Greves e recusa ao trabalho nos EUA e no mundo: novo ciclo de lutas?

Por Passa Palavra

 

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Os Estados Unidos têm testemunhado este ano a maior onda de greves em décadas, em todo o território nacional. E surge também agora um novo fenômeno, batizado como The Great Resignation, caracterizado por demissões em massa ou pela recusa do retorno ao trabalho conforme vai chegando ao fim a epidemia de covid-19, fazendo com que os capitalistas daquele país deparem com uma escassez de mão de obra. Desde abril deste ano, 20 milhões de trabalhadores pediram demissão, 4,3 milhões somente em agosto – um recorde mensal que representa cerca de 2,9% da força de trabalho americana. Além disso, trabalhadores que perderam seus empregos durante a pandemia têm se recusado a voltar aos antigos empregos, caracterizados por baixos salários e precárias condições de trabalho. Alguns dos setores mais atingidos são o pequeno comércio varejista e os setores de hotelaria, restaurantes e lazer. E para somar a este cenário, existe um grande aumento no número de aposentadorias: no terceiro trimestre de 2020, cerca de 3,2 milhões de americanos da geração dos “Baby Boomers” (nascidos entre 1946 e 1964) se retiraram da força de trabalho, um acréscimo de mais de 100% em relação a 2019.

Para trazer de volta os trabalhadores, os patrões têm sido obrigados a atender às suas reivindicações e oferecer salários significativamente mais altos, o que ocorre tanto nos estados onde o auxílio emergencial continuou a ser pago pelo governo quanto nos estados onde ele foi cancelado, contrariando os republicanos, para quem o pagamento do auxílio estimularia a recusa ao trabalho. A situação se agrava ainda mais por conta da atual retomada econômica, fazendo com que a falta de mão de obra impeça as empresas de satisfazerem a demanda. O medo da pandemia é certamente um fator, bem como o fato de que em muitos lugares as escolas e creches continuam fechadas, mas, para Paul Krugman, a verdadeira explicação reside no fato de que “o desordenamento do trabalho criado pela pandemia foi uma experiência de aprendizado. Muitas das pessoas afortunadas o bastante para poderem trabalhar de casa perceberam o quanto detestavam ir de casa ao trabalho a cada dia; algumas das pessoas que trabalhavam no setor de lazer e hospitalidade perceberam, em seus meses de inatividade forçada, o quanto odiavam seus velhos empregos”. Além disso, segundo Danny Nelms, presidente da consultora Work Institute, “a pandemia durou tanto que está afetando mental e fisicamente as pessoas. E essas coisas fazem com que as pessoas comecem a repensar suas vidas, carreiras e trabalho. A isso soma-se o fato de que há 10 milhões de novas empresas sendo abertas, ou seja, não é tão difícil mudar de emprego se se quiser”. Há também outro fator. Por décadas o mercado de trabalho tem sido remodelado no sentido do aumento da informalidade e da precarização, e a inflação tem corroído os salários e benefícios trabalhistas.

É nesse contexto que tem ocorrido a ofensiva atual dos sindicatos, que têm convocado greves massivas, e a demissão em massa ou recusa de milhões de trabalhadores em voltar ao trabalho. Com isso inverte-se a tendência predominante desde os anos 1980. Nos anos 1960 e 1970, ápice do último grande ciclo de lutas autônomas de trabalhadores, as pessoas se demitiam mais facilmente. Desde os anos 1980, porém, os trabalhadores passaram a aceitar empregos ruins, temerosos de que o sistema de seguridade social não os sustentasse até que conseguissem trabalho.

Greves e recusa ao trabalho nos EUA e no mundo: novo ciclo de lutas?

A situação, porém, não se restringe aos Estados Unidos. Em 38 países membros da OCDE, há 20 milhões de trabalhadores a menos em atividade do que antes da pandemia. 14 milhões abandonaram o mercado de trabalho, nem trabalham nem buscam emprego. E em comparação com 2019, há 3 milhões de jovens a mais entre os que não trabalham e não estudam. Na Alemanha, por exemplo, segundo Detlef Scheele, diretor da Agência Federal de Emprego, seria necessário importar 400 mil trabalhadores qualificados por ano para compensar a escassez verificada em vários setores, como empresas de tecnologia sustentável, frigoríficos e o setor hoteleiro. Contribuiu para isso o fechamento de fronteiras devido à pandemia, que privou o país, e também a Dinamarca, de trabalhadores vindos do Leste Europeu. Também aí será necessário aumentar os salários para que os trabalhadores aceitem voltar ao trabalho. A China também tem sofrido com a escassez de mão de obra, inclusive no setor de tecnologia, situação crítica, sobretudo na conjuntura atual de retomada, com o aumento da demanda mundial por produtos vindos do país.

