Por Jan Cenek

Esses dias estava escrevendo e digitei a palavra cacetete. Como não tinha corretor ortográfico no computador, passou. Cacete se escreve com c, logo… Errado! Como estranhei a palavra na tela, resolvi procurar no dicionário. Foi uma cacetada daquelas. O correto é cassetete, com ss. A polícia dá cacetada com caSSetete.

O étimo (essa palavra é outra cacetada) de cassetete é francês, “casse-tête”, significa quebra-cabeça. Tá no pai dos burros contemporâneos, o Google. Meu dicionário impresso registra que cassetete é um cacete curto. Mas então por que não dizer cacetinho, se a língua oferece possibilidade de variar o grau dos substantivos? Um cacete de pequenas dimensões seria um cacetinho. Um cacete de grandes dimensões seria um cacetão, ou quiçá um cassetetão. Estaria o moralismo politicamente correto bloqueando até as possibilidades linguísticas? O fato é que a polícia bate com um cacetinho, que é um cacete curto, um cassetete. Assim como é fato que um cacete é maior que um cassetete, apesar da segunda palavra ser composta por mais letras que a primeira.

Semanticamente curioso, recorri novamente ao pai dos burros contemporâneo, lancei no Google as palavras “cacete imagem”. Assumi o risco. Não ignorava a possibilidade de aparecer um cassetete longo, um cassetetão que não coubesse nas dezessete polegadas do monitor. Isso sem falar nas arriscadas associações que seriam estabelecidas pelos algoritmos. Que mercadorias eles iriam me oferecer depois da googlada? Descobri que o Google também é moralista, o primeiro retorno foi “você quis dizer cassete imagem”. Clicando no link visualizei as saudosas fitas cassete (k7) que usava para gravar canções na adolescência. Mais que isso, devo ter despistado os algoritmos, que passaram a me oferecer artigos musicais e sonoros, e não cacetes de diversos tamanhos.

A nostalgia — pelas fitas cassete, é bom destacar — me fez lembrar das tias do meu tempo de escola, que, por sorte, eram moralistas como o Google. Porque se as palavras cacete e cassetete fossem incluída nos ditados, eu poderia levar uma nota vermelha e uma cacetada. Sim, sou do tempo em que algumas tias da escola desciam o cacete nos alunos. Atualmente as coisas se inverteram, são os alunos descem o cacete nas tias da escola. O que não mudou foi a língua portuguesa, que contínua excessivamente cheia de exceções.

Recorri novamente ao meu dicionário impresso. Um sinônimo para cacete? Simples. Porrete. Óbvio. Novamente uma rima e uma solução. O Google, que é moralista como as tias do meu tempo de escola, não censura as imagens de porretes. Só que os primeiros retornos são tacos de baseball. Ops. Beisebol. Abaixo os estrangeirismos e o imperialismo cultural. Antes cacete que oh shit ou what the fuck ou coisa parecida.

Para o poeta, a língua portuguesa é “a última flor do lácio, inculta e bela”. Patriotadas e parnasianismos à parte, a língua portuguesa é um cassetete, um “casse-tête”, um quebra-cabeça. É do cacete, mas dá cacete nos falantes: diariamente.

2 COMENTÁRIOS

  1. Questões cacetes de etimologia, de divergência entre registros escrito e oral, estão presentes em qualquer língua. Não só na portuguesa; em qualquer língua.

    É uma caceteação só. Veja-se, por exemplo, a dupla nomeação que se dá, na língua inglesa, ao mesmo animal vivo e abatido: “pig” (do protogermânico ocidental *piggo) e “pork” (do francês porc), “cow” (do protogermânico ocidental *ko) e “beef” (do francês boeuf), “sheep” (do protogermânico ocidental *skap) e “mutton” (do francês mouton), etc. Para simplificar um longo debate sociolinguístico: antes da invasão normanda as palavras de origem germânica (“pig”, “cow”, “sheep”, etc.), chegadas à ilha pelas vias saxônica ou danesa, denominavam tanto o animal vivo quanto a carne do mesmo animal; depois da invasão, como a nobreza invasora normanda falava uma variante do francês antigo, as palavras que usavam para exigir comida (porc, boeuf, mouton, etc.) passaram a denominar a carne do animal abatido, enquanto o animal vivo seguia denominado pelas palavras de origem germânica usadas desde antes da invasão.

    O paralelo mais próximo em que consigo pensar no momento é o coreano, quando os bichos vivos têm nomes de origem coreana propriamente dita, e a carne dos bichos mortos têm nomes que, falados, soam muito parecidos com palavras em chinês tradicional. Poderia estender debate parecido para o português com os pares “boi” e “bife”, “porco” e “suíno”, “galinha” e “frango”, etc., mas o debate iria para outros lugares, pois no português os processos históricos de diferenciação foram outros — o que deixaria a conversa mais cacete do que já está.

