha perdido a força política real que o permitisse controlar, como em outros momentos, a situação de desestabilização. Nesse sentido os dois processos de 2019 e 2024 se encontram: as forças armadas se atribuindo o direito de intervir politicamente nas decisões do país.
Para o governo do MAS, longamente atacado desde a chegada ao Palácio, o que sempre foi determinante para controlar a situação foi a força do voto. É o que sustentou a Evo Morales em 2008 quando obteve 67,4% de aprovação num referendo revogatório e o que sustenta a Arce hoje, mas derrubaram o governo em 2019.
As particularidades dessas conjunturas de governos destituídos na região levaram à esquerda latinoamericana a falar em “nova modalidade de golpe”. A situação política interna, as condições internacionais e também a dinâmica dos acontecimentos eram bem diferentes das situações guardadas na memória política da história latinoamericana recente, com golpes militares apoiados pela CIA, seguidos de prisões políticas, censura, exílio, morte de militantes contrários ao regime, e que hoje os adolescentes estudam na escola, apesar da oposição que hoje encontramos sobre isso de setores de extrema direita como a vice-presidente do Milei, representante de vozes negacionistas do terrorismo de Estado que também compõem o atual cenário político da região.
Seguindo o roteiro da tomada do capitólio por parte dos seguidores do Trump, quando este perdeu as eleições, os seguidores do Bolsonaro deram um passo a mais em relação aos golpes políticos, brandos ou “de novo tipo”, com elementos das antigas modalidades de golpe. Movimentos por fora da institucionalidade aparecem como possibilidade hoje no repertório político tático da direita, mas continuam não sendo central nem necessário em termos de poder geopolítico de direitas que conseguem se impor pelo voto e também impor seus interesses com governos de qualquer signo político. O movimento que não reconhecia a vitória do Lula no 8 de janeiro de 2023 ocupou de fato edifícios sedes dos três poderes do Estado em Brasília, com imagens associadas à ideia tradicional de um golpe, mas sem poder avançar sobre o poder real derivado das eleições de 2022.
A tentativa de golpe ou levante de Zúñiga, no dia 26 de junho em La Paz, deve ser entendido no mesmo sentido. A tentativa ficou isolada e sem apoio. À diferença das outras situações, dessa vez houve sim tanques militares cercando o poder político e um chefe do exército ameaçando tomar a Casa Grande do Povo. Como no Brasil, no entanto, o poder político ficou resguardado. A crítica dos Estados Unidos, ou governos de direita da região foi tímida, mas isso não significa que seja essa a tática utilizada para garantir contratos para empresas estrangeiras ou recuperar o poder para governos afins. Se fosse assim, Nicolás Maduro não seria ainda presidente da Venezuela.
À margem da psicologia e do desespero de Zúñiga, podemos dizer que direita mobilizada por redes sociais, militares que se aproximam do poder político e discursos populistas de direita que desautorizam as instituições no contexto de uma crise política real, fazem parte de um fenômeno político identificável na região latinoamericana em geral. A direita da Meia Lua, Milei ou Bolsonaro não é uma direita republicana nem legalista. Apesar de se declarar democrática, tem objetivos políticos que usam as instituições de forma instrumental e conjuntural, como podia ser a esquerda em alguns momentos da história.
Podemos falar em crise da república, e de direitas revoltadas em rede social buscando caminhos para irromper contra a ordem hoje representada pelo progressismo. O MAS, como força política que se constituiu em dominante, já mobilizou elementos anti republicanos presentes na política boliviana, por exemplo na criação do Estado Plurinacional na constituição que declara no preâmbulo superar a forma república e nos primeiros anos dos governos do Evo Morales representava um voto pela mudança e contra a ordem.
O governo de Luis Arce não tem a força da irrupção do MAS em 2005, e cultivou sempre a imagem do técnico responsável, trabalhador bancário que manteve a economia em ordem. Isso bastou para manter o poder, mesmo que questionado internamente por Evo Morales e com descontentamento da população em geral. Temos, ao final, vinte anos de construção de poder institucional que pesam mais do que uma corrente de opinião defendida por tanques por parte de um general desconhecido para as maiorias. Fica a dúvida se em 2025, o MAS será com Arce o voto da defesa da democracia e a ordem, um voto anti sistema e de mudança que ainda irá para Evo Morales, ou se uma direita com o discurso ensaiado por Zúñiga poderá emergir e ganhar espaço político hoje inexistente.
Zúñiga, no final, não representava nenhuma força para além dele, apesar do discurso “anti-evista” e o alto cargo que podia ainda tentar ostentar. Houve, como sempre, muitos telefonemas e se fala até de um plano de inteligência militar de intervenção, como também houve no Brasil em janeiro de 2023. Mas Zúñiga agiu sem estratégia e coordenação, fora de tempo, apressado pela iminente destituição, individualmente com algumas centenas de soldados que o obedeciam diretamente mas não atiraram nem avançaram de fato contra o governo do Arce.
