Por Arthur Moura*

A comunicação permanece como uma das necessidades fundamentais para qualquer processo social e político (seja de qualquer orientação), cultural ou econômico. Sem comunicação não há convencimento. Em um sistema pautado pela produção de mercadorias, seria impossível a manutenção e expansão do modo de produção capitalista sem tal aparato. Antes de qualquer processo repressivo, cabe à comunicação (e seus intelectuais orgânicos) produzir o consenso necessário para a manutenção das relações de exploração e dominação. Por outro lado, a comunicação vem sendo utilizada gradualmente como instrumento de luta, resistência e revolução em diferentes contextos sociais.

No Brasil, com o fim da escravidão e a situação de completo abandono social dos ex-escravos e das futuras gerações de negros e mulatos, a comunicação passa a servir como forma de integração desses setores no capitalismo nascente. A mudança para o regime republicano liberal, segundo Florestan Fernandes em seu livro A Integração do Negro na Sociedade de Classes, “não afetou a ordenação das relações raciais, herdadas do antigo regime.” (FERNANDES, 2008, p. 7) Sobre a comunicação nesse contexto o autor diz o seguinte:

Ao mesmo tempo, impunha-se criar veículos de comunicação, capazes de imprimir viabilidade e de dar continuidade ao esforço de consciência e de crítica à situação racial brasileira. A “imprensa negra” aparece, assim, vinculada a fins de proselitismo, como uma imprensa engajada na solução dos “problemas específicos do negro brasileiro”. Ela teve, por isso, uma função socializadora e de controle altamente construtiva. Condensou e difundiu avaliações inconformistas sobre a realidade racial brasileira; contribuiu para transpor o consenso mecânico, fundado na identidade das frustrações, numa solidariedade consciente e orgânica; e, por fim, suscitou no seio da “população de cor” disposições assimilacionistas identificadas com a situação de interesses do negro e do mulato. Paralelamente, procedia-se a uma tenaz exploração dos motivos que poderiam concorrer para congregar os negros e os mulatos em objetivos comuns. Além de tirarem esse proveito da criação de jornais, clubes ou bibliotecas, procuravam os mais variados intentos para atingir esse fim. Sirvam de exemplos a participação que os negros de São Paulo tiveram na campanha em prol da mãe negra, na tentativa de realizar o Congresso da Mocidade Negra. (FERNANDES, 2008, p. 26)

Para a manutenção da dominação, integração ou para um processo de caráter revolucionário é necessário a construção de uma máquina comunicacional. Isso depende do nível de organização dos setores em luta. A comunicação, portanto, tem o seu caráter de classe. Para os subalternos resta apenas a opção de lutar pela construção de uma comunicação capaz de não sucumbir frente a tantos mecanismos de cooptação.

A comunicação desenvolvida no século XXI tem poucas relações com o modo como se produzia o consenso no século XX. O uso feito por parte dos setores subalternizados também mudou substancialmente, com dificuldades evidentes. O fator decisivo para isso foi a revolução no campo tecnológico, que aos poucos abriu novas possibilidades de comunicação para os trabalhadores. Esse processo contraditório rege as relações de produção em plataformas como o youtube, que vem sendo opção para muitos produtores de conteúdos ligados às lutas sociais na esperança de atingir um número maior de pessoas, como forma de promover debates ou simplesmente propaganda. A busca por monetizar vídeos empurra os produtores ao Youtube tornando a plataforma bastante representativa do que vem sendo produzido de um modo geral no audiovisual. Para além do efeito estético, há o efeito econômico.

Podemos ter como marco da transformação da comunicação popular e convencional corporativa o ano de 2005, quando surge o Youtube, que desde essa data vendo sendo a plataforma mais utilizada por novos produtores no campo da comunicação, ao passo que vem estimulando um novo modo de produzir vídeos, quase sempre antenados com as demandas no campo da moda, artes e política muitas vezes reforçando algoritmos que estão no topo das buscas. A estética “youtuber”, por exemplo, já se tornou padrão. Cortes rápidos, memes inseridos no transcorrer das falas, luz de led, uma certa composição visual, enfim, um conjunto de elementos capazes de comunicar desde a aparência visual ao modo como a narrativa é composta.

O consumo da vida pessoal também vem se tornando bastante comum, como acompanhar a vida de celebridades em suas intimidades ou até mesmo o dia a dia de uma pessoa sem teto. Esses personagens que se auto-criam dentro dessas plataformas tendencialmente transformam-se em formadores de opinião e dependendo do alcance são incorporados a outros canais a ponto de super explorar suas imagens e opiniões sobre assuntos geralmente ligados aos limites da vida privada. A dimensão do Youtube se dá por conta de uma multiplicidade de conteúdos, o que a torna ferramenta indispensável para acessar boa parte do que vem sendo produzido nos últimos quase vinte anos.

Por isso, a plataforma é ocupada pelos mais variados espectros políticos que disputam arduamente a audiência. Nessa batalha, os vencedores estão à direita do espectro político, pois são notoriamente mais acessados e compartilhados, influenciando decisivamente nos processos políticos do Brasil dos últimos quinze anos. Os motivos para o sucesso da direita todos já conhecem: comunicação fácil, caricata, espetaculosa aliado a grandes investimentos do setor privado. Os Think Tanks são um bom exemplo. Nas eleições de 2018 a extrema direita ocupou o ranking dos canais mais acessados.

