Por Jan Cenek
Queria ser romancista, tornou-se tradutor. Queria conhecer o mundo, foi para uma cidadezinha do interior.
Aceitou a ideia de que passaria pela vida sem escrever um romance. Morreria sem fazer a única coisa capaz de justificar a existência: escrever romances – recriar o mundo e os homens com palavras. Passaria pela vida sem deixar nenhuma marca digna de nota, sem absolutamente nada de que pudesse se orgulhar. Mas ter que traduzir textos acadêmicos para sobreviver era constrangedor. Para os amigos – quando ainda tinha com quem conversar sobre literatura –, dizia que eram justamente as malditas traduções de textos acadêmicos que lhe travavam as possibilidades criativas. É mais fácil vencer um concurso de dança vestindo uma armadura do que escrever um romance tendo que ganhar a vida como tradutor. A metáfora era do tempo em que ainda nutria pretensões literárias. Afirmava que um abismo separa um texto acadêmico de um bom romance. Citava o filósofo das marteladas: quando olhamos para o abismo, o abismo olha para nós. Concluía dizendo que os artigos que traduzia eram o abismo. Comparem um Machado de Assis ou um Guimarães Rosa aos textos que vocês traduzem e revisam – costumava dizer a amigos e companheiros de profissão. Arrematava afirmando ser impossível escrever algo que preste depois de passar o dia traduzindo academesmices, ciência salame, encheção de linguiça, mais do mesmo, bobajadas que só servem para bater metas curriculares. Havia quem discordasse em nome do futuro do país, do progresso do conhecimento, da ciência e, sobretudo, como forma de dar sentido ao próprio trabalho. É desagradável pensar que se desperdiça a vida repetindo tarefas inúteis. Ele provocava lembrando que, pelo menos, não ficaria vinculado ao que definia como textículos acadêmicos, porque os nomes dos tradutores não costumam ser publicados.
Aceitou a ideia de que não conheceria o mundo e sequer sairia do Brasil. Mas passar o resto da vida numa cidadezinha esquecida no interior do país não era o melhor destino. Como ficou sem dinheiro no meio da primeira grande viagem que tentou fazer, precisou trabalhar. Retomou as traduções. Como a internet já havia chegado naquele fim de mundo, foi trabalhando e ficando. Era mais fácil sobreviver no interior com cerca de duzentos reais que ganhava por artigo traduzido, nos grandes centros o custo de vida era proibitivo para o tradutor. A cidadezinha tinha um quarteirão com casario do século XIX, do tempo da mineração, cercado por habitações precárias, resultantes do loteamento de antigas propriedades. Alugou um quarto num sobrado do século XIX e ficou. Dormia ali. Trabalhava ali. Traduzia ali. Colocou uma mesa e um computador no canto do quarto, ao lado da janela, por onde espiava a vida passar quando as palavras começavam a se embaralhar na tela do computador. Fazia as refeições na cozinha que dividia com outros inquilinos. Fazia as necessidades no banheiro que dividia com outros inquilinos. Dividia o sobrado com viajantes, prostitutas, traficantes e até aventureiros que acreditavam ainda haver ouro nos rios e minas da região. Porque morava no velho sobrado com pessoas marginalizadas e praticamente não saía do quarto, havia quem desconfiasse que o tradutor fosse um fugitivo.
