História da oposição bancária

Por Bancário Anônimo

 

8. Epílogo

8.1.Resumo dos capítulos anteriores

Ao longo dessa narrativa da trajetória da oposição bancária desenvolvemos algumas afirmações que é preciso sistematizar agora.

A greve de 2004 foi o resultado de uma conjuntura particular não só dos bancos públicos, mas da classe trabalhadora como um todo e do país, marcada pela chegada do PT ao governo federal para seguir aplicando o programa neoliberal, e a consequente ruptura das categorias organizadas com o partido. Depois da greve de 2004 essas mesmas condições não mais voltaram a se repetir, mas a oposição bancária permaneceu presa ao mito de 2004 e à espera de uma nova “rebelião de base” idêntica, que nunca mais veio.

Outro aspecto relevante foi a política do PSTU de aparelhamento da oposição bancária e construção de aparatos em detrimento da construção do movimento, que leva a um esvaziamento gradativo da oposição, à perda contínua de sua base social e também a rupturas das outras correntes com o MNOB. Essas correntes minoritárias da oposição, por sua vez, demoraram um tempo longo demais para atuar de forma unificada contra a política do PSTU e construir outra linha de atuação, permanecendo fragmentados em coletivos locais.

Nos anos entre 2009 e 2011, se tivesse havido uma atuação unificada dos setores de oposição por fora do MNOB, talvez tivesse sido possível apresentar para a categoria uma outra referência política e de organização. Não houve essa atuação, por falhas de entendimento de cada setor, e o resultado é que a oportunidade histórica de preservar o legado de 2004 e ao mesmo tempo apresentar uma nova referência de organização foi perdida. Passar os anos de 2009, 2010 e 2011 sem ter essa alternativa de organização nacional para a categoria foi um tempo longo demais, e o resultado foi que a oportunidade histórica aberta por 2004 se perdeu definitivamente.

Quando a FNOB surge em 2011 já era tarde demais para continuar com o discurso de 2004 e a eterna espera de uma nova “rebelião de base”, já era hora de elaborar uma nova estratégia, mas os coletivos todos ainda estavam presos ao ranço do balanço do MNOB, à crítica do PSTU e à tentativa de não repetir seus erros. A realidade do país e dos bancos já tinha mudado com a crise mundial de 2008-2009 e a resposta patronal a ela, que incluiu uma resposta específica dos bancos públicos sob controle do governo federal do PT, modificando a realidade dos bancários, e exigindo, por sua vez, uma modificação da estratégia e do discurso dos grupos de oposição.

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Essa reorientação estratégica da oposição não aconteceu. Em São Paulo o coletivo Bancários de Base demorou demais para se engajar por inteiro nos debates de reconstrução de uma oposição nacional; e quando surge a FNOB como tentativa de reorganização, houve muita lentidão em se estruturar e usar o peso dos sindicatos para financiar uma oposição nas bases que podem fazer diferença. Pouco depois, ainda em São Paulo, o Avante, Bancários! não se consolidou devido à política das organizações de priorizar a própria construção e não a construção do movimento.

Da decomposição do Avante, Bancários! surge em São Paulo de um lado uma “oposição unificada”, que não é um movimento real, mas um mero acordo entre as correntes para lançar chapas conjuntas; e de outro lado o Retomada Bancária, tentando manter acesa a chama do que tinha sido o Bancários de Base, a tentativa de um tipo de oposição que não reproduzisse as táticas e métodos superestruturais dos demais grupos, tentando voltar-se para a construção de uma rede de contatos na base da categoria.

A política superestrutural que prevaleceu por todos esses anos na oposição é resultado da hegemonia de concepções de tipo marxista leninista e/ou trotskista, que levam ao raciocínio de que o único problema no movimento dos trabalhadores é a “crise de direção”, que deve ser solucionada com a construção do partido (cada grupo diz que o seu partido será a nova direção necessária para o movimento). Para construir o partido e atrair militantes, é preciso denunciar os reformistas, burocratas, traidores, etc., para que os trabalhadores reconheçam quem realmente está a seu lado. Num primeiro momento, o MNOB raciocinava como se o problema da categoria fosse apenas a direção da Articulação/CUT/PT, portanto a solução seria a construção de uma nova direção, ou seja, o MNOB/Conlutas/PSTU.