Dos dez canais que mais cresceram no YouTube Brasil no segundo semestre de 2018 – época das eleições –, metade era dedicada a promover Bolsonaro e extremistas de direita como ele. E isso aconteceu com uma mãozinha do algoritmo do YouTube que recomenda conteúdo na seção “Em Alta”, área nobre do site que mostra os canais e vídeos que estão bombando no momento. (GHEDIN, 2019, Intercept Brasil)

Hoje, o youtube é uma das maiores plataformas de vídeo do mundo, com um total de 2,51 bilhões de usuários ativos. No Brasil são 142 milhões de usuários, perdendo apenas para o WhatsApp, com 169 milhões. Uma parte considerável dos usuários estão conectados a essa rede social, se informando ou consumindo propagandas, apoiando ou criticando governos, debatendo, acusando, enfim, toda essa gama de possibilidades deu a plataforma a imagem de democrática e acessível. Ao passo que com o tempo foi obrigada a criar uma série de condições como não promover discurso de ódio, não infringir direitos autorais, assim como ter a possibilidade de remover vídeos que violem as formalidades da plataforma e a legalidade instituída, tudo isso pode facilmente ser driblado dentro da lógica do seu funcionamento.

Esse panorama paradoxal é o que também possibilita a produção de conteúdos comprometidos com debates mais profundos, como questões sociais, filosóficas e históricas, lutas sociais, convocações, associações e tentativas de organização de produtores de conteúdos geralmente ligados à esquerda ou a trabalhadores organizados em outras frentes. Há um sem número de intelectuais, canais, enfim, produtores de conteúdos do amplo espectro das esquerdas. Ainda assim, poucos ganham destaque para além dos seus nichos locais, prejudicando o debate de uma forma geral e a organização dos trabalhadores em última instância. Os nichos de audiência são estimulados e criados dentro da lógica de segmentação dos interesses, que tem como função fidelizar a audiência expandindo para outros núcleos com interesses próximos. Isso acaba por criar uma sensação de expansão dos limites antes impostos por uma comunicação que se restringia aos monopólios corporativos, quando na verdade criam-se simulacros, escondendo a verdadeira potencialidade da comunicação crítica, muito por conta da lógica funcional dos algoritmos.

A plataforma em si não produz nada. Ela se estabelece como uma espécie de central de produção audiovisual de todos os gêneros possíveis, desde produções bastante simples, até grandes corporações já estabelecidas que não abrem mão de ocupar a plataforma, haja vista a decadência de mídias como a televisão, o rádio e o cinema. Assim, todo o espectro da comunicação que antes estava compartimentada, agora se reúne em formatos como lives, podcasts, entrevistas, filmes, análises, banalidades das mais diversas e entretenimentos. São os próprios usuários que mantém uma produção alucinada frente às promessas de monetização de seus canais, que uma vez alcançado pode gerar algum tipo de lucratividade para os produtores de conteúdos; nada comparado aos lucros da empresa, que só no primeiro trimestre de 2022 lucrou quase 8 bilhões de dólares e em 2023, mais de 30 bilhões de dólares com publicidade. O maior youtuber do mundo, Mr. Beast faturou mais de 82 milhões de dólares em 2023 com uma espécie de entretenimento boboca, algo próximo do que fazia Gugu ou Silvio Santos.

O que sobra para a maioria dos produtores (quando sobra), são migalhas. Essas migalhas funcionam como a propaganda da propaganda, atestando a idoneidade da plataforma, que passa a se estabelecer como necessária ao desenvolvimento da comunicação, da política, da economia e cultura. O empenho dos produtores é o que garante a relevância do Youtube. É nesse quiprocó que se produz a sua legitimidade, ainda que sob evidentes contradições. As chances de se obter renda, claro, não é a mesma para todos os produtores de conteúdo. Existem critérios muito bem estabelecidos. Esses critérios foram melhor desenvolvidos pelo Youtube ao longo dos seus 19 anos de existência, mas podemos dizer que a base dessa lógica já existe desde a formação do que se convencionou chamar indústria cultural. Na maioria das vezes, são conteúdos apelativos que conseguem ganhar mais destaque, como a cadeirada no candidato à Prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal, que gerou toda uma comoção popular santificando o candidato Datena, um sujeito nada exemplar… muitos youtubers acabam ganhando destaque por conta dos seus aspectos caricatos na tentativa de chamar atenção, sendo um chamariz antes mesmo da informação.

Essa lógica do que funciona é reiterada pela própria plataforma, que estimula os criadores a continuar seguindo determinadas tendências ainda que sejam absolutamente irrelevantes, antiéticas e banais (ou simplesmente superficiais e vexatórias). Muitos podem ficar anos sem ganhar um centavo. Por isso, muitos optam por outras formas de apoio que não seja necessariamente contar com os ganhos da plataforma. Não é a produção sistemática de conteúdos que garante que o produtor receba algo em troca, tampouco a qualidade técnica, intelectual ou estética ou sua contribuição ao debate público. O que possibilita os ganhos é o quanto cada produtor se submete ao funcionamento da plataforma, que basicamente gira em torno de uma comunicação ultra veloz pautada na banalidade do espetáculo capitalista privilegiando o privado em detrimento do público.

A plataforma privilegia o entretenimento banal, figuras já conhecidas em seus meios de atuação que acabam redobrando seus ganhos a partir do youtube. Há, portanto, uma preferência sobre o que deve ser produzido, como e quando. Nesse sentido, a plataforma ajudou a desenvolver uma comunicação dentro do modelo de mercado que apesar de nichado estão relacionados a produção de lucros por meio do espetáculo midiático. Para comprovar isso, basta olharmos os números de inscritos de determinados canais (como a Brasil Paralelo que tem 4,04 milhões de inscritos) e comparar com canais comprometidos em algum nível com a crítica social.

