Por João Bernardo

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A segunda guerra mundial foi o oposto da primeira. Em vez de aparecer como uma rivalidade explícita de interesses económicos, apresentou-se como um confronto entre blocos ideológicos. Em vez de imobilizar os soldados em trincheiras, lançou-os em operações de movimento, que impediam os contactos pessoais. Em vez de terminar numa revolução internacional, fundou a consolidação de uma geopolítica baseada no conceito de «nações proletárias». E assim o fascismo, apesar de derrotado militarmente, pôde persistir ideologicamente graças ao enraizamento de uma noção que o gerara e sempre o inspirara. Foi uma consolidação duradoura. De então em diante a luta de classes contra a exploração tendeu a ser substituída pelos confrontos da geopolítica ou, mais recentemente, como teremos ocasião de ver, por formas transnacionalizadas de geopolítica. Leiam agora as diatribes de Hitler contra as imposições do tratado de Versailles, leiam o que Benito Mussolini escrevia contra a hegemonia das nações ricas. Será que a maior parte dos que se consideram antifascistas lhes pouparia os aplausos?

No discurso de 10 de Junho de 1940 em que anunciou a entrada da Itália na nova guerra mundial, Mussolini expôs os termos do confronto. «Esta luta gigantesca não é mais do que uma fase do desenvolvimento lógico da nossa revolução: é a luta dos povos pobres e com mão-de-obra abundante contra os açambarcadores que detêm ferozmente o monopólio de todas as riquezas e de todo o ouro da terra; é a luta dos povos fecundos e jovens contra os povos estéreis e votados ao desaparecimento; é a luta entre dois séculos e duas ideias». O conceito de «nações proletárias» requeria logicamente o conceito oposto, as «nações plutocráticas», e já em 1920 Gabriele D’Annunzio, fascista desde a primeira hora, ou mesmo antes, profetizara. «Haverá uma nova cruzada das nações pobres e empobrecidas, dos homens pobres e dos homens livres, contra as nações, contra a casta dos usurários que ontem tiveram os lucros da guerra e hoje lucram com a paz». A inevitável dialéctica que levava as «nações proletárias» a aspirarem à fortuna e ao império é o eixo que nos deve servir para interpretarmos todos os nacionalismos. «Quando esta guerra terminar queremos ser os senhores da Europa», disse Joseph Goebbels em Outubro de 1940 a um grupo de dirigentes do Partido Nacional-Socialista. «Pertenceremos enfim às nações ricas».

A mesma ambição de emancipar uma «nação proletária» movera desde a sua fundação o fascismo nipónico. «O imperialismo», declarara Kita no seu livro de 1906, «é a condição prévia do internacionalismo», e nesta perspectiva ele procurou promover o imperialismo japonês através de uma estratégia que estimulasse os movimentos contra o colonialismo ocidental na Ásia. Os novos colonizadores anunciar-se-iam como libertadores. Aliás, Kita não se limitou a ser um ideólogo, mas durante vários anos empenhou-se pessoalmente na colaboração prática com os revolucionários nacionalistas chineses. E assim um país movido pela ambição expansionista era apresentado por Kita como o campeão dos restantes povos asiáticos contra o colonialismo europeu e americano. Esta perspectiva foi igualmente defendida por altas figuras políticas e económicas ligadas à ala conservadora do fascismo nipónico, e pôde por aí inspirar a formulação da Esfera da Co-Prosperidade da Grande Ásia Oriental.