Num segundo momento, os setores da oposição que rompiam com o MNOB entendiam que o problema era a direção do PSTU, portanto a solução seria a construção de uma nova direção, ou seja, Bancários de Base/FNOB ou Avante, Bancários! e Retomada. Mas o problema da categoria não é apenas de direção, mas de ausência de organização no nível dos locais de trabalho, o que deve ser reconstruído inteiramente. Acima de tudo, é preciso apostar nos trabalhadores como sujeitos, lhes dar voz e poder de deliberação. É preciso criar espaços de organização, espaços em que os bancários possam debater seus problemas e elaborar coletivamente as respostas, sem as soluções prontas e palavras de ordem artificiais dos partidos.

Todos os coletivos e projetos de organização da oposição bancárias que viemos mencionando fracassaram na tarefa de construir espaços de organização. Apesar de muito esforço e de algumas tentativas até brilhantes, todos esses projetos permaneceram marginais e secundários enquanto forças políticas dentro da categoria, sem conseguir o volume de mobilização necessário para enfrentar a burocracia sindical. A camisa de força organizativa do marxismo-leninismo e/ou trotskismo, com seu vanguardismo, rigidez e autoritarismo, impediu que se desenvolvessem os métodos necessários para alcançar os bancários e dialogar sobre a necessidade de organização. E sem a mobilização da categoria, a burocracia sindical continuou no controle do movimento, e os bancos seguiram aplicando seu processo de destruição dos direitos históricos conquistados pela categoria no seu passado de lutas.

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Vejamos agora como se deu o melancólico naufrágio final desses projetos de organização da oposição na campanha salarial 2018.

 

8.2. A campanha salarial 2018 e o fim da história da oposição bancária

Desde 2003, todos os acordos coletivos na história da categoria bancária vinham sendo aprovados depois da ocorrência de greves, com mais ou menos adesão, apesar da greve de 2004 ter sido a única em que os bancários se colocaram de fato como sujeitos do processo e desafiaram o poder da burocracia sindical e dos bancos. Em 2016 foi assinado um acordo bianual, com validade até 2018, de modo que em 2017 não haveria greve (fato do qual o BB se aproveitou, por exemplo, para lançar mais uma reestruturação tão logo a campanha de 2016 se encerrou). Depois de dois anos, a campanha de 2018 traria novamente a oportunidade de finalmente construir uma greve na categoria.

Mas mais uma vez a burocracia sindical colocou os aparatos do movimento a serviço dos interesses do seu partido. O fato de que o PT tinha sido desalojado do governo federal via impeachment em 2016 e de que portanto já vivíamos sob o governo “golpista” de Temer apareceu no discurso da burocracia como justificativa para uma suposta impossibilidade de se fazer greve. Nas entrelinhas isso pretendia fixar a narrativa de que era preciso eleger novamente um governo do PT, pois somente assim seria possível voltar a fazer greve ou obter reajustes e outras conquistas. Na realidade, a burocracia pretendia negociar com os bancos um acordo que garantisse os seus próprios interesses enquanto camada social parasitária, dispondo-se em troca a rifar os direitos dos trabalhadores.

O interesse primordial da burocracia era recuperar a verba perdida com a revogação da obrigatoriedade do imposto sindical pela reforma trabalhista. Para isso já havia sido feita uma assembleia em fevereiro de 2018, em que uma nova contribuição foi aprovada, mas obstáculos jurídicos impediram a sua implementação imediata. A solução dos burocratas foi negociar diretamente com os bancos a inclusão de um desconto sobre o salário dos trabalhadores no próprio acordo coletivo, em troca da garantia de que não haveria greve. Os bancos, por sua vez, aceitaram sem maiores problemas a proposta da burocracia. Ao contrário de algumas hipóteses mais catastrofistas, a Fenaban não aproveitou a oportunidade da reforma trabalhista para demolir de vez os direitos específicos da categoria bancária consagrados na sua convenção coletiva, como a jornada de 6 horas e o não trabalho aos sábados. No papel, todos os principais direitos foram mantidos, o que foi inclusive propagandeado como uma vitória pela burocracia.

Na verdade, os bancos podem se dar ao luxo de manter esses direitos no papel, pois no dia a dia estão se desfazendo paulatinamente do contingente de pessoal bancário abrangido pela convenção coletiva, substituído inexoravelmente por aplicativos, internet, centrais de telemarketing (como os “escritórios digitais” do BB), correspondentes bancários, terceirizados, etc. Atacar diretamente os direitos que constituem uma espécie de identidade profissional dos bancários não pareceu interessante para a patronal, que assim se absteve de rasgar de vez a convenção coletiva.

