Por Sandro Mezzadra
1.
Diante da obra de Toni Negri, composta por dezenas de livros e centenas de artigos escritos em um período de setenta anos, a busca por alguns critérios interpretativos é tão necessária quanto árdua.
Em uma bela entrevista de 2018, editada por Vittorio Morfino e Elia Zaru, Negri basicamente aceitou a divisão em três fases principais de seu pensamento, marcadas respectivamente pela presença dominante de Marx, pela de Espinosa e pelo encontro com Deleuze, Guattari e Foucault [1]. No entanto, não se pode deixar de notar que o Marx de Negri na década de 1960 é muito diferente daquele da década de 1970, enquanto seu trabalho sobre Espinosa está também temporalmente entrelaçado com seu diálogo com a filosofia francesa contemporânea. Entre a publicação do primeiro grande livro de Negri sobre Espinosa, escrito na prisão e publicado em 1981, e sua morte, passaram-se mais de quarenta anos, marcados especialmente por seu encontro com Michael Hardt e a escrita de Império que, também de um ponto de vista filosófico, constitui um importante ponto de inflexão. Além disso, desde o início, o trabalho intelectual de Negri tem sido uma expressão irredutível de uma militância e de uma paixão política radicais – não por acaso, ele titulou sua autobiografia História de um comunista: e aqui outras voltas e reviravoltas se apresentam para marcar as etapas da sua vida, os Quaderni Rossi, Potere Operaio, a Autonomia, as grandes greves francesas de 1995, o movimento global entre Seattle e Gênova, a participação nas lutas e debates latino-americanos dos últimos vinte anos, para citar apenas alguns. É nesse sentido que, em suas próprias palavras, “a presença de Marx une todas as fases” do seu pensamento [2].
Ao traçar um breve esboço da formidável trajetória de Negri, gostaria de tentar entrelaçar o plano da teoria e o plano da militância que ele nos ensinou a manter unidos, embora em condições que, no decorrer de sua vida (tanto por razões históricas quanto biográficas) também mudaram drasticamente. Vamos começar lembrando que Negri não nasceu marxista. No contexto cultural da Universidade de Pádua, onde se matriculou em 1952 na Faculdade de Filosofia, seus estudos foram orientados para temas clássicos da filosofia alemã, aos quais dedicou seus três primeiros livros: o historicismo do jovem Hegel, o formalismo jurídico de Kant e suas reviravoltas pós-revolucionárias [3]. Essas foram obras importantes, destinadas a deixar rastros duradouros. De Wilhelm Dilthey, em particular, Negri retomou um conceito de historicidade e expressão histórica que marcaria seu pensamento por muito tempo, enquanto suas pesquisas sobre as origens do formalismo jurídico formariam uma base sólida para seu fundamental trabalho sobre crítica do direito nas décadas de 1960 e 1970. A filosofia do direito, na declinação particular que, naqueles anos, nas universidades italianas, assumiu o nome de Doutrina do Estado, foi, de qualquer forma, o principal terreno em que se deu o trabalho teórico de Negri entre os anos 1950 e o início da década seguinte. Foram sua militância política socialista e, acima de tudo, seu encontro com a classe operária em Porto Marghera [4] que determinaram uma primeira virada em seus estudos. “Fui comunista antes de ser marxista”, dizia Negri com frequência. Mas ele se tornou marxista pouco tempo depois, estudando especialmente o primeiro livro d’O Capital e verificando suas categorias e análises na fábrica por meio da enquete [5] e da troca contínua com aqueles operários que, no Vêneto [6] do início da década de 1960, estavam descobrindo a exploração e reinventando a luta de classes. O resultado foi uma leitura de Marx muito diferente da leitura frankfurtiana ou da althusseriana, para mencionar duas das mais influentes na Europa na década de 1960.