Para sermos objetivos, quais vem sendo as alternativas do ponto de vista de uma comunicação de esquerda?

Em primeiro lugar, essa pergunta é complicada, pois se há uma resposta, ela acaba por refletir os interesses de grupos muito reduzidos, já que quando falamos “esquerda” não nos referimos diretamente ao público organizado, ou simplesmente aos trabalhadores auto-organizados. Por esquerda devemos entender setores organizados a partir de uma burocracia partidária, sindical ou estatal complacentes com o regime representativo burguês, legalista, portanto, vertical e pouco eficaz no que diz respeito aos avanços necessários das lutas pela emancipação proletária.

Esse amplo setor se inscreve nos limites do liberalismo e da democracia representativa burguesa. Essas estruturas, pelo contrário, são contrarrevolucionárias; desempenham esse papel na sociedade de classes. Esse setor geralmente luta por reformas dentro dos marcos do capital sem comprometer sua vida profissional, tendo uma atuação orgânica muito mais em seus núcleos de trabalho funcionando como o elo da conciliação de classes. Essa esquerda se restringe a intelectuais de universidades, trabalhadores sindicalizados e direções profissionais, partidos políticos e uma classe média intelectualizada geralmente servidores públicos que tem no Estado seu principal aporte. Há também artistas e militantes profissionais. Do ponto de vista histórico, essa esquerda estaria mais ligada ao projeto da social democracia, ainda que muito aquém do que foi no final do século XIX e início do XX na Rússia e Alemanha. Do ponto de vista programático, defende basicamente a manutenção do estado de coisas, aparando as arestas do capital. As reformas mais modestas são pauta permanente, ainda que raramente saiam do papel. Todo tipo de radicalismo é ceifado.

Muitas alternativas vêm sendo construídas, como jornais, zines, livros, cinema, rádio, entre outros. O cinema, por exemplo, é um campo importante e que mobiliza um sem número de trabalhadores do audiovisual. Mas o Youtube, sem dúvida, tem um peso a parte dado o número de pessoas que consomem ativamente vídeos sobre todos os assuntos possíveis. Nesse sentido, há uma profusão de canais, alguns com mais perenidade, outros não, ao passo que as trocas são determinadas por interesses do ponto de vista privado, impossibilitando maior articulação entre os produtores e um crescimento coletivo.

Se assim entendermos, a comunicação de esquerda cresceu de forma corporativista e, na prática, muito pouco popular enquanto mídias fora dessa órbita carecem de visibilidade ocupando uma espécie de limbo da audiência que não cresce devido a suas poucas conexões e ausência de apoio. Com isso, não quero afirmar que essa comunicação de nada vale. Ela impulsiona campanhas, propagandas eleitorais, propaganda positiva de governos a nível local e federal, disputas intestinas em instituições formais, disputas internas entre canais de mesma vertente, polêmicas entre setores pautados pelas mesmas orientações políticas (geralmente de caráter liberal identitário ou social democrata, em última instância reformista e legalista) e também contribuem do ponto de vista da divulgação da teoria marxista, ainda que enviesado segundo as leituras mais variadas. As análises de conjuntura do PCO são um exemplo.

Os protagonistas desses canais são geralmente estudiosos, formadores de opinião, militantes de partidos políticos de esquerda (PT, PSOL, PSTU, PCO, PCB, PCdoB, UP e demais partidos liberais reformistas), ou produtores autônomos que produzem análises anarquistas, como é o caso do Gláucio Gonzales, que tem seu canal desde 2007 ou de novas iniciativas como o canal Crítica Desapiedada, que divulga o pensamento marxista libertário, tendo entrevistas como a de Paul Mattick.

Os canais que mais vem se destacando são: Paulo Ghiraldelli (575 mil inscritos), Jones Manoel (323 mil), Partido da Causa Operária (126 mil), TV 247 (1,34 milhões), TV Boitempo (383 mil), Humberto Matos (215 mil), Ian Neves (376 mil), Opera Mundi (344 mil), DCM TV (380 mil), Ferrez (125 mil), Filosofia Vermelha (114 mil), IELA UFSC (55 mil), Tempero Dreg (1,26 milhões), João Carvalho (207 mil), Meteoro Brasil (1,75 milhões), Ateuinforma (47 mil), Guilherme Boulos (407 mil), UOL (4,38 milhões), Henry Bugalho (724 mil), entre muitos outros. Na verdade, existe uma constelação de canais, alguns presentes no texto que escrevi em 2019 sobre o mesmo tema (disponível no blog cronicadaguerradeclasses.blogspot.com).

Em 2019, o canal do Paulo Ghiraldelli tinha 163 mil inscritos. Em cinco anos ganhou mais de 400 mil inscritos. A TV Boitempo, em cinco anos cresceu 277 mil; Ferrez, 115 mil; DCM TV, 360 mil; o canal do PCO em 2019 tinha 60 mil inscritos, mas como o canal foi derrubado não sabemos ao certo a quantidade exata do seu crescimento; Henry Bugalho, 542 mil; Filosofia Vermelha, 111 mil; o canal da TV 247 cresceu em cinco anos mais de 1.300.000 inscritos tornando-se um dos maiores canais da esquerda no Brasil.