    Voltemos ao cacete, que meu pai Houaiss indica vir de caço, diz descender de cazo em espanhol e galego, e define como “frigideira geralmente de barro, com cabo”, prima por sinal da caçarola. Segue nisso o brasileiro Antônio Geraldo da Cunha e o português José Pedro Machado. Meu pai Aulete vai na mesma, e também meu pai Priberam. Sabendo disso, visualize alguém cacetando a cabeça de alguém com um caço — muito apropriadamente, aliás, porque cacetar também se pode entender como “bater com um caço”. Junte-se ao caço o sufixo diminutivo -ete e temos a linda cena de alguém sendo cacetado com um “caço pequeno” — mais leve, mais ágil, mais fácil de manejar, a facilitar portanto maior frequência de pancadas por minuto. Eis aí o cacete, primo-irmão do porrete, da borduna, da cachaporra, do traulito…

    Por outro lado, meu pai Houaiss também registra verdadeira confusão entre etimólogos — como o brasileiro Antenor Nascentes e a portuguesa Carolina Michaëlis — que registram o parentesco do cacete com o francês casse-tête desde pelo menos 1706 como “vinho que sobe à cabeça” (!!) e, desde 1762 como “trabalho que exige uma grande aplicação” (!!!). Nos dois casos, quebra-se a cabeça com o cacete do cacete, ainda que figurativamente.

    Para piorar, o cacete do registro escrito nunca é totalmente arbitrário. Nem sempre um som é representado somente por um e um único sinal gráfico. Inversamente, o mesmo sinal gráfico pode ser sonorizado de diversos modos. Voltando ao inglês: house (“ráus”, “casa”) e house (“ráuz”, “hospedar”) não são a mesma coisa, assim como tear (“té-er”, “rasgar”) e tear (“tíer”, “lágrima”). No mandarim, por diversão, vale reler o hoje clássico poema-piada O Poeta Comedor de Leões na Cova de Pedra, de Zhào Yuánrèn (趙元任). As confusões entre o que se diz e o que se escreve são a graça do políptoto, da antanáclase, da antimetábole…

    A distinção gráfica entre homófonos — como quase são “cacete” e “cassetete” — costuma conter elementos de registro histórico, etimológico. É como o velho “ph” de “pharmácia” usado até 1943 no Brasil e 1911 em Portugal, que registrava a origem grega da palavra distinguindo entre o “φ” (“phi”) grego de “pharmácia” (φαρμακεία, “pharmakeía”) e, por exemplo, o “f” latino de “felino” (felinus).

    (O “h” em “ph”, mais ou menos como o “ь” eslavo por meios diferentes, como que “suavizava” o “p”, transformando-o de oclusivo — “pão”, “peteca”, “pinico”, etc. — num “quase f” que, de oclusivo aspirado, foi ficando fricativo até se transformar de vez num “f” — e lá vou eu em digressões! Voltemos ao cacete do cacete, cacete!)

    É o caso de “cassetete”: os “ss” persistem por razões estritamente etimológicas, para “lembrar” do verbo francês casser (“quebrar”, “romper”). Sabe o “-bol” de futebol, voleibol, basquetebol, beisebol? Então. Ele não é “-bó” de “futibó”, nem “-bóu” de “beisibóu”; é “-bol”, e é isso. É para lembrar de onde veio a ball. Saber algo dessa etimologia também serve como marcador de posição de classe social. “Falar certo”, “escrever certo”, também é para isso que serve.

    Termino meu comentário quebrando um pouco mais a cabeça do autor e dos leitores. O autor diz que “a polícia bate com um cacetinho”. Se o disser na Bahia, os circunstantes imaginarão, muito intrigados, a polícia — justo na Bahia, Estado com a polícia mais assassina do Brasil! — a espancar alguém com… um pão francês. Já os ouço: “Ói, véi, você mim dêche, vú? Baratínu da pôrra!” Se disser o mesmo em Alagoas, a cena será ainda mais intrigante: lá, cacetinho é… um biscoito.

    Cacetada! É isso mesmo: toda língua é “a um tempo, esplendor e sepultura”.

  2. Manolo, interessante. Várias cacetadas idiomáticas. Lembrei de uma crônica que eu usava quando atuava em cursinhos populares. Chama-se O gigolô das palavras. O autor é o agora saudoso Luís Fernando Veríssimo. Compartilho alguns trechos:

    “Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer “escrever claro” não é certo, mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover… Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com Gramática.)”

    […]

    “Sou um gigolô das palavras. Vivo à custa delas. E tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Se bem que não tenha também o mínimo escrúpulo de roubá-las de outro, quando acho que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo.”

    […]

    “A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.”

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