Por Benno

Alguns dias atrás o militante de extrema-direita Charlie Kirk foi baleado no pescoço por um tiro certeiro de, ao que sabemos até agora, um homem branco posicionado a impressionantes 430 pés de distância.

A celebração foi curta e a sensação é de acordar de ressaca: a revanche violento certamente virá [1]. A mídia liberal americana, encabeçada pelo New York Times, já tem sido rápida em condenar o assassinato e repetir os lugares-comuns da puída democracia: a violência política é um horror bárbaro, que não deveria ter prestígio algum num país civilizado como os Estados Unidos e mesmo se discordássemos violentamente com alguém como da estirpe de Charlie Kirk – que passou a maior parte da sua vida adulta pregando o tipo de política que depende, incita e ganha com a violência contra os condenados da Terra e os oprimidos, o que é nunca dito nesse tipo de eulogia moralizante, como se isto também não fosse algum tipo de violência – não deveríamos de forma alguma louvar a morte de outro cidadão. Tão cansativo que é este roteiro, posto em ação a cada assassinato político cada vez mais frequente…só me leva a perguntar: não seria ele também parte de uma violência maior, o jogo anônimo mas igualmente brutal que mantém, a todo custo, a validade do “experimento americano”, como colocou a coluna de hoje de outro auriga do establishment discursivo liberal americano, Ezra Klein [2]?

Não quero me delongar aqui com o que nós já sabemos, um lugar-comum de esquerda: de que a violência estrutural é tão real quanto um assassinato individual, de que ignora-se o quão brutal ela é, de que, por exemplo, os grandes noticiários e formadores da boa mente liberal imperial nunca passaram um minuto gastando sebo de teclado para fazerem as eulogias aos assassinados em Gaza (porque eles não são assassinatos políticos também?). Afastemo-nos por um momento da vontade de moralizar ou justificar o assassinato de uma pessoa que parece de todo modo ter vivido, apoiado e feito tudo para construir uma política da crueldade. Isso é tudo real e válido, mas aqui queria pensar no que exatamente entendemos por “violência” quando acontece um caso desses – o que exatamente quer dizer esse conceito, o que tenta indicar e, mais urgentemente, o que ele encobre? A despeito de sua citação em certos meios ter se tornado “cringe”, acho que Tiqqun acertou em cheio quando escreveu em Introducción a la guerra civil, de 2001:

Cuando el biopoder se pone a hablar, respecto de los accidentes de tráfico, de «violencia en carretera», se comprende que en la noción de violencia la sociedad imperial no señala sino su propia vocación de muerte. De esta manera, la sociedad imperial se ha forjado para sí el concepto negativo por el que rechaza todo lo que en ella es aún portador de intensidad. Cada vez más expresamente se vive a sí misma, en todos estos aspectos, como violencia. Y es, en el acoso que lleva a cabo, su propio deseo de desaparecer lo que se expresa.

Não só nos cabe oferecer um *novo* conceito que ajuste aquele de violência, como se a tarefa crítica fosse remendar conceitos velhos para “ajustá-los” a novas realidades, e não só porque depois de tanta remenda, nenhuma roupa velha aguente o uso continuado. Trata-se de des-encobrir a função ideológica do conceito, de esmiuçar as determinadas práticas distintas que ele reuna sob nome mistificado, e daí mostrar o mundo invertido que ele descreve. Portanto, sobre a violência: para além dos qualificadores “individual”, “política”, “estrutural” ou “coletiva”, a tarefa crítica seria aqui na verdade mostrar que a manifestação discursiva da violência – como no caso do assassinato de Charlie Kirk, voltando ao tema inicial desta nota – revela que toda uma realidade social (ou “o experimento americano”, como colocou nosso comentarista Ezra Klein) está ruindo. Mas ruindo não porque há assassinatos políticos em voga – isso acontece desde tempos imemoriais na sociedade americana -, mas porque a percepção da vida política se torna cada vez mais míope: longe de ser visto como realmente é, um colapso em curso, o comentariado liberal só consegue ver o desmonte pedaço por pedaço. Em vez de uma guerra em curso, como entendem infelizmente os fascistas, a visão democrática busca afastar os “atos extremados” do campo de visão da mesma forma que a barreira de contenção tenta afastar os torcedores de um campo de futebol. Mas neste caso, acho que o juiz não está mais em campo, e talvez os jogadores já tenham desistido das regras do jogo.

Notas

[1] David Gilbert, “‘War Is Here’: The Far-Right Responds to Charlie Kirk Shooting With Calls for Violence,” Wired, n.d., accessed September 12, 2025, https://www.wired.com/story/far-right-reactions-charlie-kirk-shooting-civil-war/.

[2] Ezra Klein, “Charlie Kirk Was Practicing Politics The Right Way,” The New York Times, September 11, 2025, https://www.nytimes.com/2025/09/11/opinion/charlie-kirk-assassination-fear-politics.html.

As imagens que ilustram este artigo fazem parte do especial do El Estador sobre violência.

7 COMENTÁRIOS

  1. “Não só nos cabe oferecer um *novo* conceito que ajuste aquele de violência”.
    “Em vez de uma guerra em curso, como entendem infelizmente os fascistas, a visão democrática busca afastar os “atos extremados” do campo de visão da mesma forma que a barreira de contenção tenta afastar os torcedores de um campo de futebol. Mas neste caso, acho que o juiz não está mais em campo, e talvez os jogadores já tenham desistido das regras do jogo.” Não pode matar? Ou pode?

    Mais alguém não entendeu?
    Cadê você, ulisses?

  2. Em meio aos lobos é assim mesmo que se responde.
    Com Bartherby no bolso, ulisses surge com um apurado senso de autopreservação.
    Sempre gratíssima pelas mui adequadas contribuições.

    Mas eu, inadequada sempre, sempre incomoda e desconfortável diante dos lobos, eu que tendo ao incêndio suvariniano e talvez até um pouco ao idiotismo sincero dostoievskiano (que me parece o avesso da autopreservação de Bartherby), preferiria mesmo a velha e útil ideia de violência.

  3. Provocações, de Luis Fernando Veríssimo

    A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão. A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso. Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de medicamento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz. Foram provocando por toda a vida.

    Não pôde ir à escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, ele gostava de roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para onde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme, firme. Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Os que morriam eram substituídos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.

    Estavam provocando. Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal de reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava. Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.

    Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Pra valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano… Então protestou. Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu, espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: Violência não!”.

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