Do ponto de vista da divulgação científica e da teoria marxista o canal da editora Boitempo tem importância fundamental. Podemos dizer que é o principal canal para a formação teórica marxista. A iniciativa reúne boa parte da intelectualidade que produz pesquisa no campo. José Paulo Netto, Virgínia Fontes, Marilena Chaui, Paulo Arantes, Mauro Iasi, Michael Lowy, Ricardo Antunes, David Harvey, Alysson Mascaro, Jorge Grespan, Valerio Acary, Ester Vaisman, Antonio Carlos Mazzeo, Angela Davis, Vladimir Safatle, entre muitos outros. O canal, no entanto, funciona numa lógica de reiterar nomes já consagrados, incorporando novos teóricos na medida em que esses primeiramente ganham projeção no Youtube, como foi notadamente o caso de Jones Manoel, Rita von Runty, Douglas Rodrigues Barros, Juliane Furno, Elias Jabour, entre outros. O reconhecimento é pautado pela potencial audiência que cada um oferece ao canal. Por isso, não vemos “pessoas comuns” tendo espaço na maioria desses canais, sendo esse o formato do canal da maior editora das esquerdas do Brasil.

Do ponto de vista técnico, as produções são precárias e não notamos nenhum avanço no desenvolvimento de novas formas de produção dos conteúdos do canal, que dá preferência por lives e palestras. No que diz respeito a incorporar canais novos também não há nenhum tipo de manifestação nesse sentido, assim como boa parte dos canais citados anteriormente. O canal A Terra é Redonda, por exemplo, optou por entrevistas com esses mesmos grandes nomes da teoria marxista prezando por um formato mais preocupado com a questão técnica, o que vem contribuindo para o seu rápido crescimento na internet. Em dois anos o canal já tem quase 15 mil inscritos, sendo a entrevista com Marilena Chaui a que teve mais acessos, quase 100 mil views em 11 meses.

De uma forma geral, os canais acabam encontrando seus respectivos nichos de divulgação e consumo sem alçar voos mais longos. Canais como Opera Mundi e TV 247 dão preferência às pautas parlamentares e aos processos eleitorais, tendo a frente as mesmas figuras de sempre, como o Deputado Glauber Braga discutindo a perseguição que sofre no parlamento burguês. Uma pauta pouco presente, por exemplo, é voltar a ocupar as ruas com manifestações de forma sistemática, até que em alguma medida se conquiste de fato pautas imprescindíveis para a manutenção primária dos trabalhadores e demais setores subalternizados. A ausência da população nas ruas esvazia a política encastelando o poder nas instituições do Estado. Essa pauta não é tocada por haver a preocupação em não desgastar o governo Lula, que apesar de todo o seu comprometimento com a classe dominante é defendido por praticamente todos os canais citados, com exceção dos canais de viés anarquista e marxista libertário. Ainda assim, alguns canais como Conexão Marxista, que baseia suas críticas em autores como José Chasin e István Meszáros são entusiastas do governo, comemorando a vitória quando das eleições.

Esse núcleo referencial acaba por dificultar o desenvolvimento de uma comunicação crítica que se expanda para além de núcleos específicos de atuação e da burocracia. E já canais como Galãs Feios (1 mi) e Meteoro Brasil optam por uma comunicação pautada no espetáculo das polêmicas cotidianas, quase sempre apartados de uma análise profunda sobre o panorama social brasileiro não se diferenciando do liberalismo clássico.

O crescimento da audiência dos canais citados dependeu da articulação desses produtores, da produção sistemática de conteúdos, do investimento material nos meios de produção (a estrutura audiovisual do PCO, por exemplo, é considerável, contando com estúdios, câmeras, bibliotecas, computadores e força de trabalho disponível), investimento financeiro, novas formas de financiamento e contribuição (políticas de apoio), criação de novos canais, entre outros. Por isso, os canais que mais crescem estão ligados ao crescimento do ponto de vista material e tecnológico, assim como de pessoal envolvido.

De um modo geral, o Youtube é uma empresa capitalista e que apesar de comportar diferentes tendências (muito por conta das suas próprias necessidades de mercado) não garante que a comunicação produzida pelas esquerdas extrapole os limites dos nichos de mercado estipulados no transcorrer do desenvolvimento da plataforma. Ocupar o Youtube ao mesmo tempo em que oxigena a comunicação produzida pelo campo das esquerdas, coloca para esses a necessidade de construir estruturas capazes de não depender exclusivamente de grandes corporações, que para isso necessitaria de novos arranjos que não se limitasse aos parâmetros pautados pela concorrência, que por fim acaba por reger a lógica de funcionamento de setores que buscam se antagonizar com o grande capital. O inescapável jogo imposto converte a comunicação das esquerdas em aporte para uma propaganda que não comprometa a plataforma youtube, que dentro da ideia de acesso democrático aproxima até mesmo campos divergentes como a extrema-direita e as esquerdas, como foi o caso recente do debate entre Jones Manoel e Kim Kataguiri no canal Inteligência Ltda (4,7 milhões). Essa estratégia não reflete em ganhos substanciais para o público, atento ao debate como forma de consumir os atritos com quem consome um verdadeiro espetáculo.

Desde 2013, vem se tornando comum debates entre militantes da direita e esquerda no Youtube. A princípio tomaremos esses dois termos de forma genérica e abrangente tal como a maioria da população compreende: como campos opostos que revezam a gestão do poder estatal sendo representados por figuras como Bolsonaro e Lula. Em outras esferas poderíamos citar MBL e MTST ou ainda no Youtube os canais Brasil Paralelo e TV247. O debates entre esses dois campos obviamente não é novidade e não foi inventado por youtubers sedentos por visibilidade. Podemos dizer que no meio político essa prática é mais velha do que andar para frente. Os próprios Lula e Bolsonaro protagonizaram debates nas eleições de 2022, ansiosamente aguardado pelos eleitores dado a conjuntura de profundos acirramentos e pelo fato também de Lula ter ficado preso. Tais debates são notoriamente presentes nos processos eleitorais, sobretudo os com mais relevância como entre presidenciáveis, disputas para o governo do Estado, Prefeituras, ou até mesmo em CPI´s. De uma forma geral, esses debates permeiam a vida institucional burguesa pautado na representação burocrática da política.