O desespero do Zúñiga
Setores favoráveis a Luis Arce, destacavam que ele enfrentou a tentativa de golpe do general Zúñiga cara a cara no meio da sublevação, enquanto Evo Morales e García Linera em 2019 deixaram o país. A comparação é injusta, porque não havia em 2024 um povo mobilizado nas ruas. Não havia uma ameaça contra a vida do Arce, até porque politicamente não é nele que o MAS e o governo se apoiam. Como Alberto Fernández em relação a Cristina Kirchner, é essa fragilidade que alimenta também a disputa interna que busca restituir o Evo na presidência. O que vem à tona é a rivalidade entre o presidente e o líder histórico do partido que está por trás da crise. Foram declarações do Zúñiga na televisão no dia 24 de junho ameaçando de intervenção militar caso Morales fosse eleito, que levaram ao pedido de renúncia do comandante por parte do Luis Arce, provocando a tentativa de rebelião.
Meses atrás, Evo Morales tinha denunciado operações de inteligência relacionadas com o grupo Pachajcho, organizado desde o comando do exército por Zúñiga. Morales advertia que poderiam aparecer provas contra ele e que podia ser eliminado fisicamente. Num contexto de guerra fria com Arce, as declarações responsabilizavam indiretamente o atual presidente, que considerava Zúñiga um militar leal, e o tinha mantido no cargo na última renovação do comando das forças armadas. As declarações de Zúñiga na TV contra Evo tinham efetivamente derivado na decisão de destituição por parte de Arce, que claramente não tinha interesse em escalar o conflito com Morales dessa forma, preferindo buscar inabilitar Evo Morales pela via dos congressos partidários, justiça eleitoral ou outra via política, fortalecido pela ideia de que pontua melhor que o líder histórico nas pesquisas.
A iminente destituição que o governo planejava, pode ser lida como vitória de Evo Morales e também sinal de civilidade não fratricida por parte do Arce. Talvez de fato as operações contra Morales no Chapare avançavam por um caminho que o governo do MAS não aprovaria e não autorizava internamente, nem via beneficiá-los. Isso leva a pensar o desfecho e reação de Zúñiga, ligada à especulações sobre o papel das operações de inteligência utilizadas na política. Nesse lugar deve ser lida a reação final de impotência, com movimentos que não ficam claros se eram contra a possível candidatura de Evo Morales, ainda não confirmada, ou se se dirigia também contra Arce, esperando um apoio da população e de setores militares que não chegaram.
No dia 26, na plaza Murillo, Zúñiga fez um discurso contra a classe política pedindo a liberação dos “presos políticos” de 2019, com menção aos militares que se encontram presos, à Jeanine Áñez e à Fernando Camacho. No meio da sublevação, disse, em um momento, que buscava apenas a substituição de alguns ministros, aparentemente buscando poupar o Arce que, de fato, não parecia ser o alvo da operação toda. Disse para a imprensa no local, no entanto, que entraria e ocuparia o Palácio. Com a tentativa de golpe fracassada, acusou o próprio Arce de planejar um autogolpe, ideia reproduzida depois pelos setores evistas e também por vozes da extrema direita latinoamericana, adepta como é sabido a versões conspiratórias.
Se a força do governo Arce aparece no desfecho de uma tentativa incompleta de golpe, é também a vigência de Evo Morales que aparece por trás dos acontecimentos. Se o plano do Zúñiga se mostra preocupantemente possível na América Latina de hoje, tranquiliza a falta de reações favoráveis. Até Jeanine Áñez e Fernando Camacho criticaram o movimento do Zúñiga desde a prisão. A força do MAS, para além de Arce e Evo Morales, aparece ainda controlando uma situação de caos institucional e descontentamento que permitiu o ex abrupto de Zúñiga. E podemos dizer que depois desse episódio e da presidência de Jeanine Áñez, será preciso outro tipo de abordagem para superar a força do MAS, ainda tido como principal força política do país de forma mais contundente que os partidos que sustentam os governos progressistas do Chile, Brasil e também que o kirchnerismo.
O golpe pelo lítio boliviano
A versão de que estavam vindo pelo lítio da Bolívia não demorou em aparecer para uma imaginação política da esquerda latinoamericana que ouviu nos grupos de Whatsapp a general Laura Richardson, chefe do comando sul do Exército norte americano dizendo que a América Latina é importante pelo petróleo, o lítio e água doce que pode proporcionar.