Os motivos dessa condescendência dos bancos podem ser vários, desde uma percepção da possibilidade de que isso não seria aceito facilmente pelos bancários e poderia provocar algum tipo de reação imprevisível (como as assembleias de 2004, agora num contexto de desmoralização da burocracia); até a incerteza no cenário político do país em torno do resultado das eleições presidenciais, em que a própria classe dominante não tinha uma candidatura de consenso. Qualquer que fosse o motivo, os bancos mantiveram a convenção mais ou menos intacta, ofereceram um reajuste semelhante aos anteriores (índice oficial de inflação), e mais uma vez propuseram um acordo bianual, de modo que com a aprovação do acordo uma nova campanha salarial dos bancários só viria a acontecer novamente em 2020.

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O teatro das negociações prosseguia, com algumas idas e vindas, boatos, vazamentos parciais, etc. Enquanto os bancos e a burocracia sindical realizavam suas conversas, aos bancários cabia esperar, o que foi gerando uma impaciência crescente entre os trabalhadores. É importante lembrar que com a reforma trabalhista havia caído também a ultratividade, ou seja, a prorrogação automática da convenção coletiva anterior, até que se aprovasse uma nova, caso a data base já tivesse expirado. Assim, se no dia 1º de setembro de 2018 não houvesse uma nova convenção coletiva assinada, os bancários ficariam sem os direitos próprios da categoria e reduzidos à CLT. Isso foi usado como terrorismo, tanto pelos bancos como pela diretoria do sindicato, para que os bancários aceitassem o acordo rebaixado que foi proposto, pois uma greve nesse cenário seria uma “aventura irresponsável”.

A diretoria do sindicato chegou a antecipar o calendário das Conferências e Congressos, para agilizar a formação da pauta e as negociações com a Fenaban, para supostamente antecipar a campanha. Mas essa mesma diretoria adentrou o mês de agosto sem um calendário de luta, uma data de assembleia, uma sinalização qualquer de que poderia haver alguma mobilização de qualquer tipo (que dirá uma greve), para de alguma forma arrancar algo melhor dos bancos. O sindicalismo de encenação que mencionamos acima já estava tão entranhado na categoria que ninguém estranhou essa conduta da burocracia sindical. A maior parte os bancários seguia acompanhando a campanha com o mesmo distanciamento de sempre, sem achar que poderia pessoalmente se envolver de alguma forma, encarando o processo como algo que o sindicato faz em seu lugar e que dispensa a sua participação. Mas isso vinha temperado com uma inquietação e impaciência, tendo em vista o fim da ultratividade e a necessidade de fechar logo um acordo.

Para muitos a campanha seria decidida na verdade pelas eleições presidenciais, já que elas decidem quem vai chefiar o poder executivo federal e portanto quem vai ser o patrão dos bancos públicos. Isso de alguma forma fazia com que os bancários no BB e CEF se eximissem de buscar alguma forma de participar da campanha, já que ela era vista como algo até menos importante que as eleições. Se não havia distanciamento total, havia no mínimo a postura de quem já sabe que a campanha na prática é um fingimento, conhecimento acumulado pelo aprendizado das campanhas anteriores. Mesmo saturados dessa encenação e em algum grau revoltados com ela e temerosos do futuro, os bancários não se dispuseram a tentar algo diferente. Uma mistura de revolta latente e medo estava no ar.

Entretanto, estranhamente, praticamente todos os grupos da oposição bancária se colocaram também em compasso de espera. Conforme o mês de agosto transcorria e não havia novidades nas negociações, os grupos de oposição todos também se omitiram pateticamente da tarefa de ao menos tentar mobilizar os trabalhadores. Se havia de algum modo a possibilidade de que uma mobilização dos bancários passasse por cima da burocracia de uma maneira semelhante ao que fizeram em 2004 (mesmo que num grau menor), alguma chance mínima de que isso acontecesse nas novas circunstâncias históricas pós-impeachment; isso só poderia ser verificado se os grupos da oposição se dispusessem a tentar tornar realidade essa mobilização, o que exigiria que se empenhassem em um grau muito intenso de atividade.

