Por bancário anônimo
Na segunda-feira passada, dia 8 de setembro de 2025, o Itaú Unibanco realizou no Brasil uma demissão em massa de mais de mil funcionários que estavam no regime de trabalho híbrido ou remoto, alegando quebra de confiança por terem registro de ponto incompatível com as jornadas de home office. O banco diz que os funcionários ficavam inativos do computador por longos períodos de tempo durante os 6 meses em que o monitoramento foi realizado, utilizando um programa “espião” de gestão do trabalho que contabiliza cliques na tela, alternância entre abas, dígitos, conversas e reuniões. Essa talvez tenha sido a maior demissão em massa do sistema bancário brasileiro em um só dia, junto da demissão de mais de mil funcionários no Santander em dezembro de 2012.
O tema tem repercutido bastante na última semana, com diversas reportagens, publicações com relatos pessoais em redes sociais, vídeos de youtubers com reflexões sobre essa medida e o impacto no mercado de trabalho.
Venho relatar o meu caso pessoal com algumas reflexões sobre a dinâmica de trabalho no banco. Não poderei me aprofundar em detalhes do meu trabalho para dificultar a identificação.
Trajetória
Fui funcionário por três anos, começando como estagiário de análise de dados em uma área bem dinâmica ligada a clientes pessoa física. O interesse em entrar na empresa, enquanto estudante de ciências exatas, foi pela fama de ter no mercado os melhores benefícios, estabilidade e bom “clima” organizacional comparado aos bancos pares. Ao entrar, fui bem recebido pela equipe, que tinha média de idade parecida, além da maioria ser egresso de faculdades públicas. Usávamos a “metodologia ágil” pelo método Kanban, que é um sistema de acompanhamento de atividades intenso, em que todos os dias mostrávamos as atividades despriorizadas, as em andamento e as por fazer. Nosso trabalho consistia em análise de grande quantidade de dados financeiros de virtualmente todos os brasileiros, monitorando indicadores como inadimplência, comprometimento de renda, problemas com impeditivos e traçando estratégias para rentabilizar mais o negócio.
A dinâmica da equipe propiciou que a relação entre meus colegas se fortalecesse. Logo descobri que vários também eram de esquerda, tinham críticas ao banco e aos seus valores propagados pela área de endomarketing — que usa termos como “Itubers” e “CredLovers” para se referir aos funcionários, algo que sempre ironizamos. Em 2022, estávamos todos em home office por consequência da pandemia. No segundo semestre de 2023 foi anunciada a implementação gradual do modelo híbrido, em que teríamos que trabalhar 2 dias semanais no escritório em São Paulo a partir de 2024. Isso gerou bastante revolta entre os funcionários do banco, pois muitos teriam que se mudar de cidade para frequentar o escritório ou começar a fazer longas viagens. A medida foi encarada como um retrocesso, mas ainda assim o banco estava à frente dos seus pares em termos de benefícios, então a indignação foi acompanhada por certa resignação.
Ao conhecer melhor meus colegas nos dias de trabalho presencial, ficaram ainda mais claras nossas afinidades. Boa parte desses dias de escritório eram de conversas aleatórias, que poderiam variar de gostos pessoais até temas espinhosos como política. Via o hábito de trabalho de meus colegas de cargos superiores, que tinham um método consolidado de “enrolação” de atividades. Nesse período criamos um grupo sem chefes no WhatsApp.
Com o passar do tempo, a minha relação com a gestão foi se deteriorando um pouco, pois o período máximo de 2 anos de estágio estava se encerrando e não havia sinalização de que seria efetivado como CLT. Decorrente disso e de alguns atritos ligados ao microgerenciamento — já me foi chamada a atenção até por “não sorrir” numa reunião — organizei com meus colegas uma espécie de boicote. O banco tem uma métrica de avaliação de satisfação dos funcionários chamada eNPS (Employee Net Promoter Score), que impacta os bônus recebidos pelos gestores diretos. Escolhemos dar em conjunto avaliações baixas nesse questionário como forma de crítica ao retorno do trabalho presencial, ao isolamento da área em relação à visibilidade no trabalho, à hipocrisia dos valores do banco e falta de perspectivas de carreira. Foi uma das possibilidades que tínhamos para “causar”. O resultado foi que ficamos com a nota mais baixa de nossa Comunidade (mais de 400 funcionários), nossa gerente se viu obrigada a se mudar rapidamente para não sofrer represálias e a nossa equipe foi desmembrada em equipes separadas, gerando uma reestruturação interna.