Ele não se importava, até se divertia com as suspeitas. O que irritava o tradutor era a labuta diária. Além do tempo desperdiçado traduzindo para o inglês, além do travamento literário provocado pela linguagem insossa dos artigos a serem vertidos, o tradutor se irritava com o contato mínimo que era forçado a manter com os clientes. Havia revistas científicas que contratavam empresas especializadas que quarteirizavam o serviço repassando textos a serem vertidos pelo tradutor. Havia os acadêmicos que demandavam traduções para publicar em revistas científicas internacionais. O tradutor preferia o autoritarismo mercantil das primeiras, que simplesmente informavam o tamanho do texto, o valor e o prazo. As empresas prescindiam do mandar sugerindo dos acadêmicos, que irritavam profundamente o tradutor. Sugiro que tenha atenção com os termos técnicos. Sugiro evitar expressões “aportuguesadas”. Sugiro não utilizar softwares de tradução. Sugiro consultar as instruções do periódico antes de iniciar o trabalho. Sugiro entregar até a data tal, ou antes se possível. Toda vez que recebia ordens em forma de sugestão lembrava-se de Bartebly, o escrevente do conto homônimo, que passou abruptamente da aceitação ao rechaço com um misterioso “eu preferiria não”. Poderia revisar o contrato x? Eu preferiria não. Poderia revisar a procuração y? Eu preferiria não. Mas revisar é parte do seu trabalho, Bartleby – argumentava o patrão, no conto. Ao que o escrevente foi do futuro do pretérito (eu preferiria não) para o presente do indicativo (eu prefiro não) seguido por um mutismo intransigente e definitivo. O tradutor sonhava com o que definia como o dia B – de Bartleby –, quando responderia “eu preferiria não” às empresas especializadas em tradução e, especialmente, aos acadêmicos.
O tradutor ficava puto quando os acadêmicos iniciavam solicitações adicionais com agradecimentos duvidosos. Agradeço a prontidão e a qualidade do trabalho, reenvio o artigo para revisão, fizemos correções na introdução, por favor, verifique e ajuste a versão para o inglês. E assim era obrigado a perder tempo com tarefas não remuneradas. Toda vez que recebia solicitações adicionais que começavam com agradecimentos duvidosos, ele lembrava da escritora Dorothy Parker, que definiu o sentimento de gratidão como “o atributo mais mesquinho e choramingueiro do mundo”. O tradutor se irritava profundamente com os agradecimentos forçados e interesseiros. Agradecemos o cuidado e a atenção com nosso artigo, por favor, poderia informar a previsão de entrega da versão para o inglês? Agradecemos o esclarecimento sobre o pagamento, é possível conceder um desconto?
Foi num dia qualquer, no começo da tarde, mais precisamente. Pela manhã havia concluído a tradução de um artigo mal escrito e chatíssimo, cheio de frases longas, clichês e ideias banais. Quando leu o agradecimento pelo retorno imediato no início do e-mail, já imaginou que teria dores de cabeça. O professor doutor A pedia desculpas e informava que a versão enviada ao tradutor não havia sido revisada por um dos coautores, o professor doutor B. Assim sendo, o professor doutor A agradecia e sugeria que o tradutor revisasse e refizesse o trabalho com a maior brevidade possível, se atentando especialmente às alterações realizadas pelo professor doutor B na seção de métodos. Na mesma mensagem, o professor doutor A reuniu o que mais irritava o tradutor: uma ordem sugerida e um agradecimento duvidoso.
Quis esmurrar a tela do computador e a cara do professor doutor A, que ele não conhecia pessoalmente, mas que passou a odiar com todas as forças. Se pudesse, pelo menos, agradecer e mandar sugerindo que o professor doutor A fosse à merda… Agradeço o alerta sobre a necessidade de revisar a tradução, especialmente a seção de métodos: sugiro que vá à merda! O problema era que aquele grupo de pesquisa sempre demandava versões para o inglês. Podia abrir mão daquelas traduções? Sobreviveria sem elas?
Contou os trocados que tinha na carteira, desligou o computador, bateu a porta do quarto e foi até o bar da esquina. Tomou uma cerveja aguada como a vida.
Muito bom texto. Não sei se é pq sou tradutor, mas me tocou bastante. Daria pra fazer uma versão para tradutores militantes, que traduzem de graça grandes obras de grandes teóricos revolucionários para pequenas editoras revolucionárias, que logo se tornam grandes e ricas à custa da moral militante do pobre coitado iludido. No caso, a irritação se dá quando a editora se julga apta a agradecer “em nome da revolução” o trabalho feito gratuitamente.
Bom o artigo justa a analogia feita pelo leitor q nos lembra a sujeição do trabalho em nome da dignidade de uma causa. Muito comum este apelo instrumental a um voluntarismo forçado!