Para além dos debates eleitorais, esse formato de combate é muito comum em programas jornalísticos, como ressalta Pierre Bourdieu em seu pequeno livro Contrafogos (1998). Há diversos exemplos, alguns já clássicos, como o debate entre Brizola e Maluf nas eleições de 1989, Lula e Collor também em 1989, Lula e Enéas em 1994, Ciro Gomes e Rodrigo Constantino em 2008 num debate promovido pelo programa Conversas Cruzadas GZH, o debate amigável entre Janaina Paschoal e Marcelo Freixo e este mesmo com Flávio Bolsonaro nas eleições de 2016, a entrevista do presidente do PCO na Jovem Pan, o que também foi feito por outras figuras identificadas como críticas como o sedutor do óbvio Eduardo Marinho ou a CPI do MST. Os títulos dos vídeos são chamativos, como “negro de direita vs negra de esquerda”, “Boulos humilhado nas eleições”, “Nikolas Ferreira dá nó em Lula”, “Jones Manoel dá aula para Kim Kataguiri”, “Jones Manoel tenta humilhar Kim Kataguiri em debate”, e por aí vai… Quanto mais retrocedermos, mais exemplos acharemos.

A internet readaptou esse formato ganhando popularidade entre pessoas que buscam algum tipo de formação política utilizando preferencialmente a plataforma do Youtube para isso. Desde as Jornadas de Junho, quando teve um boom na divulgação e propaganda da militância na busca por ocupar as ruas, certas figuras vêm ganhando destaque no Youtube como teóricos, formadores de opinião, analistas, políticos, professores e cientistas sociais. Boa parte deles estão ligados a alguma organização, seja partidária, acadêmica ou de outra natureza. Há muitas pessoas empenhadas nessas funções sendo variado também o nível de conhecimento e viés político, fomentando a disputa entre esses setores que buscam por projeção nas mídias virtuais. Uma das formas mais rápidas de se ampliar o espectro da audiência são as chamadas “tretas”, polêmicas e provocações. Outras técnicas são comuns como os títulos dos vídeos do Paulo Ghiraldelli que quase sempre carregam uma conotação sexual em tom irônico, expondo, em muitos casos, homofobia e outros preconceitos.

Isso vem contribuindo para o aumento do número de pessoas que em algum nível se interessam por assuntos relacionados à política, história, filosofia, economia e produção cultural, além de análises de conjuntura e comentários sobre os fatos recentes, ainda que os métodos e teorias sejam adversos gerando diferentes leituras da realidade sócio histórica. Muitos jovens vêm formando suas concepções políticas amparados em Youtubers e organizações como o MBL, Brasil Paralelo, Nando Moura, Bernardo Kuster, Paulo Kogos, Jovem Pan, Olavo de Carvalho, Marcelo Brigadeiro, Leandro Ruschel, Rodrigo Constantino, Marco Antonio Vila, entre uma infinidade de outros referenciais da direita. Assim como no campo da esquerda os canais do filósofo Paulo Ghiraldelli, Jones Manoel, Ian Neves, Meteoro Brasil, Galãs Feios, Humberto Matos, Conexão Marxista, Filosofia Vermelha, TV247, Henry Bugalho, Clayson, Christian Dunker, TV Boitempo, Opera Mundi, IELA UFSC, Ferréz, Eduardo Moreira e muitos outros vêm dando contribuições em seus campos de formação, que varia desde o clássico reformismo neoliberal ou o puro liberalismo democrático a marxistas, leninistas, trotkystas e anarquistas.

A facilidade em abrir um canal e gravar vídeos tecnicamente simples e comunicar para um grande número de pessoas vem sendo desmistificado, colocando a informação e o debate acima dos limites temporariamente impostos, o que não chega a gerar tantos impeditivos para que haja acesso aos vídeos. Outro fenômeno, que também não é novo, é ocupar determinados canais a despeito da sua orientação política, gerando estranhamento e surpresa, atraindo o público e aumentando os níveis de audiência impulsionando os lucros. Os canais mais visados são os que atingem grande audiência.

Os debates promovidos entre indivíduos ligados a esquerda e direita vêm rompendo esses limites, aproximando essas figuras que em suas exposições em seus canais particulares tendem a criticar o campo adversário, seja com análises ou estigmatizações em tons quase sempre irônicos. Nesse sentido, tornou-se comum ver essas figuras mais próximas, de alguma forma ensaiando as relações institucionais e burocráticas que no seu funcionamento exige o diálogo e aliança entre os diversos setores políticos como forma de gerir a máquina pública e a democracia representativa burguesa, a serviço em última instância do capital e sua reprodução garantindo a dominação de classe. Canais como do Paulo Ghiraldelli e PCO, por exemplo, tem a preocupação central de analisar o governo Lula de forma menos estigmatizada que os canais da direita, funcionando como intelectuais que advogam a favor do governo, por mais que tentem tecer críticas.