Em 1 de Agosto de 1940 o ministro dos Negócios Estrangeiros japonês proclamou a Esfera da Co-Prosperidade da Grande Ásia Oriental que, além do Japão, do Manchukuo e da China, deveria ainda incluir as Índias Orientais holandesas e a Indochina francesa, o que exigiria um confronto armado com o colonialismo europeu a sul e a sudoeste. Mas esta geografia era elástica, e tanto as autoridades militares como os responsáveis políticos nunca chegaram a um acordo quanto aos limites últimos da Esfera da Co-Prosperidade, que na sua versão extrema iria mesmo abranger a parte ocidental do Canadá e dos Estados Unidos, além de todos os países da América Central e uma porção considerável da América do Sul, o que implicaria que o Japão se lançasse numa nova guerra cerca de duas décadas mais tarde. Aliás, esta colossal desproporção entre as capacidades militares nipónicas e as suas ambições geopolíticas foi evocada por Maruyama como mais um exemplo do irracionalismo fascista. Prosseguindo a estratégia de um imperialismo anticolonialista que Kita formulara desde 1906, a Esfera da Co-Prosperidade foi proclamada sob o lema «a Ásia para os asiáticos», mas não devemos esquecer que, política, económica e militarmente, haveria ali asiáticos e asiáticos. Na versão da Esfera da Co-Prosperidade que o fascismo militar japonês conseguiu realizar até ao final da guerra, definia-se um centro industrial completado por uma periferia de produtores de matérias-primas, e esta disparidade assegurada pelo mercado era apresentada como uma forma de harmonia económica. Revelava-se assim cruamente o significado real daquele imperialismo anti-imperialista, mas o paradoxo vinha da própria génese do fascismo, porque o conceito de «nação proletária» implicava necessariamente o anseio de uma nação imperial.

Em Agosto de 1945 o Japão aceitou render-se, mas isto não impediu que continuasse a movimentação política implícita na Esfera da Co-Prosperidade. Quando pouco faltava para o conflito terminar, um antigo funcionário do consulado norte-americano em Hong Kong, Robert Ward, pôde antecipar lucidamente o futuro. «Com a proclamação oficial das suas aspirações na Ásia, às quais se associaram os chefes fantoches dos povos subjugados, o Japão contava aumentar o apoio de que dispunha para travar batalhas que se anunciavam decisivas na guerra do Pacífico. Mas o aparelho organizativo empregue e mesmo alguns dos termos usados indicam que os japoneses procuravam sobretudo atingir um objectivo mais subtil. Esse objectivo é o prolongamento da luta política na Ásia para além do termo da guerra actual». Com efeito, verificou-se uma continuidade entre o processo de descolonização prosseguido sob a tutela nipónica e as lutas pela independência que tiveram lugar nesta zona depois da capitulação de Agosto de 1945. Os governantes japoneses esforçaram-se por assegurar o êxito de pelo menos um dos seus lemas — «a Ásia para os asiáticos» — e prepararam um pós-guerra que comprometesse definitivamente o colonialismo europeu e americano naquela região do mundo. O estímulo dado à luta anticolonial e especialmente aos movimentos de independência e a atribuição de poderes governamentais aos dirigentes nacionalistas que se haviam colocado sob a égide do fascismo nipónico foram, afinal, o legado duradouro da Esfera da Co-Prosperidade.

A data mais marcante, dez anos depois do termo da segunda guerra mundial, foi a Conferência de Bandung, que reuniu representantes de quase três dezenas de países nessa cidade da Indonésia com o objectivo de condenar a discriminação racial e todas as formas de colonialismo. Ao vermos a lista dos organizadores e participantes, destaca-se a presença de Chu En-lai, primeiro-ministro da China e então também ministro dos Negócios Estrangeiros, ao lado de Achmad Sukarno, presidente da Indonésia, que sob a tutela japonesa levara o seu país à independência nos últimos dias da guerra. Como sempre, o cruzamento entre a esquerda e a direita gera ou sustenta o fascismo, e nem faltou para ornamentar o encontro um convidado de honra, o mufti de Jerusalém Hadj Amin el-Husseini, que fora subsidiado pelo fascismo italiano, em 1941 se refugiara no Reich e organizara conspirações a favor de Hitler no Egipto e no Iraque, ajudando depois os SS a recrutarem uma legião muçulmana nos Balcãs e colaborando no programa de extermínio dos judeus. O único dos países desenvolvidos e industrializados presente em Bandung foi o Japão, uma participação significativa porque decerto recordava que sob a égide do fascismo nipónico começara a proclamar-se «a Ásia para os asiáticos». O líder fascista Ba Maw, que depois de ter ocupado o lugar de primeiro-ministro da colónia britânica da Birmânia governou sob a tutela japonesa a Birmânia independente, teve razão quando escreveu nas suas Memórias que sem a experiência prévia da Esfera da Co-Prosperidade a Conferência de Bandung teria sido impossível.