Apesar disso, continuamos em contato pelo nosso grupo, que começou a funcionar como uma “rádio peão”, compartilhando fofocas, desabafos e novidades de nossas áreas.
Pouco depois desses eventos recebi uma proposta para atuar como efetivo CLT em uma outra área do banco ligada às finanças, entrando em contato com o sistema de orçamento e questões regulatórias. A dinâmica nessa nova área era muito diferente da equipe anterior, com uma equipe bem mais enxuta e um ritmo de trabalho bem menos intenso. A equipe tinha problemas para contratar profissionais com meu perfil técnico e trabalhava um tema e processo muito específico, que dificilmente alguém aprenderia a fazer estudando apenas a teoria. Dado isso, meu gestor tinha um perfil muito mais “relaxado”, dando prazos de dias ou semanas para realização de algumas atividades, sem realizar comunicação tempestiva comigo e com meus pares, nos dando um voto de confiança para realizar o trabalho e resolver os “B.O.s” que eventualmente surgissem. Não era uma equipe com muita visibilidade e não havia grandes projetos ou perspectivas de crescimento acelerado, então o clima mais flexível era informalmente uma moeda de troca, gerando piadas inclusive do gestor sobre isso.
Após o ciclo anual de 2024, recebi uma avaliação positiva do meu trabalho pelos meus pares e pelo gestor, que disse que me considerava um membro importante da equipe e sugeriu que continuasse no caminho que estava seguindo. Pessoalmente, estava com desejo de migrar de área para uma com um escopo mais interessante e outras perspectivas de carreira. Entretanto, me sentia confortável na equipe e planejava fazer essa mudança no médio prazo.

Reflexões sobre as demissões
As coisas transcorriam normalmente até que fui surpreendido com a notícia do meu desligamento no dia 8 de setembro, pouco mais de um ano como CLT. Eram 10h e meu gestor me chamou para uma videochamada. Disse que a notícia era ruim, que foi avisado no final de semana que havia um registro incompatível de meu tempo de tela e meu ponto eletrônico, e que por isso eu seria desligado. Disse também que não deram detalhes das situações envolvidas, mas que ele “entendia os dois lados”. O irônico é que meu chefe já comentou que enquanto coordenador foi para Balneário Camboriú para “trabalhar” (com olhar irônico) durante sua despedida de solteiro, e mandava mensagens do tipo “sexta-feira, 15h: quem fez, fez…” brincando num grupo do Teams. A rescisão foi sem justa causa e eu não precisaria trabalhar o restante do mês, recebendo minhas verbas rescisórias integralmente.
Abandonei imediatamente os projetos que estava envolvido e as outras três pessoas da equipe teriam que se virar para assumir o que eu fazia e cumprir uma meta de eficiência irrealista que a superintendência havia definido para nós. Após cerca de 1 hora, percebi que meu caso não havia sido individual, e começaram a pipocar nos grupos os relatos de pessoas demitidas e que receberam apontamentos (registro negativo) sobre a falta de tempo de tela no home office. A repercussão começou a ser crítica à decisão do banco, que sem nunca ter anunciado um critério claro de tempo de tela irregular, soltou uma nota dizendo que a decisão foi por sua “ética inegociável”.