Essa foi a época em que nasceu o operaismo italiano, por meio de periódicos como o “Quaderni rossi” (1961-1966) e o “Classe operaia” (1964-1967), dos quais Negri participou apaixonadamente, em diálogo com -entre outros- Raniero Panzieri e Mario Tronti, Romano Alquati e Guido Bianchini, e contribuindo com suas intervenções para delinear o perfil de um novo sujeito operário. Enquanto isso, sua leitura de Marx também reorientou seu trabalho no terreno do direito, como pode ser visto, em particular, em um longo ensaio sobre trabalho e Constituição, escrito em 1964 mas publicado mais de dez anos depois [7]. Adotando sugestões fundamentais da doutrina constitucionalista italiana e alemã, Negri acompanha as várias maneiras pelas quais o capital é forçado a enfrentar a insurgência operária e proletária, transferindo para o Estado e a Constituição – e, portanto, socializando – o conjunto de contradições que o constituem. Assim, foram lançadas as bases para as intervenções da década de 1970 nos debates sobre a teoria marxista do Estado, enquanto um conjunto de estudos históricos sobre a origem do Estado moderno seria retomado muitos anos depois em um livro como Il potere costituente [8]. Esse é um dos aspectos mais importantes da obra de Negri, que combina a rejeição militante do reformismo socialista em relação ao Estado com a identificação de certas linhas de crise deste último (particularmente na figura que ele define como “Estado-plano”) que somente no contexto dos debates sobre a globalização emergiriam finalmente com clareza.
2.
Se o encontro com a classe operária em Marghera já havia introduzido uma descontinuidade nessa primeira fase da trajetória de Negri, instalando em seu centro o diálogo com Marx, o biênio vermelho de 1968/69 – a combinação da insurgência estudantil global e a insurgência operária nas fábricas do norte da Itália – determinou um novo ponto de inflexão, repleto de consequências ao nível político, teórico e até biográfico. No “longo 68 italiano” a militância se tornou para Negri, assim como para milhares de mulheres e homens, um critério para a reinvenção da vida. Há aqui uma continuidade com a experiência “operaista” dos anos anteriores, mas também há elementos novos. A militância se tornou então – com o nascimento do “Potere operaio” – definitivamente política, a partir da convicção de que a possibilidade de uma revolução comunista estava de fato aberta na Itália. No espaço de poucos anos, dentro dessa organização, ocorreu um debate, certamente não desprovido de simplificações e acelerações voluntaristas, mas extremamente avançado em temas como a relação entre as lutas de massa e a ação partidária, as transformações da composição de classe na esteira das grandes lutas de 1969 e o uso da violência. A história do “Potere operaio” chegou ao fim em 1973, quando, por iniciativa de Negri e de algumas assembleias autônomas de fábricas no Norte, o desenvolvimento da “Autonomia operaia” ganhou impulso.
Na virada dos anos 1960 e 1970, Negri transformou o Instituto de Doutrina do Estado da Universidade de Pádua em uma espécie de cérebro coletivo a serviço do movimento. É uma história ainda a ser escrita, na qual participaram pessoas de releve como Alisa Del Re e Maria Rosa Della Costa, Luciano Ferrari Bravo e Ferruccio Gambino. A prática da enquete foi realizada por meio de projetos de pesquisa de absoluta proeminência acadêmica e, ao mesmo tempo, resolutamente militantes, enquanto duas séries da editora Feltrinelli – os “Materiali Marxisti” e os “Opuscoli Marxisti” – garantiram a publicação dos textos produzidos no Instituto de Pádua (incluindo os de Negri) e a documentação do debate internacional. Foi dentro das atividades do Instituto que Negri realizou um curso (“33 palestras”) sobre Lênin em 1972/73. O livro que reúne essas palestras oferece um ponto de vista particularmente eficaz sobre sua militância política naqueles anos, também porque – concebido a partir da experiência do “Potere operaio” – foi publicado em 1977, quatro anos após a dissolução do grupo e enquanto a experiência da Autonomia Operária Organizada estava em pleno andamento [9]. A Fabbrica della strategia, aliás, exalta, contra qualquer leitura dogmática do leninismo, a tendência de Lênin à inovação teórica e política, e propõe um conjunto de considerações originais sobre a relação entre a dinâmica autônoma das lutas e sua direção política, tema que naquele momento estava no centro dos debates no movimento italiano.