Ao contrário, não houve nenhuma espécie de atividade, seja panfletagem, atos, reuniões, publicações nas redes sociais, para instalar entre os bancários o clima de campanha salarial. E mais do que isso, para trazer à tona a necessidade de uma greve de verdade, diferente das greves de fachada dos anos anteriores, para proteger de fato os direitos da categoria. Entre os próprios grupos da oposição havia dúvida sobre qual seria a tática da burocracia, entre as hipóteses de encerrar a campanha sem greve ou fazer uma greve de fachada como sempre vinha sendo feito há uma década e meia. Na realidade, não eram apenas a burocracia petista e os bancos que estavam de olho nas eleições, mas também os próprios grupos de oposição, praticamente todos controlados por partidos políticos com interesses eleitorais. Todos tinham candidato, seja para as eleições do executivo ou do legislativo, e ninguém efetivamente tentou organizar uma campanha salarial de verdade.

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Quando as negociações se definiram, a proposta apresentada pela patronal trazia o mesmo formato dos anos anteriores (reposição da inflação nominal e manutenção dos direitos básicos), com alguns ataques mais sérios na pauta específica da CEF. Revelada enfim a proposta, a burocracia convocou assembleias no formado já conhecido de todos, usado para encerrar as campanhas salariais, ou seja, com três assembleias separadas para BB, CEF e bancos privados, no horário da noite (como sempre se faz quando se quer trazer a massa de gestores e fura greves) o que indicava claramente que a direção defenderia a aceitação do acordo. Somente então os grupos da oposição acordaram para a necessidade de defender a greve nas assembleias e tentaram fazer alguma agitação. Ao mesmo tempo, a diretoria do sindicato desenvolveu um operativo terrorista, percorrendo as agências e concentrações da região central da cidade, defendendo a aprovação do acordo como tábua de salvação diante do suposto apocalipse da perda iminente de direitos.

Como sempre acontece nos momentos de encerramento das campanhas, a direção do sindicato contou com a presença massiva de gerentes para votar a favor da proposta dos bancos. Na assembleia da CEF havia a expectativa da oposição de que poderia ser aprovada greve, pois a direção do banco havia feito ataques mais sérios na pauta específica. Mas o acordo foi aprovado nas três assembleias. O detalhe tragicômico da assembleia do BB foi um gerente tipicamente “coxinha” esbravejando contra a direção do sindicato porque queria aprovar o acordo, como o Banco tinha mandado, para que não houvesse greve, mas não queria aprovar a cláusula que autorizava o sindicato a fazer o desconto que substituiu o imposto sindical.

A campanha foi encerrada sem greve, pela primeira vez desde 2003. Os partidos todos puderam então se dedicar àquilo que era sua verdadeira prioridade, as eleições gerais. Nesse aspecto, o mais surpreendente foi o comportamento de algumas organizações frente o segundo turno das eleições presidenciais. Inicialmente o PSTU, que desenvolveu uma agitação pelo “Fora Todos” simultaneamente ao impeachment de Dilma em 2016, mas estranhamente defendeu voto no PT no segundo turno em 2018. E principalmente a Intersindical-A.S.S., que sempre se absteve de apresentar uma posição eleitoral ou defesa de alguma candidatura, em nome da concepção principista (e correta) de que o Estado é um instrumento dos nossos inimigos de classe e portanto não cabe disputá-lo; mas na última hora também defendeu voto no PT, mesmo quando a derrota já estava certa e era aceita pelo próprio PT, que construiu uma campanha em que não buscava de fato vencer. O objetivo do PT eram alguns governos estaduais e as bancadas parlamentares, e também reconquistar o controle sobre a esquerda que lhe fazia oposição, no que ele foi, dessa forma, muito bem sucedido.

 

8.3. Algumas conclusões políticas

Nesse contexto de giro total para as eleições, não foi nada surpreendente tomar conhecimento (o autor se absteve de presenciar fisicamente) de que todos os grupos da oposição, PSTU, Resistência e outros integrantes do PSOL, Retomada, MRT, independentes de Osasco, etc., participando de um “Comitê Ele Não” reunido na sede do sindicato, inclusive com a presença de alguns de seus diretores (ou seja, dos mesmos burocratas empedernidos contra os quais lutamos todos esses anos). Também não foi nada surpreendente que, passadas as eleições, esses burocratas tenham se retirado do comitê, girados agora para a campanha do “Lula Livre”. Mas isso parece ter surpreendido alguns dos participantes do comitê, que se indignaram com a saída à francesa dos diretores.