Em termos práticos, foi uma jogada inteligente. Eles avaliaram que necessitavam realizar um corte de pessoas, e inclusive sinalizaram isso diversas vezes em reuniões de diretoria. Nelas, já ouvi de executivos coisas como “a IA não vai roubar seu emprego, mas alguém que sabe usar IA vai roubar”, “nossa despesa com pessoal pode diminuir” e elogios ao Santander por ter uma política eficiente de redução de custos. Depois, precisavam de um critério e uma justificativa “ética” para tal decisão, lembrando bastante outras demissões menores que fizeram em anos recentes, como a demissão por fraudes no plano de saúde, por inconsistência de geolocalização no ponto eletrônico e até política de outras empresas como a Meta, que realizou um layoff no fim de 2024 sob a justificativa de “fraudes no vale refeição”. Ao fazer isso, também tenta criar a ideia na cabeça das pessoas que ficaram de que “é só fazer a coisa certa que não serei atingido”. Houve um comunicado interno do banco justificando a decisão e os gestores diretos se esforçaram para melhorar o clima nos dias após o ocorrido.
Porém, o ponto fraco da estratégia e que forma uma grande fissura na narrativa foi o método usado: a demissão em massa, indiscriminada, num só dia. Vários dos relatos indicam que boa parte dos funcionários tinham boas avaliações, foram recém promovidos ou ganharam prêmios por desempenho recentemente. Indicam também que muitas pessoas com deficiência foram afetadas, algumas com problemas de mobilidade e paralisia, como pude testemunhar num depoimento. Por que o Itaú se recusou a realizar um diálogo anteriormente?
Por trás da decisão “ética” está a “eficiência”, o “fazer mais com menos”. Agora a intensidade do trabalho tende a aumentar para quem ficou, que pode se encontrar num estado de alerta paranoico sobre seus próprios movimentos no computador, sem conseguir se sentir seguro mesmo com boas avaliações da gestão direta. Para a surpresa de ninguém, descobri que minha vaga não será reposta.
E no tema da produtividade, essa decisão representa um novo pacto no teletrabalho, com possíveis repercussões no mercado. Ela é a repressão de uma das supostas facetas do home office: uma maior autonomia do trabalhador sobre a forma de se trabalhar, que pode propiciar um efetivo menor tempo de trabalho. Não se estará mais a mensurar apenas as entregas como produção, mas o quanto você investe de energia vital na sua máquina as 8 ou 10 horas de trabalho diário que você realiza. No fundo se trata da contínua luta entre capital e tempo de vida, que tem tido diferentes repercussões a nível mundial nos últimos tempos, com as lutas pela diminuição do tempo de trabalho tomando cena. Foram publicados alguns relatos de demitidos no fórum brasileiro r/antitrampo, no Reddit, que é a versão brasileira do fórum norte americano r/antiwork.
Infelizmente o sindicato não tem tentado desenvolver esse potencial no atual contexto do Itaú, realizando falas e ações protocolares, mais visando a projeção de sua direção do que as vozes dos trabalhadores. Até o momento as únicas propostas são uma ação judicial pela readmissão dos demitidos, sob a alegação de que uma demissão massiva deveria ser discutida com o sindicato antes e outra ação de danos morais coletivos contra o banco por ter justificado as demissões por quebra de confiança e abstencionismo. Na reunião online que fizeram 11/09 disseram para quem tivesse dúvidas “favor procurar atendimento individual junto ao sindicato”.

No dia de hoje, 17/09, o sindicato realizou um bloqueio no CEIC (Centro Empresarial Itaú Conceição), o maior escritório do banco em São Paulo. Entendo como uma radicalização que responde à uma demanda dos trabalhadores em realizar denúncias, buscar auxílio jurídico e pedir ações de reparação. Porém, poderiam fazer reuniões mais abertas para chamar os atingidos para apoiar esse protesto de alguma forma.