Entretanto, em 1952 o economista e demógrafo francês Alfred Sauvy cunhara o conceito de Tiers Monde, Terceiro Mundo. Com que pudor os politicamente correctos, sempre avessos a tudo o que considerem eurocentrismo, se esforçam por dissimular a proveniência deste termo! Na verdade, tiers é inevitavelmente mal traduzido em todas as línguas, porque já na época de Sauvy era uma forma arcaica correspondente a troisième, terceiro, cuja memória se associava ao que antes da Revolução Francesa havia sido o tiers état, o estado ou condição social de quem não pertencesse ao clero nem à nobreza laica. Assim, é esclarecedor que Sauvy não tivesse formulado o conceito como troisième monde, mas como tiers monde, o que de imediato lhe conferia uma conotação estritamente socioeconómica. Se na velha França o tiers état fora a categoria social inferior, o conceito criado por Sauvy evocava uma situação equivalente, mas no âmbito mundial. Ideologicamente a filiação era clara, e o Terceiro Mundo foi a actualização da «nação proletária» numa época globalizada. Já não se tratava de uma aliança de «nações proletárias», como os fascismos se haviam apresentado na segunda guerra mundial, e todo este enorme espaço geopolítico se assumia como uma «nação proletária» única. Se Ba Maw estava certo — como creio que estava — ao escrever que sem a Esfera da Co-Prosperidade não teria havido a Conferência de Bandung, então devemos necessariamente concluir que sem a «nação proletária», com tudo o que essa noção implicou, não existiria Terceiro Mundo. Uma vez mais vemos que a segunda guerra mundial, se derrotou militarmente o fascismo, foi apenas militarmente que o derrotou.

A concentração das atenções na Guerra Fria pode conduzir à ilusão de que o mundo estivesse polarizado pelos dois grandes campos, e que aqueles países que nem se integravam na esfera soviética ou na chinesa nem pertenciam às democracias da esfera americana ficassem condenados a oscilar entre um lado e o outro e fossem desprovidos de identidade própria. Os Não Alinhados, porém, representavam na política externa uma realidade subjacente muito profunda, que levara à Conferência de Bandung e amparava o Terceiro Mundo.

Neste contexto, a principal experiência — que para a extrema-esquerda da minha geração foi a desilusão mais amarga — resultou dos movimentos anticoloniais em África. O que de início prometera dar um novo alento à luta dos trabalhadores em busca de novas relações sociais e de uma efectiva liberdade converteu-se, sem uma única excepção, na instauração de regimes autoritários ou francamente ditatoriais, quando não mesmo genocidas, sustentando classes dominantes maioritária ou inteiramente corruptas, baseadas num capitalismo mais cleptómano do que empresarial. Proclamadas as independências, os novos regimes mantiveram as formas políticas herdadas do colonialismo para dominar o proletariado. Mantiveram as formas colonialistas de racismo, mas transformadas agora, e por vezes só superficialmente, em novo elitismo. Em suma, converteram o muito mau em pior ainda.

Mas o que sobretudo importa nos resultados da experiência africana, o verdadeiramente decisivo, é que eles não se deveram à interferência de potências exteriores, mas a uma evolução estritamente interna das próprias organizações que haviam combatido pelas independências. Foram os movimentos de libertação, tanto partidos políticos como guerrilhas, que se converteram em elite dos países recém-independentes e foram os sindicatos, onde existiam, a oferecer os casos mais flagrantes de transformação dos seus dirigentes em novos capitalistas. A emancipação das «nações proletárias» africanas enquanto entidades nacionais ocorreu sem que se tivesse emancipado o proletariado dessas nações — e que outra coisa se poderia esperar? Da «nação proletária» à Conferência de Bandung e ao Terceiro Mundo a linhagem é uma única.

Os tempos mudaram e o núcleo do Terceiro Mundo chama-se agora BRICS. Ora, o mesmo pudor que leva os politicamente correctos a tentarem esquecer a quem se deve a denominação Tiers Monde leva-os também a dissimular que aquele acrónimo, então ainda na forma BRICs, foi criado por Jim O’Neill, actualmente barão O’Neill de Gatley, que desempenhou altos postos executivos no grande grupo financeiro Goldman Sachs e exerceu depois cargos ministeriais num governo conservador do Reino Unido. Os sucessivos herdeiros da «nação proletária» não poderiam ter tido melhores padrinhos de baptismo.