[Obs. Desde a pandemia, o autor deixou de acompanhar as peripécias de cada coletivo da antiga oposição e seus principais integrantes, com a visão de que permaneceram presos a uma militância de tipo caudatária, dedicada a acompanhar os eventos superestruturais, pautada pelo calendário da direção sindical, pelas campanhas salariais e eleitorais. Com isso, esses militantes são vistos pela categoria como partes da própria burocracia, independente de terem cargo ou não. São vistos indistintamente como “o pessoal do sindicato”. Arcam com o ônus do desgaste e descrédito da instituição sindical, sem o bônus de ter algum poder de decisão]. E vão estranhar, lamentar, espernear e se maldizer porque os bancários não entendem a diferença entre eles e o próprio PT. O estereótipo do “sindicalista” e do militante está grudado em todos indistintamente, e está estigmatizado com a pecha de partidários ou agentes do Lula, ou seja, corruptos, vagabundos, oportunistas, duas caras, hipócritas, demagogos, etc.

O limite de todos os projetos de oposição que discutimos acaba sendo essa incapacidade de se diferenciar da burocracia sindical e a insistência em se apresentar como uma diretoria alternativa. Na prática, isso é lido pelos trabalhadores como se a oposição fosse um grupo de participantes do mesmo jogo, que seguem as mesmas regras e que farão o mesmo percurso que a atual burocracia existente. Ao invés de procurar construir um espaço em que os trabalhadores possam se reconhecer e reconstituir organicamente uma identidade coletiva a partir da experiência comum, os grupos de oposição se colocam todos como aspirantes à direção do sindicato, como pretendentes a gestores da mesma estrutura, o que implicitamente os denuncia aos olhos dos trabalhadores como mais um grupo que vai repetir a mesma trajetória e a mesma narrativa.

A divergência conceitual que estamos tentando desvendar pode ser expressa por meio da disjuntiva entre “alternativa de direção” e “espaço de organização”. Uma alternativa de direção é uma direção alternativa, ou seja, uma diretoria de sindicato em potencial, esperando no “banco de reservas” para entrar em campo. Ao se conceber a oposição bancária como alternativa de direção, fica explícito que a finalidade última do movimento é se tornar diretoria do sindicato. Tornar-se diretoria do sindicato significa, de uma vez só, aceitar a estrutura sindical vigente no país, a legislação de greve, os limites das negociações, a interferência do Estado na organização dos trabalhadores, a justiça trabalhista, etc. Ao mesmo tempo, deixa aos trabalhadores o papel de uma “base” passiva, que espera para ser dirigida, que depende da entidade sindical e de sua direção para se mover, que não precisa de iniciativas próprias, etc.

Quando se fala em “espaço de organização”, não fica determinado de saída o objetivo da organização, que pode ser desde a luta nos locais de trabalho até a luta para transformar a sociedade como um todo. Um espaço de organização é um espaço em que os trabalhadores se organizam e decidem o que fazer a partir disso, que pode ou não incluir a decisão de lançar uma chapa para a direção de alguma entidade. O fundamental é que os trabalhadores sejam os protagonistas. No conceito de um espaço de organização está implícito que os espaços existentes, sindicatos e partidos, não servem aos trabalhadores, que precisam de um espaço próprio, em que não sejam vistos como mera “base”, “massa” ou objeto de manipulação de interesses outros ou programas abstratos de algum grupo que se coloca como portador da verdade ou salvador da pátria.

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Desde o início das nossas divergências na oposição bancária, atuamos buscando construir algo próximo disso que definimos como espaço de organização, contra a prática das demais organizações de se colocar como alternativa de direção. Essa divergência chegou a ser explicitada exatamente nesses termos (alternativa de direção X espaço de organização) nos debates internos do coletivo Bancários de Base por volta de 2010, mas naquele momento foi mencionada como uma nuance secundária, sobre a qual a discussão não se aprofundou. Conforme o tempo se passou e todos os projetos da oposição desmoronaram, acabou ficando provado que essa diferença na verdade era crucial. A postura dirigista de todos os grupos que se colocaram como alternativa de direção, seja o PSTU, MAIS, MRT, MRS, Espaço Socialista, etc., se apresentando como a organização que detém a verdade e convida aos trabalhadores para se somar ao seu time, serviu muito mais para afastar os trabalhadores do que para construir um movimento real.

