Por Thiago Canettieri
Conheci Reinaldo [1] saindo de mais um trabalho de campo realizado na área onde faço pesquisa. Neste dia, por conta de um compromisso, resolvi chamar um Uber. Reinaldo foi quem aceitou a corrida. Na conversa durante a viagem, fiquei sabendo que ele é morador do bairro desde o começo. Reinaldo trabalha de Uber desde 2020 – quando perdeu seu emprego anterior por causa da pandemia. Ele se define como um “empreendedor”[2] de “pensamento estratégico”.
Para ele, dirigir Uber demanda o que ele chamou de “cabeça de vencedor”. Para além da novilíngua coach, o que será que isso significa?
Enquanto conversávamos, ele explicava suas “estratégias” para “colocar o aplicativo para trabalhar para ele”.
“Tem que pensar lá na frente, sabe?” ele disse enquanto dirigia e me mostrava o trânsito no sentido contrário. “A gente que é Uber tem que fazer assim, tem que pensar lá na frente, cada vez que o aplicativo toca, tem a região da corrida e o preço. Aí a gente tem que calcular: vale a pena ou não vale? Mas não só com essa corrida em mente. Tem que pensar na próxima. Vou rodar muito ainda? Vou voltar para casa? Como está o combustível? Tudo isso em questão de segundos.”
Trabalhar como Uber envolveria um cálculo estratégico de tomada de decisão. Pode-se contar com a experiência – Reinaldo já roda com seu carro há cinco anos – mas “é sempre uma aposta”, ele diz. “Tem rota que a gente já conhece, já passou mil vezes, mas vai lá e, naquele dia, tá com trânsito.”
Reinaldo, enquanto dirigia seu carro, comentava como era importante esse pensamento de empreendedor. Pois, as decisões que se toma vão definir se foi um dia bom ou um dia ruim rodando. Ele tenta sempre pegar corridas para onde acredita existir “melhores oportunidades”. Segundo ele, é mais vantajoso pegar menos corridas com valores mais altos, apostando em corridas que o levarão a lugares onde o preço está em modo dinâmico.
Perguntei a ele como tinha essa noção. Ele repetiu “é pensamento estratégico, sabe?”. Tentar se antecipar às possibilidades de ganho e às adversidades para tomar as melhores decisões e, desse modo, voltar para casa “como um vencedor”, tendo cumprido sua “meta de ganhos”.
“É que nem fazer investimento”. Achei curiosa a referência que Reinaldo mobilizou para descrever sua jornada de trabalho de seis dias por semana que vai de meio-dia até meia-noite. Enquanto dirigia pelas ruas, Reinaldo transformava seu trabalho em um investimento. Seu tempo de trabalho aparece para ele como um investimento financeiro: não se trata do seu esforço, da oferta de emprego, do algoritmo do aplicativo, mas sobretudo, a questão para se tornar um “vencedor” reside exclusivamente nas suas próprias decisões.
O próprio Reinaldo explica: “A corrida tem que valer a pena financeiramente, não pela corrida sozinha, mas considerando o seu planejamento do dia, sacou? De como você vai organizar seu dia.” Cada decisão tomada, de pegar ou não pegar uma corrida – afinal, ele diz, “tem corrida que não vale a pena” – está orientada para “fazer um resultado legal, para valer a pena financeiramente”.
Enquanto chegávamos finalmente ao meu destino, ele disse como era importante, com esses cálculos, prever o que está no seu caminho, conhecer como o trânsito se comporta e tomar as melhores escolhas – assim é possível fazer um bom investimento. Perguntei sobre quando não dá certo e ele respondeu: “Olha, ontem mesmo, ontem foi um dia ruim. Pouca corrida, o aplicativo pagando pouco. Mas eu fui na resiliência, na paciência, na estratégia e consegui fazer um resultado legal”.
O que me chamava atenção na nossa conversa de Uber era como ele mapeava seu trabalho. Sua jornada de trabalho é maior do que a média dos motoristas de aplicativo na RMBH.[3] É um trabalho extenuante. Ele mesmo deixou escapar em um determinado momento: “é cansativo, né, cara”. Mas mesmo diante de tudo isso, de sua experiência mais concreta atrás do volante, para ele fazia muito sentido pensar o que ele faz como um investimento. Por que Reinaldo mapeou seu trabalho como um investimento? Não tenho uma resposta direta para isso. Seria fácil tergiversar com uma resposta que falaria da doutrina neoliberal e como os ideais se colaram em Reinaldo. Não acho que só isso ajude a explicar a forma como Reinaldo compreende o próprio trabalho.
Talvez, a resposta para isso, o próprio Reinaldo tenha dado já quando aproximávamos do final da corrida. Perguntei qual era seu plano para o futuro e ele confidenciou seu objetivo: “comprar mais um carro e ter alguém para rodar para ele”.
Notas
[1] O nome é fictício.
[2] Todas as aspas são da conversa com Reinaldo
[3] Cf. Tozi, F.; Gianasi, L. M. (2023). Dirigindo para Uber: resultados da pesquisa. Belo Horizonte: Instituto de Geociências, UFMG. Disponível em: https://continenteufmg.com/

Acho que como todas as ilusões necessarias para viver, precisamos na ausencia de propostas concretas e de transformação, romantizar, dar um sentido maior aos empregos de m*r que temos. como dira Rausilto, diz seja professor, padre, …achamos que estamos contribuindo para nosso belo quadro social …
o empreendorismo não pode ser visto creio somente pela logica da ideologia neoliberal mesmo. Mas se libertar de bater cartão na rotina degradante do clt também pode ser visto como se libertar desse destino de trabalhador somente…..Mas logicamente essa frustação é aproveitada pelas ideologias coah empreendedores que vemos por ai.