Os anos da Autonomia são, para Negri, que se muda para Milão e coordena o trabalho editorial da revista “Rosso”, tão frenéticos do ponto de vista político quanto férteis do ponto de vista teórico. A hipótese do “operário social” capta com grande antecedência o fim da centralidade da fábrica e tenta lê-lo de forma ofensiva, como uma nova oportunidade, apostando na distensão social – nos bairros, no setor terciário, nas formas de vida – das lutas e dos comportamentos operários que colocaram o “fordismo” em crise [10]. Marx é aqui adaptado em função de uma leitura antagônica da socialização da relação do capital, de acordo com uma linha interpretativa estabelecida nos seminários parisienses de 1978 e depois em Marx além de Marx [11]. Se, já na década de 1960, como mencionado acima, a dimensão da subjetividade operária estava no centro da pesquisa de Negri, agora – fora da fábrica – trata-se de compreender uma pluralidade de processos de subjetivação que deslocam a análise marxista e a política comunista. Registrar essa desorientação e, ainda assim, insistir tenazmente na requalificação de ambas: esse é, afinal, o programa de trabalho que Negri seguiria nas décadas seguintes. Sua pesquisa nos anos 1970, além disso, apresenta outros aspectos destinados a marcar seu pensamento por muito tempo: para citar apenas um, a retomada do tema operaista da “recusa do trabalho” – da sabotagem, da greve, da ação direta – é carregada, mesmo em seus escritos mais militantes, de tons afirmativos, que prefiguram seu trabalho posterior em torno do conceito de “poder constituinte”. A recusa do trabalho, lemos, por exemplo, em Il dominio e il sabotaggio, é o “conteúdo do processo de autovalorização”, cujo objetivo é “a liberação total do trabalho vivo, na produção e na reprodução, é a utilização total da riqueza a serviço da liberdade coletiva” [12].
3.
A prisão de Negri em 7 de abril de 1979 foi parte de uma grande operação judicial contra o movimento autônomo, que levou centenas de militantes à prisão por acusações hiperbólicas e capciosas. Não é necessário reconstruir aqui esse evento, que, no entanto, constitui um ponto de inflexão de grande importância na história italiana [13]. É mais importante enfatizar que as prisões de 7 de abril foram realizadas no marco de um contexto de militarização do conflito pelas organizações armadas e de um recuo geral das lutas operárias, simbolizado no ano seguinte por uma derrota histórica na Fiat. Assim, o “longo 68 italiano” terminou, e Negri viveu na prisão (até sua eleição pelo Partido Radical em 1983) o início de uma verdadeira “contrarrevolução”, destinada a reorganizar as relações sociais e políticas gerais no país, em uma conjuntura internacional marcada pelas vitórias de Margaret Thatcher na Inglaterra (1979) e Ronald Reagan nos Estados Unidos (1980). Nas duríssimas condições da prisão daqueles anos, Negri não parou de trabalhar. Seu primeiro livro sobre Espinosa, A anomalia selvagem, foi escrito nas prisões de segurança máxima e também constitui um diário filosófico das lutas dos anos anteriores e uma tentativa de estabelecer novas bases para os anos vindouros [14]. Certamente, Espinosa será um ponto de referência fundamental para Negri dali para frente, basta pensar na categoria de “multidão” com a qual ele começou a trabalhar no próprio livro de 1981: mas o pensamento de Espinosa é incluído por ele em um eixo que vai de Maquiavel a Marx, configurando uma alternativa materialista radical dentro do moderno. A anomalia selvagem marca uma descontinuidade em seu caminho, mas seu abandono da dialética e sua insistência na dimensão ontologicamente constitutiva da política haviam sido preparados por seu diálogo com os Grundrisse de Marx e por sua própria reflexão sobre os conceitos de autonomia e autovalorização – bem como na dimensão da temporalidade [15].
