Por Leo Vinicius

Há textos cuja necessidade de serem escritos indica por si só o buraco ou distopia em que já estamos. Esse é o caso. Quando os congressistas daquele que é considerado o maior partido de esquerda da América Latina, assim como o deputado Henrique Vieira do PSOL e Lula, passam a usar, com orgulho e propaganda, um clássico slogan da extrema direita, e, além disso, tal fato é simplesmente normalizado e até bem recebido pela base supostamente de esquerda, é porque já estamos em uma mais-que-plena hegemonia da extrema direita.

E antes que se diga algo. Não, “O Brasil é dos brasileiros” não é um slogan de extrema direita por ser, na versão francesa, da Marine Le Pen e de seu partido, mas sim Marine Le Pen e o Reagrupamento Nacional (hoje Frente Nacional) são classificados como de extrema direita por terem esse tipo de visão de mundo, condensado nesse tipo de slogan, o qual é um verdadeiro clássico da xenofobia. “Alemanha para os alemães”, “Grã-Bretanha para os britânicos” e versões parecidas sempre foram lugar comum da extrema direita mundial e de grupos abertamente nazistas. São identificadores históricos desse campo político.

O simbólico e a prática

Muitos se entregaram às reações calculadas pela saudação romana provocativa (trollagem) de Elon Musk na posse de Donald Trump. Biden poucos dias antes havia liberado mais alguns bilhões de dólares em armamentos para Israel, e o silêncio foi estrondoso. Embora as bombas fossem para a continuação de um genocídio real e não gestual.

Evidentemente o gesto de Musk foi calculado com uma certa dose de ambiguidade, para provocar uma reação e ao mesmo tempo permitir que seu significado fosse negado. Esse tipo de jogo com símbolos do fascismo histórico só é possível por aqueles que possuem alguma identificação com o fascismo. Jamais um não fascista iria correr o risco de ser tomado por fascista de modo a provocar uma reação (o então Secretário da Cultura Roberto Alvim errou a mão em 2020, fazendo cosplay de Goebbels com insuficiente margem de ambiguidade).

Mas e o PT? Voltando ao slogan histórico da extrema direita incorporado pelos congressistas petistas e por Lula, é verdade que o PT não possui uma prática política xenófoba, dentro ou fora do governo. Mas tampouco o bolsonarismo mira nos imigrantes. No Brasil os imigrantes não constituem um bom bode expiatório para maximizar os ganhos eleitorais ou trazer popularidade. O que esse símbolo na cabeça dos congressistas petistas e de Lula representa é: i) a plena hegemonia da extrema direita, como já dito; ii) que longe de constituir uma oposição ou resistência ao fascismo em ascensão, o PT e o campo majoritário do que se considera esquerda no Brasil, são atores da constituição do fascismo (a circulação de temas gerados na direita para esquerda foi parte indispensável na constituição do fascismo histórico).

Já ouço amigos ou conhecidos de correntes da esquerda do PT, militantes de base, dizerem que o PT não é apenas seus congressistas ou sua alta burocracia. De fato não é, mas é para o acúmulo de capital político e de poder, como um esquema de pirâmide de ascensão social, que o partido funciona e está organizado. Não para ajudar a organizar a classe trabalhadora e fomentar suas lutas como sujeito autônomo à burguesia e às suas instituições (o básico para qualquer projeto de transformação anticapitalista). Ilusão parecida seria se alguém que trabalha em algum departamento de assistência social ou apoio cultural da Vale achasse que ela existe ou está organizada para fomentar cultura e benefícios sociais, e não para maximizar lucro e poder.

É verdade, governos petistas até agora não aplicaram políticas xenófobas e anti-imigrantes. Mas políticas que o colocam no espectro político do neoliberalismo, da direita e mesmo da extrema direita não faltam. Alguns exemplos são impermeáveis aos falsos álibis de um “Congresso conservador”, da “correlação de forças desfavorável” ou algo que o valha: a implementação de escolas cívico-militares, o dinheiro do BNDES comandado por Aloizio Mercadante para privatizar escolas estaduais, a oposição ao movimento pelo fim da escala 6×1 e ao próprio fim da escala 6×1, o projeto de lei para a Uber e contra os trabalhadores, o ataque a sindicatos combativos como a ASSIBGE e a Andes.

A oposição ao fim da escala 6×1 não se deu apenas através da fala do Ministro do Trabalho, Luiz Marinho. Tratou-se de algo orgânico à cúpula do governo, com a Secom mandando instrução às mídias ditas progressistas para não apoiarem o movimento pelo fim da escala 6×1, o qual havia ganho dimensão nas mídias sociais em novembro de 2024 [1].