Também o tuíte de Elon Musk, depois apagado, onde dava a entender que poderiam ser derrubados governos quando fosse necessário, em resposta a alguém que acusava os Estados Unidos de fazer um golpe no Evo Morales para obter lítio para Musk. No inconsciente coletivo latinoamericano ficou a ideia que hoje é remoída pelo levante do Zúñiga, de que Evo foi derrubado para que os Estados Unidos ficassem com o lítio boliviano. Mas na política boliviana a ordem dos fatores não é essa.
É fato que a história das veias abertas da América Latina é a de poderes políticos locais dançando a música dos interesses de exploração e negócios dos países poderosos do norte. Em um dos capítulos do livro do Eduardo Galeano, que Hugo Chávez deu uma vez de presente para o então presidente norte americano Barack Obama, o escritor uruguaio narra os detalhes de como Estados Unidos garantiu fornecimento de ferro barato para o país do norte conseguindo o 49% da empresa estatal Vale do Rio Doce para capitais estadunidenses, numa trama que se articula com a do golpe de 1964 no Brasil.
Mas este imaginário, que emerge imediatamente em qualquer situação interpretada como golpe, precisa ser adequada para a realidade de governos progressistas atuais, que não se interpõem aos negócios das empresas capitalistas estrangeiras. Dilma Rousseff entregou tudo que foi solicitado pelos setores políticos que depois a derrubariam, incluindo direitos trabalhistas e concessões de exploração petrolífera, enquanto o próprio poder político ia desmilinguindo. Da mesma forma, Evo Morales não teve uma política contrária à exploração do lítio por parte de empresas privadas, o que pode ajudar a afastar essa interpretação das motivações em derrubar o MAS agora ou em 2019.
É verdade que a disputa pelas commodities bolivianas, hoje, pode envolver interesses chineses em disputa com empresas norteamericanas, ou russas, indianas, além de ocidentais. Também é importante lembrar que uma das medidas mais importantes do primeiro governo do Evo Morales, em 2006, foi aumentar os impostos das empresas produtoras de hidrocarbonetos, no decreto chamado de nacionalização que, no entanto, permitiu a continuidade das empresas, nacionalizando apenas a distribuição. Esses impostos já haviam aumentado de algo como 30% para 51% em 2005, durante a presidência do Carlos Mesa, que assumiu após a fuga do Gonzalo Sánchez de Lozada, e com Evo foram para 81%. O movimento que levou Evo Morales ao governo foi uma revolta da população em 2003 contra Sánchez de Lozada quando tentou exmportar o gás boliviano para os Estados Unidos.
Mas hoje, à diferença de outros líderes latinoamericanos como Petro na Colômbia, nenhum dirigente do MAS questiona o modelo extrativista com investimento de empresas estrangeiras. Isto não significa que o mundo dos negócios não interfira na política interna e na diplomacia, que eventualmente possa se alinhar com a oposição ao MAS. Mas Evo Morales não confrontou interesses de grupos de poder, principalmente após encerrar a disputa com a oposição da Meia Lua e aprovar a Constituição em 2009, cedendo em quase todos os pontos que poderiam gerar conflitos e instabilidade como concessões de mineração, reforma agrária e, também, reeleição, que ficou limitada a um mandato sucessivo.
Assim como a US Steel ficou em 1964 com o 49% das ações da Vale e acesso à jazida de ferro da serra dos Carajás no Pará, argumentando que o Brasil não tinha capitais para isso, Evo Morales assinou um contrato em 2019 com empresa alemã que ficaria com 49% da produção de lítio boliviano. A resistência do povo de Potosí contra a assinatura desse contrato acabou conseguindo reverter a decisão e foi importante na formação do caldo social de organizações que se mobilizaram contra a releição do Evo Morales e Garcia Linera.
Mais importante para entender a crise atual da Bolívia é o fato de que ela parece estar relacionada com o fim da época boa que trouxe para o Estado boliviano a aparição de reservas de gás no começo dos anos 2000 que, junto com elevados preços e venda garantida por gasoduto para os países vizinhos, garantiram uma certa bonança de alguns anos num Estado que pouco antes só fechava as contas com ajuda da cooperação internacional. De qualquer modo, se bem a nova promessa são as reservas de lítio, isso não está em jogo na crise política atual.
Crise política que continua aberta
Em 2019, a força do movimento contra a reeleição de Evo derrubou o presidente. Em 2024, o discurso de um militar tentando se alçar à cabeça desse mesmo movimento não foi suficiente para realizar um golpe de Estado, caso essa tenha sido a intenção. Difícil imaginar outro desfecho, quando a candidatura do Evo Morales para a eleição que ocorrerá em agosto de 2025 ainda não foi confirmada. Ninguém faz um movimento armado preventivo de uma candidatura não confirmada com mais de um ano de antecipação, arriscando prisão que não é evitada por militares de alta patente nas diferentes crises.