Ao chegar a Paris para escapar de uma nova prisão em 1983, Negri iniciou – no exílio – outro período particularmente frutífero de sua vida. Seu diálogo com o pensamento de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari, e sua amizade com este último em particular, levou a uma profunda renovação de seu pensamento [16]. Do ponto de vista filosófico, os primeiros anos em Paris foram caracterizados pelo trabalho ao redor de uma ontologia afirmativa, incluindo trabalhos sobre Giacomo Leopardi e o Livro de Jó, enquanto um volume de 1987 – Fabbriche del soggetto – retomou sua reflexão sobre a categoria marxiana de subsunção real, explorando suas implicações diante do novo capitalismo emergente [17]. Mas esses também foram os anos em que Negri preparou um de seus livros mais importantes, O poder constituinte, uma emocionante reconstrução do pensamento e da prática revolucionária que atravessam e rompem a modernidade ocidental. Os já mencionados temas abordados na pesquisa sobre as origens do Estado moderno retornam aqui filtrados pela nova sensibilidade amadurecida pelo estudo de Espinosa. Uma tensão muito poderosa investe conceitos como democracia, soberania, constituição, enquanto o constituinte é afirmado como uma práxis que atravessa grandes textos e levantes revolucionários, mantendo a possibilidade de revolução constantemente aberta [18].
Estes anos parisienses, no entanto, também foram marcados pelo trabalho junto com pesquisadores como Antonella Corsani e Maurizio Lazzarato, com quem Negri relança (apropriadamente atualizando-o) o método operaista da enquete. O resultado foram trabalhos de investigação muito importantes sobre as transformações do trabalho e dos espaços públicos na região metropolitana de Paris, em que conceitos como o de “bacia de trabalho imaterial” foram postos à prova, como primeiro passo numa análise das transformações de capital e trabalho após o fim do fordismo, que Negri continuaria até os seus últimos anos, entre outras coisas com atenção constante à dimensão metropolitana [19]. É em torno destes temas que uma nova temporada da militância de Negri tomou forma. A fundação com Jean-Marie Vincent e Denis Berger, em 1990, da revista “Futur Antérieur” estabeleceu, entretanto, uma plataforma de diálogo entre o marxismo italiano de derivação operaista e algumas das vertentes mais interessantes do marxismo francês, tornando possível uma intervenção política aberta a grandes temas dos debates internacionais (em “Futur Antérieur”, para citar apenas dois exemplos, apareceram textos de Donna Haraway e de Lula, o futuro Presidente do Brasil). As grandes greves francesas de 1995 constituíram então um passo fundamental para Negri, que as sentiu como uma verificação de algumas das suas hipóteses de trabalho e como uma prefiguração de uma nova forma de greve metropolitana [20]. Nesse período, ele havia também retomado relações com uma parte do movimento autônomo italiano (a autonomia veneta) e, através de uma série de seminários realizados em Paris, foram lançadas as bases para uma nova possibilidade de intervenção política também na Itália [21]. Quando, em 1997, Negri decidiu regressar a Itália, ele sabia que o esperava a cadeia, mas contava com os novos movimentos que se desenvolveram nos anos anteriores não só para tentar fechar as contas judiciais dos anos setenta, mas sobretudo para abrir um novo ciclo de lutas. Uma revista como “Posse”, que Negri ajudou a fundar e dirigir após o seu retorno a Itália, pretendeu verificar esta hipótese, que seria confirmada em particular nas jornadas de Gênova contra a cúpula do G8 em julho de 2001 [22].
4.