Por último, seria impossível terminar sem mencionar o destino do Retomada, último grupo organizado do qual o autor participou. Tratava-se aparentemente do grupo mais avançado, no sentido explicitado acima, de buscar construir prioritariamente um espaço de organização dos trabalhadores. Entretanto, a política da Intersindical-A.S.S. em essência não é diferente da dos demais partidos, pois no final das contas busca conduzir os processos de organização para a constituição de chapas para as eleições sindicais. A diferença entre este setor e as demais centrais e partidos como Conlutas, PSTU, PSOL, PCB, e demais grupos é apenas o fato de que se apresenta de maneira muito mais inteligente, justamente com a face pública de um projeto que não está associado a nenhum partido. No caso do Retomada, o grupo de apresenta como um projeto “de bancário para bancário”. Com essa linguagem e método de aproximação, conseguem ser uma expressão aparentemente mais autêntica dos processos de organização da classe, de modo que os trabalhadores se identificam mais facilmente, o que explica o sucesso dessa corrente em termos de crescimento nos últimos anos.

Entretanto, o projeto estratégico por trás desses métodos acaba sendo o mesmo, a montagem de chapas para eleições sindicais, o que exige, em última instância, que se tenha o mesmo tipo de controle vertical sobre os organismos criados. Sendo assim, os militantes da Intersindical-A.S.S. expulsaram o autor e mais um companheiro do Retomada pelo delito de ter se atrevido a sugerir um texto para ser avaliado nos fóruns internos do coletivo. Este texto seria a evidência de que os dois expulsos mantinham algum tipo de “projeto secreto” de uma suposta “outra organização” que estaria tentando “dar a linha” no Retomada. Para organizações do tipo partido (papel desempenhado no caso pela A.S.S.), que raciocinam na lógica marxista leninista e/ou trotskista, como aspirantes a dirigir o movimento, qualquer grupo de pessoas que se reúne para conversar é automaticamente, também, um outro partido, que existe, portanto, para tentar dirigir o movimento. Uma vez que a sua concepção é dirigista, vanguardista, vertical e hierárquica, esses grupos imputam a qualquer outro grupo a mesma concepção. Logo, qualquer espécie de formulação alternativa tem que ser tratada como adversária e imediatamente delimitada, isolada e de preferência expurgada.

Não poderia deixar de faltar, como é praxe nessas circunstâncias, o lamentável uso do “militômetro” para desqualificar os expulsos (o discurso de que “só nós cumprimos tarefas e construímos o coletivo”). O curioso é que os próprios militantes da Intersindical-A.S.S nunca discutiam com os bancários que se reuniam no Retomada o que é a própria Intersindical-A.S.S. e o que são as demais correntes do movimento, quais as diferenças entre eles, etc. O Retomada “pertencia” à Intersindical sem que os seus frequentadores soubessem, pois esse vínculo não era explicitado, ao mesmo tempo que não era também nem oculto nem dissimulado, numa espécie de “aparelhamento automático” por omissão ou por “autismo político”.

 

8.4. Algumas palavras sobre as perspectivas da luta no cenário atual

Não deveria ter surpreendido ninguém o fato de depois de décadas de monopólio da esquerda no movimento da categoria bancária, seja como direção (Articulação/CUT/PT), seja como “alternativa de direção” (PSTU/MNOB/Conlutas, FNOB, Avante, BdB, etc.), os trabalhadores tenham se voltado para a extrema direita e a candidatura de Jair Bolsonaro. Para essa esquerda dirigista há um lapso cognitivo no comportamento de uma pessoa que trabalha em uma empresa pública e vota em um candidato cujo superministro da economia tem como único programa privatizar as empresas públicas e entregar patrimônio público ao mercado financeiro. Mas o lapso cognitivo foi cometido pela própria esquerda, que durante essas décadas não percebeu a necessidade de uma propor aos trabalhadores não um “governo de esquerda”, mas uma mudança radical, abrangente, totalizante, que diga respeito a todas as dimensões da vida do indivíduo. A narrativa bolsonarista do combate à corrupção, ao comunismo, aos privilégios, oferece exatamente isso, uma perspectiva totalizante e radical de mudança, uma espécie de cruzada.