Recentemente, repercutiu no Youtube os debates entre Jones Manoel e Kim Kataguiri, promovido pelo canal Inteligência Ltda (4,75 mi) apresentado por Rogério Vilela, que em poucos dias teve mais de um milhão de acessos. Repercutiu também, em menor proporção, o debate entre Gustavo Machado e Luiz Fernando Roxo (intitulado Debate: eleições, capitalismo x socialismo), promovido pelo canal RedCast (168 mil) apresentado por Júnio Masters tendo quase cem mil visualizações em cinco dias. Os dois canais têm menos de cinco anos de existência sendo referência em seus respectivos nichos de mercado. De acordo com as estimativas do site Social Blade, o canal Inteligência Ltda tem um faturamento anual de quase sete milhões de reais e o RedPill quase um milhão de reais. Este, é focado mais no público masculino preocupado com sua auto-afirmação e heteronormatividade e o outro em assuntos da política geralmente conservadora e entretenimentos diversos. Nenhum dos dois canais tem como foco a formação política, promovendo esses embates como uma das estratégias de crescimento.

O formato de podcast foi o que mais se destacou nos últimos dez anos, sendo o Flow Podcast e PodPah um dos maiores, faturando os dois juntos algo em torno de R$12.000.000,00 por ano, sendo que esse faturamento ganha outras proporções com patrocínios e outras formas de rentabilizar, demonstrando enorme capacidade lucrativa. O podcast é também uma ferramenta importante para o meio evangélico e diversos outros segmentos da sociedade. O Flow teve a iniciativa de promover o debate eleitoral para a prefeitura de São Paulo, tendo a participação de Pablo Marçal, Guilherme Boulos, Tabata Amaral, Ricardo Nunes e Datena, tendo até agora quase 8 milhões de visualizações, o que nos dá um pouco a dimensão desses canais.

Júnio Masters se apresenta na internet como “especialista em comportamento humano e atração sexual”; participou do programa Pânico falando sobre o movimento red pill e os malefícios do feminismo. “Algumas coisas que a gente fala é que para muitas questões o homem não tem voz na sociedade do mesmo jeito que a mulher tem”. Ele afirmou que é muito difícil enfrentar isso quando se tem uma literatura que vem sendo produzida ha décadas que defende que as mulheres sempre foram subjugadas na sociedade capitalista. “Por exemplo, muita gente acreditava que o casamento era uma coisa que oprimia a mulher. Hoje em dia se acredita que a coisa que mais protege a mulher, mais dá segurança é o amor, a proteção e a provisão de um homem. Isso são fatos.” A partir disso, já podemos ter uma noção abrangente do teor do canal RedPill, notadamente conservador. Já Vilela, “conversa com convidados sobre diversos temas, com bom humor e sem preconceitos.”

A força desses debates em forma de combate está na atuação performática de cada uma das partes, inclusive do mediador, que cumpre função importante de animador e, quando necessário, apaziguador. Antes de tudo, cria-se uma expectativa de ver certas figuras se enfrentando como num ringue. Isso é criado a partir do clamor do público, que externaliza os seus desejos estimulando e legitimando os possíveis debatedores. No debate entre Gustavo Machado e Luiz Roxo, o apresentador, um sujeito visivelmente desqualificado e desinteressado pelo que ali se debatia, manifesta grande excitação quando começa um bate boca entre os debatedores, afirmando que agora sim o debate tinha começado. A função desses mediadores é análoga ao dos jornalistas que geralmente estão associados aos debates eleitorais. Sobre isso, destaco um trecho da análise de Bourdieu sobre os jornalistas:

Mas os jornalistas, que invocam as expectativas do público para justificarem esta política da simplificação demagógica (em tudo contrária à intenção democrática de informar, ou de educar distraindo), mais não fazem que projetar no público as suas próprias inclinações, a sua própria visão; nomeadamente quando o medo de aborrecer, e logo de fazer baixar os níveis de audiência, os leva a darem prioridade ao combate sobre o debate, à polemica sobre a dialética, e a porem tudo em ação de modo a privilegiarem o afrontamento entre as pessoas (nomeadamente os políticos) em detrimento do confronto entre os seus argumentos, quer dizer em detrimento do que constitui o próprio tema do debate, défice orçamental, descida dos impostos ou dívida externa. (BOURDIEU, 1998, p. 90)

A televisão, como pensa Bourdieu (1998), é pautada pela necessidade de entreter, por isso poucas vezes cai na dinâmica enfadonha da política, quase sempre “pouco excitante”, que está relegada a um certo desprezo por parte da audiência ávida pelo espetáculo, distração e “tagarelices insignificantes dos talk shows entre interlocutores patenteados e intercambiáveis”. (BOURDIEU, 1998). Aqui vale reproduzir alguns trechos de suas colocações.

Para compreendermos realmente o que se diz e sobretudo o que não se pode dizer nestas trocas de ideias fictícias, seria preciso analisar em pormenor as condições de seleção daqueles que nos Estados Unidos são designados como panelists: estarem sempre disponíveis, quer dizer sempre prontos a participar, mas também a jogar o jogo, aceitando falar de tudo (definição exata daquele a que, em Itália, se chama tuttologo) a responder a todas as questões, incluindo as mais bizarras e as mais chocantes, que os jornalistas se ponham; estarem dispostos a tudo, quer dizer a todas as concessões (sobre o tema, sobre os outros participantes, etc), a todos os compromissos e a todos os arranjos para fazerem parte do grupo e para se garantirem assim todos os ganhos diretos e indiretos da notoriedade midiática, prestígio nos órgãos de imprensa, convites para apresentação de conferências lucrativas, etc. (BOURDIEU, 1998, p. 89)

Isso tudo acaba impondo nessas dinâmicas uma visão cínica do mundo político, “espécie de arena entregue às manobras de ambiciosos sem convicções, guiados pelos interesses ligados à competição que os opõe” (BOURDIEU, 1998, p. 91), tendo como consequência a despolitização e o desencantamento da política principalmente de uma política emancipatória, popular e participativa. Por outro lado, há o fortalecimento das organizações burocráticas e seus representantes, condescendentes com os mecanismos de dominação presente na estrutura que passa a ocupar vencendo ou “perdendo” as eleições, já que quando perdem continuam ambicionando algum espaço no poder, tecendo previamente as relações necessárias para esse acesso.