Na primeira parte vimos a possível relação entre a «nação revolucionária» e a «nação proletária». Na segunda parte vimos como a luta internacional do proletariado desarticulou as nações e o que sucedeu depois. Em seguida, na quarta parte veremos uma nova vaga de internacionalização das lutas e quais os seus resultados. Na quinta parte veremos como a ecologia dinamiza duplamente o processo gerador do fascismo. Na sexta parte veremos como os identitarismos transportaram o fascismo clássico para um contexto geopolítico transnacional. Na sétima e última parte veremos as transformações internas sofridas pela classe trabalhadora e a crise terminal dos marxistas.

Referências

O discurso de Mussolini a 10 de Junho de 1940 está antologiado em Charles F. Delzell (org.) Mediterranean Fascism, 1919-1945, Nova Iorque: Walker, 1971, pág. 214. As declarações de D’Annunzio estão citadas em George Seldes, Sawdust Caesar. The Untold History of Mussolini and Fascism, Nova Iorque e Londres: Harper & Brothers, 1935, pág. 74. A declaração de Goebbels em Outubro de 1940 está citada em J. Noakes e G. Pridham (orgs.) Nazism 1919-1945. A Documentary Reader, vol. III: Foreign Policy, War and Racial Extermination, Exeter: University of Exeter Press, 2010, pág. 292. A passagem da obra de 1906 de Kita encontra-se em George M. Wilson, Radical Nationalist in Japan: Kita Ikki, 1883-1937, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1969, pág. 35. O relatório de Ward está transcrito em Joyce C. Lebra (org.) Japan’s Greater East Asia Co-Prosperity Sphere in World War II. Selected Readings and Documents, Kuala Lumpur: Oxford University Press, 1975, pág. 154. A opinião de Ba sobre a Conferência de Bandung vem em Ba Maw, Breakthrough in Burma. Memoirs of a Revolution, 1939-1946, New Haven e Londres: Yale University Press, 1968, pág. 339.

As ilustrações reproduzem obras de Julian Stanczak (1928-2017).

3 COMENTÁRIOS

  1. Olá João Bernardo, tudo bem?

    Poderia comentar melhor esse trecho?

    “Os governantes japoneses esforçaram-se por assegurar o êxito de pelo menos um dos seus lemas — «a Ásia para os asiáticos» — e prepararam um pós-guerra que comprometesse definitivamente o colonialismo europeu e americano naquela região do mundo. O estímulo dado à luta anticolonial e especialmente aos movimentos de independência e a atribuição de poderes governamentais aos dirigentes nacionalistas que se haviam colocado sob a égide do fascismo nipónico foram, afinal, o legado duradouro da Esfera da Co-Prosperidade.”

    De fato, já li sobre casos de militares japoneses que serviram no Vietnã que se engajaram na luta anticolonial vietnamita logo após, mas mais como algo isolado. Você poderia desenvolver melhor, por favor? Obrigado!

  2. Caro João, eu gostaria de acrescentar uma coisa ao pedido feito acima: se possível, deixe aqui alguma indicação de leitura incontornável sobre as lutas anticoloniais no Vietnã. Muito obrigado!

  3. L de SP,
    Durante a segunda guerra mundial o fascismo nipónico promoveu ou acelerou a independência de um vasto arco de países que incluiu a Indonésia, Timor, as Filipinas, o Vietname, a Birmânia e até a Índia. Ba Maw estava certo, e sabia do que falava, quando escreveu que sem a Esfera da Co-Prosperidade não teria havido a Conferência de Bandung. Foi essa a génese imediata das independências asiáticas. Tratei de tudo isto com detalhe no Labirintos do Fascismo (São Paulo: Hedra, 2022), vol. VI, págs. 55-110. A versão publicada pela editora Hedra é revista, actualizada e mais detalhada do que as versões anteriores, mas quem não possa dispor da edição em papel ou sequer em ebook poderá consultar as págs. 1274-1318 da versão de 2018 aqui. É curioso como estas componentes decisivas da História são dissimuladas não só pelos antigos colonizadores, mas ainda pelos herdeiros das independências.

    Fernando,
    Só estudei com detalhe a luta pela independência do Vietname no período do fascismo clássico, por isso não lhe posso aconselhar nada para a época posterior, nomeadamente para a guerra contra os franceses e depois contra os americanos. Apesar disto, aconselho-o a ver a bibliografia que indico nas notas de rodapé da versão Hedra ou mesmo da versão de 2018. Estou certo de que ficará tão surpreendido como eu fiquei quando escrevi aquelas páginas.

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