Se nos lembrarmos das tonalidades melancólicas com as quais grande parte da esquerda discutiu a “globalização” e o “neoliberalismo” na década de 1990, podemos compreender a ruptura provocada pela publicação de Império [23]. Uma narrativa nova, ousada e grandiosa inverteu o significado dos processos de globalização, indicando que o impulso conjunto das lutas operárias e das lutas contra o colonialismo e o imperialismo foi o motor essencial que, no século XX, impulsionou o capital a tornar-se mundo. Escrito em conjunto com Michael Hardt, que Negri conhecera enquanto trabalhava na tradução inglesa da Anomalia selvagem vários anos antes em Paris, Império certamente não negava a dureza e a violência da dominação do capital, mas – e aqui reside uma característica distintiva de toda a trajetória de Negri – caminhava em busca de um ponto de vista subjetivo que pudesse efetivamente garantir sua crítica e até mesmo sua derrubada. Neste sentido, a figura da multidão foi definitivamente colocada no centro da pesquisa de Negri, que juntamente com Hardt repensaria de maneira aberta a sua relação com a classe [24]. Escrito na segunda metade dos anos noventa, numa situação completamente diferente da atual, Império pode parecer um livro datado em vários pontos (por exemplo, a relação entre capital e guerra, ou o imperialismo). Mas a descrição dos processos de unificação capitalista a nível global permanece poderosa e sugestiva, assim como a tensão no sentido da abertura de novos espaços de ação política, o que explica a sua ampla ressonância dentro do movimento global que tomou forma entre Seattle, Porto Alegre e Gênova. Em particular, a tese segundo a qual as relações políticas e jurídicas internas devem ser analisadas em analogia com a dimensão supranacional lança as bases para uma inovação radical na forma de compreender o internacionalismo, para além da lógica de uma aliança ou solidariedade entre movimentos de base nacional [25].
Este último ponto oferece uma chave para a compreensão de um aspecto importante da biografia de Negri nos últimos vinte anos. Quando obteve novamente o passaporte, em 2003, tinha setenta anos: também com base no sucesso do Império, começou a viajar pela Europa e depois foi para o Canadá, a China e muitos outros lugares; somente nos Estados Unidos ele não teve permissão para entrar. Acima de tudo, ele viajou pela América Latina, primeiro pelo Brasil, mas depois pela Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela. Eram os anos dos novos governos “progressistas” latino-americanos e Negri participou dos debates que acontecem tanto dentro dos governos como nos movimentos que abriram espaço para essas experiências políticas. Através de viagens, muitos encontros e leituras, ele estudou essas experiências para tirar lições que também podiam ser traduzidas em diferentes contextos, como o italiano e o europeu: em termos de método, houve aqui uma inovação profunda em comparação com a forma como o próprio operaismo concebeu as relações entre as diferentes áreas do mundo. Outro importante livro escrito com Hardt, Bem-estar comum, registra os deslocamentos e enriquecimentos que esta atitude também produziu ao nível da teoria [26]. A procura de novos espaços políticos dentro dos quais conduzir a luta pela libertação num tempo agora global levou-o a acompanhar cuidadosamente os processos de integração em curso na América Latina, na tentativa de estabelecer um conjunto de ressonâncias com o seu europeísmo radical, centro de muita controvérsia na França pela sua posição a favor da Constituição Europeia no referendo de 2005 [27].