No caso dos combates promovidos por programas jornalísticos, os maiores vencedores são os capitalistas da comunicação, que, apesar de produzirem majoritariamente banalidades e propaganda, ganham relevância do ponto de vista social quando promovem tais embates, ainda que estes estejam banhados na mais pura ganância e sejam pontuais não comprometendo o seu funcionamento mercantil.

Esse formato televisivo e todo o seu modo de funcionamento a partir da dinâmica do esvaziamento intencional de questões sociais importantes, sobretudo para os setores mais pobres da sociedade, foi absorvido, adaptado, repaginado segundo a dinâmica da comunicação da internet, mais especificamente em plataformas de vídeo como o Youtube. A tendência a promover encontros dessa natureza, entre representantes da direita e esquerda, a princípio fora uma busca intensa de grupos como o MBL, que surgiam entre provocadores profissionais como Arthur do Val que ia em manifestações, greves, ocupações, atos, etc., com o intuito de “desmascarar”, “relevar”, “expor”, “provar” e “combater” a partir de colocações capciosas aliado a uma montagem pensada especificamente no asfixiamento de qualquer possibilidade de um debate que proporcionasse a compreensão profunda sobre os motivos que moveram as pessoas até aquela aglomeração, abrindo possibilidade também para compreender os limites das organizações de forma crítica e contextualizada. A montagem nesse caso tem como função mutilar o essencial, fetichizando e espetacularizando a política em performances que resultaram em votações assustadoras para vereadores, deputados e demais cargos políticos.

Nesse sentido, o MBL funcionou como o legitimador oficial da polícia militar, que ao reprimir as manifestações agia no sentido de combater materialmente aquela incoerência coletiva, segundo suas concepções. Os provocadores do MBL agora debatem com militantes da esquerda em podcasts que alcançam milhões de visualizações e projetam ainda mais essas figuras em escala exponencial, solidificando suas posições na burocracia estatal, legitimando seus projetos políticos e influenciando uma parte expressiva da população de várias faixas etárias.

O próprio Arthur do Val foi eleito deputado estadual em 2018 como o segundo mais votado com 478 mil votos, o que o impulsionou a se pré-candidatar ao governo de São Paulo em 2022, sendo cassado por unanimidade em maio daquele ano por conta do escândalo sobre as mulheres ucranianas, que segundo a sua concepção “são fáceis porque são pobres”. Em maio desse ano (2024), Arthur do Val e Álvaro Borba do canal Meteoro Brasil debateram no canal do Vilela, configurando um verdadeiro cenário grotesco com Borba iniciando o espetáculo perguntando se Arthur do Val se considerava um fascista, de forma aparentemente séria, mas profundamente infantil e risível, o que, naturalmente, rendeu cortes que circularam nos shorts e boas risadas, configurando um entretenimento político.

Ocupar os canais grandes do Youtube, independente do viés político, é uma pauta dos setores progressista, socialista e comunista. Acredita-se no bom uso de tais mídias ainda que esses canais sejam geridos a partir de uma perspectiva reacionária e sirvam a essa finalidade. Assim, canais como o já citado Inteligência Ltda convida pessoas como Paulo Kogos, Humberto Matos, Inri Cristo, Rogério Skylab, Guilherme Boulos, Ferrez (uma verdadeira miscelânea), o que justifica o alto número de inscritos do canal e consequentemente a sua rentabilidade, tornando-se um chamariz da comunicação entendido popularmente como um espaço democrático e livre de ideologias reforçando a concepção de isenção política. Esse também é o papel de mediadores, relatores, apresentadores que administram os debates entre essas figuras entendidas genericamente como campos opostos.

No caso da CPI do MST também ocorre algo parecido. A CPI teve como presidente Zucco (PL/RS), 1° Vice-Presidente Kim Kataguiri (UNIÃO/SP), 2° Vice-Presidente Delegado Fabio Costa (PP/AL), 3° Vice-Presidente Evair Vieira de Melo (PP/ES) e relator Ricardo Salles (NOVO/SP). Logo na apresentação, Ricardo Salles comenta que Stedile estava na presença de bons advogados, inclusive sendo dois deles também advogados do próprio Salles. Seu papel, basicamente é representar os interesses do agro negócio, ou seja, a burguesia que comanda a posse das terras e ainda que a sua formal e afável condução aparente seriedade e isenção de interesses, todo seu foco está em reforçar e legitimar a criminalização das lutas em torno da terra no Brasil imputando às organizações dos trabalhadores todo tipo de desvio e usurpação, invertendo a leitura histórica de que as terras sempre pertenceram às classes dominantes, que super exploraram a força de trabalho impedindo o acesso à terra por meio da força bruta. Por isso, o seu discurso é cirúrgico e certeiro no que diz respeito tanto a representar os interesses da burguesia sem gerar alarde como conduzir a repressão e a justiça a agir com tranquilidade no processo de neutralizar as organizações dos trabalhadores sem terra. Por mais que a argumentação do Stédile seja superior aos manejos capciosos de Salles (e nesse ponto de fato não há comparação da formação intelectual entre Salles e Stédile), aquele se vê emparedado frente ao aparato que está montado contra qualquer tentativa de argumentação histórica e teórica de cunho científico sendo frontalmente desmontado pelo relator. Por isso, sua tentativa de trazer autores como Marx se torna inócua do ponto de vista de tensionar a seu favor ou embasar conceitualmente o debate ali colocado.