O projeto de lei da Uber que partiu do Ministério do Trabalho, dá a Uber e 99 a segurança jurídica que essas empresas queriam, sem modificar nenhuma de suas práticas, seja de relações de trabalho ou de organização do trabalho. O projeto foi feito sob medida ao interesse dessas empresas-plataforma. Ao governo o projeto dá a arrecadação de INSS que ele almeja (no seu papel responsável de gestor do capital). Aos motoristas o projeto nada concede. Aos trabalhadores em geral o projeto apresenta um dispositivo legal para precarização geral das relações de trabalho. Às burocracias sindicais o projeto concede o poder legal de negociação coletiva (mesmo se o sindicato não for de fato representativo da categoria). Certamente não por outro motivo todas as centrais sindicais (menos a Intersindical e a CSP-Conlutas) assinaram uma carta defendendo o projeto com as mesmas mentiras contadas pelas empresas, chamando de salário o valor que o motorista recebe antes de descontar todas as despesas com gasolina, carro, celular etc. Fica patente que para a classe trabalhadora conquistar algo, terá que lutar também contra o governo do PT, contra essas burocracias sindicais e toda a correia de transmissão dentro e fora e da estrutura partidária.

É o que fica evidente também pelo ataque a sindicatos combativos. A forte greve dos professores federais em 2024 foi respondida com Carta Sindical concedida pelo Ministério do Trabalho ao sindicato pelego e pouco representativo Proifes. No caso do ataque da gestão do IBGE comandada por Márcio Pochmann, nada melhor que a análise e as palavras de Jorge Luiz Souto Maior, que, entre outras coisas, afirma que “fosse em outro contexto político, certamente, se diria que teríamos atingido o estágio explícito do autoritarismo fascista” [2]. Ataque realizado pela gestão do IBGE devido ao sindicato estar lutando contra o estabelecimento de uma fundação privada, uma forma de privatização que a esquerda brasileira combate há trinta anos. A propósito, a fundação em que trabalho (Fundacentro) também está sob controle do PT de Campinas e também estão instituindo uma fundação privada nela [3].

Se não bastasse os ataques da gestão do IBGE, as correias de transmissão do governismo petista foram acionadas para combater os trabalhadores que lutam por condições de trabalho e contra formas de privatização do serviço público. Naquilo que já é um documento histórico, as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo produziram um manifesto atacando os servidores do IBGE. O aparato vinculado ao petismo é mobilizado para atacar os trabalhadores quando lutam.

A qualquer um atento às práticas das gestões petistas atuais fica claro que se trata de agentes que tornam a correlação de forças ainda mais desfavorável aos trabalhadores ao atacarem suas organizações, suas lutas e seus movimentos. Não só o álibi da “correlação de forças desfavorável” não fica de pé para justificar políticas de direita, como o que tende a ocorrer é a opção por tentar reduzir a força dos trabalhadores.

Ao tema que é o foco neste texto, cabe ressaltar que os exemplos de práticas e ações acima apontam, além de tudo, a uma política de ampliação da insegurança, vulnerabilidade e precarização laboral e econômica, ou seja, da base objetiva e subjetiva constituinte da própria gênese de ascensão do neofascismo na sociedade [4].

Hegemonia

Pelo menos nos últimos trinta ou quarenta anos, o pensamento de Antonio Gramsci tem sido utilizado no Brasil para racionalizar/justificar a busca de poder e mobilidade social de indivíduos organizados em partidos de esquerda e seus satélites. Em suma, os conceitos gramscianos foram usados para racionalizar o engajamento eleitoral do PT e a ocupação de cargos e postos de poder nas instituições burguesas por indivíduos supostamente socialistas. Racionalizar significa fazer parecer, para os outros e possivelmente também para si, que não se trata de ambições ou busca de confortos pessoais, mas de militância por uma causa social. Hegemonia, visão de mundo, sociedade civil, senso comum, ação pedagógica, são alguns desses conceitos gramscianos operados para tentar racionalizar a busca de benefícios individuais (mesmo que de um grupo de indivíduos) como se fosse uma ação visando transformação socialista da sociedade.