No entanto, o encontro com Hardt marca indelevelmente os últimos vinte e cinco anos de vida de Negri. Os muitos livros assinados em conjunto, sobre a guerra e a democracia, sobre a multidão e sobre a assembleia, tiveram efeitos que transformaram parcialmente o seu próprio estilo de escrita [28]. E acima de tudo propuseram a Negri um conjunto de temas sobre os quais a sua pesquisa continuou tanto individualmente como sobretudo no âmbito das redes (como Uninomade e Euronomade) que ajudara a construir a partir de Itália e França – onde finalmente voltou a viver, em Paris – para relançar o método operaista da enquete. Com o passar dos anos, ao invés de contentar-se com o que fez ao longo de uma vida longa e intensa, Negri tornou-se cada vez mais inquieto, insatisfeito e exigente consigo mesmo, com seus companheiros e suas companheiras. Em termos teóricos, o seu trabalho em torno dos temas do comum, do capitalismo cognitivo, da composição multitudinária do trabalho vivo contemporâneo colocou-o continuamente frente à necessidade de verificações práticas (além de o levar a trabalhar de forma original sobre a categoria marxiana de “capital fixo”) [29]. Do ponto de vista político, a sua apaixonada participação no movimento espanhol de 15 de Maio de 2011, bem como nas revoltas no Magreb e no Mashreq e no subsequente ciclo de lutas do “Occupy”, levou-o a formular, junto com Hardt, uma série de hipóteses sobre a questão da liderança, trazendo-a novamente para dentro da dinâmica dos movimentos e das lutas sociais [30]. Diante do impasse ou das derrotas desses movimentos, todavia, começou a se interrogar novamente – com base nessas mesmas hipóteses – sobre como articular com essas dinâmicas e com essas lutas uma dimensão “vertical” que, longe de extinguir a sua criatividade, aumentasse e multiplicasse a sua potência [31]. Se trata de uma questão, essa que pode ser definida como a eficácia da ação política transformadora, que Negri continuou a reformular mesmo diante dos momentos mais altos das lutas na França nos últimos anos – da insurgência dos coletes amarelos (2018) ao movimento contra a reforma previdenciária em 2023. Talvez não seja coincidência, neste sentido, que um dos seus últimos escritos tenha sido dedicado a Lenin [32].
5.
Concluindo o terceiro volume da sua autobiografia, lançado em 2020, Negri não hesitava em afirmar que o mundo estava mudando para pior. “Estamos perante um fascismo ressurgente”, escrevia ele, acrescentando que “devemos preparar-nos para as consequências extremas a que o fascismo pode levar: a guerra”. Diante deste risco, hoje mais relevante do que nunca, ele reafirmava a radicalidade daquilo que muitas vezes chamou de seu desejo comunista: “devemos rebelar-nos. Devemos resistir. Minha vida está indo embora, lutar depois dos 80 fica difícil. Mas o que resta da minha alma me leva a esta decisão.” Toni se foi, permanece intacto o testemunho de uma vida e de uma obra que nos chama ao pensamento e à ação – a perseverar naquela “arte da subversão e da libertação” que se renova sempre através das gerações, afirmando as razões da vida contra as da morte [33].
Notas:
[1] V. Morfino e E. Zaru, Storia, politica, filosofia. Intervista ad Antonio Negri, in “Etica & Politica”, 20 (2018), 1, pp. 187-204, p. 200. Lembre-se também dos três volumes da autobiografia de Negri (Storia di un comunista, Galera ed esilio, Da Genova a domani) publicados pela editora Ponte alle Grazie, editados por Girolamo De Michele entre 2015 e 2020. Um perfil extraordinário de Negri é aquele traçado por Judith Revel, Toni, singular comunista, 6 de janeiro de 2024, https://www.euronomade.info/toni-singolare-comune/2
[2] V. Morfino e E. Zaru, Storia, politica, filosofia, cit., p. 200.
[3] Conferir. A. Negri, Stato e diritto nel giovane Hegel. Studio sulla genesi illuministica della filosofia giuridica e politica di Hegel, Padova, Cedam, 1958; , Saggi sullo storicismo tedesco: Dilthey e Meinecke, Milano, Feltrinelli, 1959; , Alle origini del formalismo giuridico. Studio sul problema della forma in Kant e nei giuristi kantiani tra il 1789 ed il 1802, Padova, Cedam, 1962. Mas tenha-se em mente o importante trabalho de edição de G.W.F. Hegel, Scritti di filosofia del diritto: 1802-1803, editado por A. Negri, Bari, Laterza, 1962.
[4] Complexo petroquímico de Veneza, teatro por muitas décadas, e especialmente entre os anos 1960 e 1970, de radicais lutas autônomas dos trabalhadores. Para mais informações, veja-se Labournet TV. Porto Marghera – As últimas brasas. In “Passa Palavra”, 03/01/2021, trad. Marco Túlio Vieira, https://passapalavra.info/2021/01/135638/ [NdT].