No Youtube, no entanto, tal prática não se restringe às eleições, apesar de também (em última instância) alimentar os processos eleitorais e ter uma relação direta na consolidação dessas figuras na burocracia estatal. Nesse sentido, os dois campos políticos (espectros bastante amplos e genéricos do ponto de vista conceitual) têm exatamente a mesma intenção: demonstrar superioridade moral e teórica, coerência com suas crenças ou orientações políticas, divulgação/propaganda das ideias liberais ou socialistas e angariar audiência (e consequentemente votos), o que é revertido em lucro, estrutura e consolidação de suas figuras em seus respectivos campos de atuação. Quando esses debates repercutem, há uma reprodução indefinida desses conteúdos por outros youtubers digamos, atentos à cauda do cometa.

Aqui vale ressaltar uma passagem do livro Estado, Democracia e Cidadania, a dinâmica da política institucional no capitalismo, de Nildo Viana:

Durante o período eleitoral, os principais partidos da burguesia e suas classes auxiliares se digladiam pela conquista do aparato estatal, sendo que muitas vezes a disputa principal ocorre entre setores do bloco dominante. Em certos casos a disputa principal ocorre entre bloco dominante e bloco reformista, sendo que este ganhando transfere uma parte sua para o campo adversário, passando a compor o primeiro, e parte do que sobra fica tentando manter vivo o segundo. (VIANA, 2015, p. 24)

Esses debates também trazem uma ideia de coragem de ambos os lados, sendo destemidos quando o assunto é enfrentar adversários políticos. Já o público é atraído pelo espetáculo que reúne dois extremos (supostamente), tornando-se atrativo por conta do clima sempre quente e tenso, alimentando um movimento de torcida que, durante o debate, se manifesta apoiando ou rechaçando, produzindo chacota e humilhações. Não a toa, os títulos desses vídeos carregam expressões como humilhou, destruiu, destroçou, deu aula, aniquilou, encurralou, provocou, lambuzou, passou vergonha, arregou, triturou, esmigalhou, entre outros termos que possa despertar a atenção de um público ávido por esse tipo de combate e performance.

Tais debates passam a ideia de que os debatedores são civilizados e capazes de administrar as divergências, o que traz alento e esperança, já que os lados passam a se entender e a vender uma imagem positiva ao público. O entendimento entre as partes resulta das regras, que são bem estabelecidas não abrindo possibilidades para outro tipo de uso. Já o público, por sua vez, é o alvo central. Participam como espectadores, reforçando a superioridade de um ou outro. São cativados pelas tensões, ao passo que se multiplicam, formando a base que legitimará os debates como necessários socialmente e até mesmo no que diz respeito às disputas políticas, ou seja, a ganhar adeptos para suas respectivas pautas.

Acredita-se que o esforço de ambos os lados em sentar frente a frente com o que supostamente acreditam ser o que há de pior na política e na sociedade seja necessário diante das disputas e possibilidades de crescimento que se abrem em tais debates. E de fato os números impressionam. É como aquela ideia de que “eu não concordo com você, mas defendo o direito de todos exporem suas concepções”, o que soa democrático, um valor liberal.

O campo da esquerda acredita, por exemplo, serem os liberais muito frágeis no que diz respeito a argumentação e exposição de ideias, o que os colocaria muito à frente no campo teórico e até mesmo da experiência política, sendo impossível perder o debate. É importante ressaltar que sempre há um ganhador e um perdedor a depender da performance, do confronto, das ideias defendidas e do barulho produzido pelo público. A ideia de superioridade nesse ponto acaba por tranquilizar os que defendem ideais socialistas. Já o campo da direita (quase sempre extrema-direita) acredita que o caráter caricato da militância de esquerda abre espaço para ideias mais sólidas no campo liberal. A caricatura, que é construída pelos próprios liberais e reverberada pelo senso comum, está presente em ideias como “o socialismo nunca deu certo em nenhum lugar do mundo” ou “se o capitalismo é tão ruim assim, por que ele funciona no mundo inteiro?”. Há diversas outras máximas como “o socialismo quer mais Estado, nós queremos superar essa burocracia” e “todo regime socialista é autoritário” ou ainda “socialista não pode ter iphone”, entre outras máximas que buscam excluir o debate histórico e teórico cimentando conclusões que aos olhos de qualquer um passa a ser óbvias. Isso acaba conduzindo os debates a um tom quase sempre irônico, com tiradas e deboches e sarros de toda espécie. Essas colocações já são previamente pensadas resultando em cortes que vão levar títulos chamativos com aqueles termos que mencionei anteriormente.

Pela natureza limitante do Youtube, a comunicação crítica, sobretudo as que buscam uma transformação da totalidade das relações, deve ter na plataforma uma importante etapa de divulgação de ideias e crescimento da audiência, assim como das formas de financiamento que não se limite à minguada monetização dos vídeos, sabendo que a depender dos interesses em jogo tudo pode evaporar no ar. Nesse sentido, é imperativo que se pense desde já quais serão as próximas etapas para a construção de uma comunicação sólida, capaz de contribuir para a mobilização popular na direção de uma luta livre das concessões, das instituições e burocracia típicas da forma de funcionamento da política legalista burguesa. Pelo que parece isso vem sendo pensado por muitos comunicadores e já temos algumas tentativas de construir outras plataformas como é o caso do Bombozila, que reúne ampla obra de documentários produzidos por cineastas de toda América Latina.

*Doutorando em História Social pelo PPGHS-FFP-UERJ

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