Ocorre que a perspectiva de vitória eleitoral (principalmente para cargos majoritários) requer não sair do senso comum, de modo a ganhar os votos necessários. Desse fato, passível de ser observado em todas as eleições e por comparação histórica, esse gramscianismo nunca quis se dar conta, por conveniência. Dito de outra forma, a lógica eleitoral exerce uma ação pedagógica que reforça o senso comum e, portanto, a hegemonia burguesa (numa sociedade burguesa). Hegemonia entendida como dominação cultural, de visão de mundo, de uma classe sobre outra. O que a história mostra aos que querem ver, e não racionalizar suas ambições, é que os partidos de esquerda de origem na classe trabalhadora que buscam seriamente ascender eleitoralmente na sociedade burguesa, longe de modificarem a hegemonia burguesa, são por ela modificados ao longo do tempo. Aliás, para ser rigoroso, o próprio desejo de poder (de assumir um poder de gestão separado do corpo social) demonstrado pelo engajamento desses partidos e por indivíduos que os compõem é em si uma expressão da hegemonia burguesa (a classe trabalhadora assumindo um aspecto fundamental da visão de mundo burguesa).

Ocorre que agora o partido eleitoral não reforça apenas a hegemonia burguesa, mas a hegemonia da visão de mundo da extrema direita na sociedade burguesa. Visão essa que passa pelo reforço dos nacionalismos diante de uma crise social e global em vários níveis. Quando vem à cabeça do marketeiro posto na Secom um slogan típico, histórico, clássico da extrema direita, o que isso nos diz? Ora, isso nos diz que a visão de mundo da extrema direita se tornou um senso comum, que a visão de mundo da extrema direita ganhou hegemonia na sociedade. Afinal, marketeiro, como o nome já diz, tem como função vender um produto para o maior número de pessoas. E o que nos diz a alta hierarquia política do PT ter abraçado esse slogan?

Fascismo

Uma renovação da direita pela inspiração em formas de ação da esquerda. Temas da direita transportados para a esquerda. Essas foram condições para o surgimento do fascismo histórico [5]. Para aqueles que acham que a participação da bancada do PT na gincana de bonés do Congresso foi mero gesto anti-imperialista ou uma resposta a um viralatismo, é bom lembrar também que o conceito de “nação proletária” foi central na constituição do fascismo histórico. A ideia de nações exploradas, transportando a cisão de classes para um quadro geopolítico, esteve no cerne da visão de mundo fascista.

Se existe uma ação pedagógica que o PT exerce no governo, é de formar fascistas, no sentido mais analítico e histórico da palavra, misturando para uma massa, símbolos e identidade da esquerda com temas da extrema direita. Esses congressistas possuem considerável influência sobre seus seguidores. O que estão fazendo, além disso, é dessensibilizar os brasileiros em relação à extrema direita mundial. Afinal, um partido britânico ou francês que possui o mesmo slogan abraçado pelo “meu partido” no Brasil não deve ser algo que necessite manter um cordão sanitário.

O boné foi uma reação. De uma perspectiva antifascista, a reatividade do petismo à extrema direita é além de tudo mero espetáculo. A reação se dá no próprio campo da extrema direita, com uma visão de mundo central ao próprio trumpismo. Por outro lado, não surpreende que principalmente o petismo tenha se tornado reativo, com basicamente nenhuma proatividade. Quando uma pauta de classe, a favor dos trabalhadores, ganha alguma força, logo é antagonizada pelo petismo, como no caso do fim da escala 6×1. Qualquer autonomia de interesse e organização da classe trabalhadora é minada, como ameaça. Quando a esquerda não tem mais pautas nem slogans, resta a ela ajudar a construir o fascismo.

E a propósito, o boné com slogan da extrema direita lançado pelo PT já está sendo vendido no Brasil em lojinhas de produtos de “esquerda”.

Notas

[1] É o que revela o jornalista Bruno Torturra aqui.

[2] A Crise no IBGE

[3] Sobre outras questões relacionadas à atual gestão da Fundacentro, ver: O caso da Fundacentro; Fundacentro descumpre TAC do MPT; e Suicídio na Fundacentro

[4] Sobre isso escrevi aqui . Sugiro também o livro Trabalho Vivo II: Trabalho e Emancipação, de Christophe Dejours.

[5] Ver o livro Labirintos do Fascismo, de João Bernardo.

1 COMENTÁRIO

  1. BORDERLINE RETRÔ
    bináriodicotômica & ansiosabipolar, a entidade militante fariobaca não se cansa de chafurdar na pasmaceira e de regurgitofagocitar a mesmice: esquerdireita &/ direitesquerda, régua e compasso do gatopardismo tupiniquim neoarcaico

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