[5] Para referências sobre o instrumento da enquete operária na tradição marxista e especialmente sobre o uso que fez dela a tradição italiana do operaismo, veja-se A. Haider e S. Mohandesi, Enquete Operária: Uma Genealogia. In “Passa Palavra”, 20/03/2020, https://passapalavra.info/2020/03/130037/ [NdT].
[6] Região do nordeste italiano, cuja capital é Veneza. Tradicionalmente pobre, camponesa, católica e feudo eleitoral da Democracia Cristã, além do que lugar de saida do maior contingente migratório para o Brasil, nos anos 1960 o Veneto passou por um processo de industrialização por meio de distritos industriais de pequenas e medianas empresas que a converteram, durante o processo de transformação produtiva da década de 1970, na chamada “terceira Itália” [NdT].
[7] Conferir A. Negri, Il lavoro nella Costituzione (1964), in La forma Stato. Per la critica dell’economia politica della Costituzione, Milano, Feltrinelli, 1977, pp. 27-110.
[8] Ver, no primeiro sentido, A. Negri, La forma Stato, cit.; no segundo sentido, , Problemi di storia dello Stato moderno in Francia: 1610-1650. In “Rivista critica di storia della filosofia”, 22 (1967), pp. 182-220, Descartes politico, o della ragionevole ideologia, Milano, Feltrinelli, 1970 e F. Borkenau, H. Grossmann, A. Negri, Manifattura, società borghese, ideologia, a cura di P. Schiera, Roma, Savelli, 1978.
[9] Ver A. Negri, La fabbrica della strategia. 33 lezioni su Lenin, Padova, Libri rossi, 1977. Já em 1969, Negri já havia proposto para “Potere Operaio” a centralidade do “problema de Lênin”: ver , Cominciamo a dire Lenin, “Potere operaio”, I (1969), 3 (2-9 ottobre), p. 3.
[10] Conferir. A. Negri, Dall’operaio massa all’operaio sociale. Intervista sull’operaismo, Milano, Multhipla, 1979
[11] A. Negri, Marx além de Marx: ciência da crise e da subversão. Caderno de trabalho sobre os Grundrisse, São Paulo, Autonomia Literária, 2018. [A. Negri, Marx oltre Marx. Quaderno di lavoro sui Grundrisse, Milano, Feltrinelli, 1979].
[12] A. Negri, Il dominio e il sabotaggio. Sul metodo marxista della trasformazione sociale, Milano, Feltrinelli, 1977, p. 55.
[13] Ver também AA.VV., Processo sette aprile, Padova trent’anni dopo, Roma, Manifestolibri, 2009, com um texto do próprio Negri.
[14] A. Negri, A anomalia selvagem. Poder e potência em Espinosa, São Paulo, Editora 34, 2018 [A. Negri, L’anomalia selvaggia. Saggio su potere e potenza in Baruch Spinoza, Milano, Feltrinelli, 1981].
[15] Ver nesse sentido A. Negri, Macchina tempo. Rompicapi, costituzione, liberazione, Milano, Feltrinelli, 1982 e a retomada desses temas em , Kairòs, Alma Venus, multitudo. Nove lezioni impartite a me stesso, Roma, Manifestolibri, 2000.
[16] Para a colaboração com Guattari, ver F. Guattari e A. Negri, Verità nomadi. Per nuovi spazi di libertà, Roma, Pellicani, 1989.
[17] Ver respetivamente A. Negri, Lenta ginestra: saggio sull’ontologia di Giacomo Leopardi, Milano, Sugarco, 1987, , Il lavoro di Giobbe, Milano, Sugarco, 1990 e Fabbriche del soggetto, Livorno, Secolo 21, 1987.