É obvio que essa mudança não vai se realizar, a não ser como um aprofundamento da brutalidade e da violência da competição de todos contra todos. Num cenário de crise econômica crônica, desemprego, deterioração do padrão de vida, sucateamento do serviço público, desmoralização e descrédito de praticamente todas as instituições, inclusive a mídia e as universidades, com a possível exceção das forças armadas, nada mais adequado do que um ex-capitão como gestor do caos em instalação. Se não se discute uma alternativa ao capitalismo, mas tão somente formas de administração desse sistema, o que vamos ter é uma forma de capitalismo cada vez mais brutal que a outra. Não há mais volta ao passado nas circunstâncias de uma crise econômica que se arrasta há anos no país, e que pode ser ainda mais amplificada por mais uma recorrência da crise mundial do capitalismo, a qual paira no horizonte. E não há mais volta ao passado também porque, ao contrário do que querem nos fazer crer o PT e todos os seus satélites de primeira e de última hora, esse passado não era nenhum mundo encantado de prosperidade e direitos para todos.

A instalação da realidade social em que vivemos não teria sido possível sem a participação ativa do PT no comando do Estado ao longo de 3 e ½ mandatos presidenciais, e também como agente direto de desmonte e esterilização de todas as formas de luta construídas pelos trabalhadores ao longo de décadas. A transformação do sindicalismo bancário em instrumento de contenção das lutas, tal como viemos descrevendo, foi somente uma das faces particulares de um processo geral que atingiu o conjunto dos movimentos sociais. O esgotamento da forma petista de gestão do conflito social só veio à tona em 2013, com a revolta dos setores mais jovens e precarizados dos trabalhadores urbanos. Mas essa revolta revelou por outro lado um apassivamento dos trabalhadores organizados que tinham sido as bases do petismo durante décadas.

A mesma operação de esmagamento gradual da categoria bancária que viemos descrevendo se processou no conjunto dos setores organizados dos trabalhadores e também em camadas médias de profissionais liberais, assalariados de alta renda, segmentos intelectualizados, etc. Teologia da prosperidade, meritocracia, empreendedorismo, individualismo, ressentimento, frustração e ódio grassam no terreno baldio da consciência social que o PT regou durante décadas com as miragens e panacéias do neodesenvolvimentismo, da “nova classe C”, da cidadania do crédito, etc. Esses mesmos setores que tinham sido a base histórica do PT se converteram em base da oposição de direita, a partir da qual os setores reacionários partiram para a ofensiva. No novo governo assim constituído, contra-reformas legais sacramentam um momento de retrocesso dos direitos dos trabalhadores, dos serviços públicos, das condições de vida em geral.

Aquela “cruzada transformadora” que o bolsonarismo prometeu na verdade se revela uma operação de guerra dos setores médios enraivecidos contra o conjunto dos trabalhadores, tanto organizados como precarizados, que supostamente tiveram ganhos de forma “indevida” ou vantagens ilegítimas na competição social graças às artimanhas do petismo. Uma guerra que se desenrola em torno de migalhas, enquanto os tubarões do mercado financeiro abocanham o que resta de patrimônio público, verbas públicas, previdência pública, etc. A campanha eleitoral disputada em torno de temais morais e eixos como corrupção, violência e criminalidade (tratados também de maneira moralista e estereotipada, não a partir de suas causas sociais) serviu como cortina de fumaça para acobertar o saque aos fundos públicos.

Enquanto as atenções estiverem voltadas para a superestrutura política e para uma polarização ideológica artificial os trabalhadores verão mais e mais derrotas. Enquanto as palavras de ordem do movimento forem idiotices como “Não vai ter golpe”, “Fora Temer”, “Ele não” e “Lula livre”, o ataque direto às condições de vida dos trabalhadores seguirá implacável. Restará às organizações classistas e combativas a tarefa de organizar lutas que tratem dos interesses reais da classe trabalhadora, como a de evitar a aprovação da reforma da previdência, evitar a aplicação da reforma trabalhista, reverter a degradação dos serviços públicos, etc. A despeito da polarização política superestrutural, a tarefa é organizar os trabalhadores em torno de reivindicações concretas, para construir novos espaços de organização, redes de solidariedade e um protagonismo efetivo dos trabalhadores em sua luta.

História da oposição bancária

A publicação deste artigo foi dividida em 8 partes e um glossário, com publicação semanal:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6
Parte 7
Parte 8
Glossário

 

A arte em destaque é da autoria de Serge Brignoni (1903-2002). As artes no corpo do texto são da autoria de Milos Pavlovic (1995-).

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