Com uma justiça fraca e facilmente manipulada pelo governo, a candidatura do Evo Morales foi autorizada em 2017 mesmo com a proibição expressa na constituição, com a argumentação de que era um direito humano Evo poder candidatar-se. Da mesma forma uma sentença do Tribunal Constitucional interpreta agora que não são dois mandatos sucessivos os permitidos, mas dois mandatos em qualquer tempo, deixando o ex-presidente em situação virtual de inabilitação.
Por isso é mais verossímil pensar que o militar Zúñiga tentou reverter sua sorte lançando uma carta com poucas chances de prosperar, como saída desesperada num contexto de crise e sem apoio internacional nem plano para que alguém ficasse com o lítio por esse caminho. Para os interesses reais do capitalismo e da geopolítica do fornecimento de energia, é necessária uma solução estável, o que hoje não exige convocar os militares ou derrubar governos, mas que apenas um golpe de Estado podia proporcionar nas décadas de 60 ou 70, quando os exemplos de Cuba, Allende e inclusive governos nacionalistas burgueses ameaçavam interesses capitalistas e o controle político da região.
Ao mesmo tempo vemos que hoje a democracia é forte e não está em risco, justamente porque é fraca. Sobre isso para além da força de uma resposta no twitter do Elon Musk, das forças de direita e de esquerda que se organizam com mensagens manipuladoras no Whatsapp, e que a justiça seja também manipulada para que alguém seja ou não candidato, a força está no sistema capitalista, no modelo extrativista e os interesses que nenhum governo questiona.
A insubordinação de Zúñiga não demonstra a possibilidade de um governo militar, nem a força de interesses capitalistas sobre os recursos naturais bolivianos. Mas dá conta sim da crise política que nem a direita liberal republicana, nem a direita conservadora da Meia Lua, nem o MAS parecem ter ferramentas para responder. É natural que os sucessos do 26 de junho remetam à época das ditaduras porque o discurso político da extrema direita prepara a população para isso, mas também é comum ver que os mesmos naufraguem, não sendo essas intervenções necessárias de forma estrutural, para além da disputa de setores políticos e grupos pelo controle do governo e acesso a recursos do Estado.
O movimento do Zúñiga se incorpora a uma crise política sem fim onde progressismo e direita se revezam em disputas de governo que não modificam o poder. Para o capitalismo de Elon Musk, Biden e grandes empresas mineradoras convidadas a investir na região não serve um contrato aprovado num governo que cairia rapidamente ou enfrentaria mobilização popular sem nenhuma sustentação. Também por isso não houve força internacional garantindo estabilidade política e força econômica para Jeanine Áñez, na prisão onde em breve também estará Zúñiga e os poucos que o seguiram.
A incerteza sobre a eleição de 2025 poderá gerar ainda situações de tensão política. Não sabemos quem será o próximo governo, mas sabemos que o lítio será explorado sem importar o impacto ambiental nem o setor político que o autorize. A democracia é suficiente para um modelo de desenvolvimento e negócios que funciona estável para além de caudilhos, golpes militares, crise econômica e instabilidade de governo.
[*] Professor do PROLAM (USP) e UNIFESP-Osasco.
As fotografias que ilustram este artigo são de Aizar Raldes/AFP.
Traduzido para o espanhol.
Ainda é cedo para saber o que realmente motivou o general Zúñiga a lançar sua intentona golpista no último dia 26. No entanto, a ação não parecia totalmente “fora de tempo” como o texto afirma. Poucas horas antes dos tanques cercarem a Plaza Murillo o presidente Luis Arce havia chegado a um acordo com caminhoneiros que ameaçavam bloquear estradas por todo o país em protesto contra a escassez de combustíveis. Talvez Zúñiga acreditasse que o levante militar fosse seguido pelo protesto dos caminhoneiros, jogando o país no caos e surgindo como o salvador que restabeleceria a ordem, etc. Mas fora isso, tudo leva a crer realmente que se tratou de uma ação improvisada, sem uma preparação que costurasse apoio político e social para a tentativa de golpe. E parabéns pelo texto, camarada!
Sim, de acordo… a ação não esteve bem coordenada. Importante acompanhar a crise de abastecimento que se articula com setor transporte e também com custos altos para o Estado e transtornos para a população, por causa da situação geral de reservas de gás e petróleo que estão escasas. Mas o governo tinha desarticulado esse último protesto, importando gasoil. Não seria difícil para militares golpistas esperar uma conjuntura um pouco mais caótica para fazer essa ação. Foi nesse momento pela demissão do Zúñiga, mas é importante acompanhar uma conjuntura onde certamente terá protestos e reflexo na situação política. Abraço e valeu, camarada!