Adorei o texto! Começa meio devagar e contodo como o conformismo do tradutor. No momento em que o personagem começa a transformar sua indignação em raiva, o texto reflete essas emoções tornando-se mais rápido e incisivo quase resultando em uma ação violenta – ‘quis esmurrar a tela do computador”. Porém, sem dinheiro e nem coragem suficiente, o personagem vai ao bar e volta ao seu conformismo de sempre, ao tomar “uma cerveja aguada como a vida”.
Agradeço pelos comentários no site e pelos que recebi nos meus contatos. Esses retornos revigoram e animam. É interessante perceber que a leitura dos leitores é diferente da minha. Isso é ainda mais frequente nos textos literários.
Bacana o texto ter dialogado com um tradutor. Fico sempre com um certo receio de viajar demais e romper a comunicação. Parece que não ocorreu.
Não conhecia a exploração praticada pelas “editoras revolucionárias” contra os tradutores. Apesar de ser previsível, não deixa de ser lamentável. Penso que o tema daria uns bons Flagrantes Delitos.
Especulo que com o advento e aprimoramento da IA o trabalho de tradutor pode estar em vias de extinção. Mas a crônica tem algo que deve elegê-la para reedições futuras. Não sei se é o diálogo com Bartleby ou se o sucumbir da criação literária genuína pelo academismo (e seu linguajar) de obrigações protocolares estéreis, flagelo revivido a cada geração por outras e novas manias, cada vez mais imbecilizantes. Diante disso, a leveza da escrita desta crônica vai se tornando um estado cada vez mais difícil e necessário de atingir.
Acredito que haverá uma massificação de editoras a la Martin Claret só que baseado em IA, inaugurando uma nova fase daquilo que o Walter Benjamin chama de reprodução técnica da obra de arte, só que aplicado as obras de arte. Mas, ao mesmo tempo, fortalecer-se-à se agarrando a aura e a “alta cultura” editoras como a 34. Então, a dinâmica da produção capitalista produzirá dois “Faustos” (p.e.) um traduzido por uma IA e publicado por editoras Martin Claret e outra uma super edição bilíngue pela 34. Obviamente, a pressão sobre o trabalho do tradutor será cada vez maior, provavelmente, rebaixado a categoria de revisor.
Sobre o texto, acredito que o texto diz e aponta para o que não diz, a revolta contra a formalidade e a enfadonha linguagem dos artigos academicistas é a forma ludista-literária de revolta do trabalhador, destruir as formas maquinais, como uma expressão de revolta contra algo a muito naturalizado. O que seria desse tradutor, se traduzisse maquinalmente contos eróticos? quanto tempo demoraria para se levantar contra milhares de pirocas repetitivas? e pepecas pseudo molhadas? Atacaria o monitor, quando o autor questionasse tradutor o questionasse que não traduziu o gozo de modo preciso o suficiente?
Besos mojados
Penso que a inteligência artificial (IA) vai transformar cada vez mais os tradutores em revisores, como foi dito. É um movimento que já está acontecendo. O que a IA não vai fazer é reduzir a exploração. Pelo contrário. Enquanto vigorar a propriedade privada dos meios de produção, todo avanço tecnológico será utilizado para intensificar o trabalho e a exploração.
Legal pensar numa revolta literoludista contra as formas maquinais. Tem a ver. Mas há, também, o trabalho não pago e a exploração. É o drama de Bartleby (https://passapalavra.info/2019/05/126590/). É justo ter que refazer o trabalho porque não enviaram a versão definitiva do texto a ser traduzido? O erro foi de quem?
Não sei o que aconteceria se o tradutor tivesse que verter contos eróticos. Talvez ele se irritasse se coisa fosse muito explícita, com muitas pirocas e pepecas. Penso que o tradutor gostaria de verter e, sobretudo, criar cenas como o amor de Emma Bovary e Leon na carruagem que percorre a cidade (o tradutor queria ser romancista). Mas aí é para poucos. É coisa que nem a IA consegue fazer. Aliás, o dia que a dita inteligência artificial produzir algo como a cena da carruagem, teremos uma grande novidade. Se a IA produzir cenas como a da carruagem, ela será capaz de substituir um Flaubert. Acho que a coisa não vai tão longe.