Ao mesmo tempo, a repressão a uma forma individual de luta dos trabalhadores — a diminuição da intensidade e duração do trabalho — leva-os a buscar formas mais coletivas e explícitas de enfrentamento. Em certo sentido é surpreendente o crescente número de relatos dos atingidos em sites como o LinkedIn, tendo coragem de levar o ocorrido a público, criticar a empresa e se defender. Talvez seja a oportunidade de ligar essa indignação com as realidades das agências físicas e digitais, que são a linha de frente do banco, onde a pressão por metas faz com que os bancários tenham que empurrar produtos desnecessários ou enganar clientes para atingi-las. Um ex-trabalhador do banco demitido de agência criou uma página de relatos anônimos chamada @vozesbancarias há pouco tempo, tendo algumas publicações que dialogam com a situação das demissões em massa.
Aliás, a própria resistência individual muda de forma: agora os colegas de banco já comentam: “não copio mais nenhum código, dígito tudo!”, “vale a pena ressuscitar os processos manuais, acabou o estímulo para a automatização”. Novas artimanhas são criadas para simular produtividade e evitar represálias.
Os problemas dos trabalhadores no setor bancário e de tecnologia tendem a ser canalizados para vias individuais de solução: busca de novos empregos e cargos que paguem mais, qualificações e certificações constantes. No limite do enfrentamento, vem as vias judiciais. A maioria dos trabalhadores que trabalham mais de 6 horas para bancos podem realizar o processo trabalhista pela 7° e 8° hora, sob a pena de ficarem na lista negra das instituições financeiras em caso de vitória. Geralmente alguém faz isso quando está decidido a sair do setor bancário.
O momento atual propiciou uma oportunidade para imaginar ações além disso. Vêm, contudo, as questões: terão os trabalhadores disposição e coragem para romper o controle do sindicato e se organizar de forma direta por um objetivo de reparação, denúncia ou até reintegração? Os trabalhadores que ficaram tendem a participar nesse processo de denúncia ou ficarão acuados, mais pressionados pela mudança de contexto e absorvendo o discurso do banco que tem como consequência um esquecimento conveniente da situação?
Mais de mil pessoas estão vivendo um dia de cada vez, com os rumos de vida completamente alterados do dia para a noite. É nesse dia-a-dia que as respostas vão sendo construídas. A indignação é forte e pede uma resposta à altura.







Minha solidariedade aos trabalhadores demitidos e aos que ficam.
A cara de pau do Itáu de falar em quebra de confiança! Que confiança?! Nunca houve confiança! É o que deixa mais do que claro o fato de colocar programas de monitoramento nos computadores (sem que os funcionários fossem avisados do que que eles capturavam).
E o capitalista tende (para não dizer nunca) confia no trabalhador porque sabe que o trabalhador é um subordinado, explorado, que só está ali porque tem que vender sua força de trabalho para sobreviver. O capitalista sabe que está roubando a vida do trabalhador.
Que o Itaú tenha usado essas métricas de input no computador para dar uma justificativa socialmente aceitável, mostra ao mesmo tempo a irracionalidade do modo de produção capitalista. Por terem exposto aos funcionários que esses inputs (que não possuem com os outputs, com a produtividade), forçam os trabalhadores a desviarem parte dos seus esforços da produção e aumento de produtividade para o cumprimento de métricas de uso de memória do computador, movimento do mouse, teclado etc (como esse e outros relatos sobre a demissão deixam claro). É a produção como simulação. Métricas (signos) que já não possuem referentes. O capitalismo é um sistema de produção ou de dominação?
Um livro muito bom, que infelizmente não foi traduzido para o português, se chama The Tyranny of Metrics, de Jerry Z. Muller. Pode ser baixado no libgen. Aponta a frequente irracionalidade do uso de métricas (índices quantitativos) para avaliar trabalho. Nos EUA a guerra do Vietnã era avaliada pelo número de mortos. O uso de métricas descoladas do trabalho real se amplia na era dos gestores genéricos, na era das Sociedades Anônimas, quando gestores pulam de uma empresa a outra, sem terem conhecimento do setor e do trabalho envolvido. Elas em geral, cada vez mais, não servem à produção, mas sim para manter o quadro de hierarquia, para manter uma dominação e posições sociais. E suma, elas servem à reprodução, não à produção.