[18] A. Negri, O poder constituinte. Ensaios sobre as alternativas da modernidade, Rio de Janeiro, Lamparina, 2015 [A. Negri, Il potere costituente. Saggio sulle alternative del moderno, Milano, SugarCo, 1992].
[19] Ver Come gli asini nel deserto. Conversazione con Antonio Negri. In: A. Negri, L’inchiesta metropolitana, a cura di P. Do e A. De Nicola, Roma, Manifestolibri, 2023, pp. 19-41.
[20] Ver as contribuições recolhidas nos números 33/34 de “Futur Antérieur” (2006/1).
[21] Ver A. Negri, L’inverno è finito, a cura di B. Caccia, Roma, Castelvecchi, 1995.
[22] Ver nesse sentido, Posse, Il lavoro di Genova, Roma, Manifestolibri, 2001.
[23] M. Hardt e A. Negri, Império, Rio de Janeiro, Record, 2001 [M. Hardt e A. Negri, Empire, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2000.
[24] Conferir por exémplo M. Hardt e A. Negri, Empire, Twenty Years On, in “New Left Review”, 120, 2019, pp. 67-92.
[25] M. Hardt e A. Negri, Empire, cit., p. 16.
[26] M. Hardt e A. Negri, Bem-estar comum, Rio de Janeiro, Record, 2016 [M. Hardt e A. Negri, Commonwealth, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2009. Ver também G. Cocco e A. Negri, GlobAL. Biopoder e luta em uma América Latina globalizada, Rio de Janeiro, Record, 2005 [G. Cocco e A. Negri, GlobAL. Biopotere e lotte in America Latina, Roma, Manifestolibri, 2006].
[27] Ver, falando da Europa, A. Negri, L’Europa e l’Impero. Riflessioni su un processo costituente, Roma, Manifestolibri, 2003.
[28] Ver em particular –além dos já mencionado Bem-estar comum e Assembleia, citado na nota seguinte– M. Hardt e A. Negri, Multidão. Guerra e democracia na era do Império, Rio de Janeiro, Record, 2005 [Multitude. War and Democracy in the Age of Empire, London, Penguin Books, 2004]. Mas há de ser lembrado também o primeiro escrito de Hardt e Negri, O trabalho de Dioniso. Para uma crítica ao Estado pós-moderno, Rio de Janeiro, Pazulin, 2004. [Labor of Dionysus. A Critique of the State-Form. Minneapolis, MI,University of Minnesota Press, 1994].
[29] Ver por exémplo, A. Negri, Appropriazione di capitale fisso: una metafora?, 3 marzo 2017, https://www.euronomade.info/appropriazione-di-capitale-fisso-una-metafora/.
[30] Conferir M. Hardt e A. Negri, Assembly. A organização multitudinária do comum, São Paulo, Politeia, 2018 [Assembly, Oxford–New York, Oxford University Press, 2017], cap. 1. Sobre o movimento espanhol, conferir R. Sánchez Cedillo, Lo absoluto de la democracia. Contrapoderes, cuerpos-máquina, sistema red transindividual, Malaga, Subtextos, 2021, com prólogo de A. Negri (pp. 9-19). Sobre o movimento “Occupy”, conferir M. Hardt e A. Negri, Declaração. Isto não é um manifesto, Rio de Janeiro, N-1 Edições, 2016 [Declaration, New York, Argo-Navis, 2012].
[31] Ver por exémplo S. Mezzadra e A. Negri, Politiche di coalizione nella crisi europea, 7 agosto 2015, https://www.euronomade.info/politiche-coalizione-nella-crisi-europea.
[32] A. Negri, Prefazione, in V.I. Lenin, Stato e rivoluzione. La dottrina marxista dello Stato e i compiti del proletariato nella rivoluzione, Milano, Pigreco, 2022, pp. 7-20.
[33] A. Negri, Da Genova a domani, cit., p. 301.
Traduzido do original italiano por Alessandro Peregalli e Marco Túlio Vieira.
As fotografias que ilustram o texto são da autoria de Gabriele Basilico (1944-2013).