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Nesse contexto surge um curioso fenômeno na rede social Reddit: o grande crescimento de um “sub” (comunidade/fórum) chamado “Antiwork”, que se propõe a ser um espaço de promoção de ideias pela abolição do trabalho sob o capitalismo e para incentivar e apoiar lutas em locais de trabalho. A autodescrição do “sub” é esta: “um subreddit para aqueles que querem parar de trabalhar, que se interessam pelo fim do trabalho, que querem obter uma vida o mais livre possível do trabalho, querem obter informações sobre ideias antitrabalho e precisam de ajuda em seus próprios empregos ou lutas relacionadas ao emprego”. E seu índice contém mais detalhes, onde a comunidade resume seu objetivo: “o objetivo de r/antiwork é iniciar um discussão, problematizar o trabalho como o conhecemos atualmente”.

Recentemente o fórum tem ganhado projeção na mídia americana por incentivar trabalhadores a se demitirem de empregos com condições indignas, com muitos posts virais de prints de conversas entre patrões e empregados. Ao que parece esta tendência de demissões tem gerado resultados, como diz este trecho de uma matéria veiculada no site Yahoo News: “Derek Thompson, do The Atlantic, sustenta que esse movimento de demissões sem precedentes já está resultando em ganhos para os trabalhadores: os salários estão aumentando no maior ritmo desde a Grande Depressão, de acordo com os índices de crescimento monitorados pelo Federal Reserve Bank”.

Atualmente a comunidade conta com quase 900 mil membros e é, nos últimos dias, a que mais cresce entre todas as milhares de comunidades no Reddit, aparecendo inclusive por várias vezes na página inicial da rede social. Olhando para o contexto em que tal fenômeno ocorre, a rede social Reddit parece um local mais propício, em comparação com outras redes sociais, ao surgimento de novas formas de inter-relacionamento entre trabalhadores, pois além de ter uma base enorme de usuários, é focada principalmente em textos, discussões e iniciativas realizadas de forma anônima, sem identificação pública dos usuários. É claro que deve-se ter em mente que o Reddit é uma empresa e que também tem suas formas de vigilância sobre os usuários, além de dinâmicas semelhantes às de outras redes sociais. Entretanto, é preciso refletir se isto tudo seria mais uma das formas de ação da velha toupeira, ou talvez um meio para que centenas de milhares de toupeiras tentem encontrar uma saída.

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Apesar de tudo isso, é preciso observar os acontecimentos com cautela, pois, em primeiro lugar, as redes sociais parecem ter convertido tudo, inclusive as lutas, em modas: é certo que as modas podem ser mais ou menos duradouras, mas o que as caracteriza essencialmente é a superficialidade, razão por que se difundem rapidamente e têm livre trânsito entre as classes sociais. Serão as demissões em massa uma moda passageira? E serão os trabalhadores, no atual ascenso de greves, capazes de superar a direção e os entraves impostos pelas burocracias sindicais, ou por outras burocracias que possam substituí-las? Cabe considerar, neste sentido, que apenas 12% da força de trabalho americana é sindicalizada.

Em segundo lugar, parece haver um foco exacerbado nas relações de opressão, bem ao gosto do identitarismo, por exemplo quando a justificativa para a demissão é a existência de chefes e ambientes de trabalho “tóxicos”, numa personalização do problema. Ora, as lutas exclusivamente focadas nas opressões, na personalização de problemas e no denuncismo, em vez de consistirem numa ruptura com o capitalismo, por meio de lutas autônomas propriamente ditas, tendentes à ruptura com as relações de exploração e focadas na autogestão da produção econômica, são, na verdade, um aperfeiçoamento dos mecanismos da concorrência pelos próprios trabalhadores, o que é encarado como uma forma de militância. Isso parece ser, aliás, um desdobramento do toyotismo, que assimilou a capacidade de iniciativa e criatividade dos trabalhadores, tendo agora como subproduto o aperfeiçoamento da competição entre trabalhadores pelos próprios trabalhadores. As demissões em massa serão engolfadas por uma onda de denuncismo e conflitos intraclasse trabalhadora? Além disso, parece haver atualmente uma obsessão com a livre redesignação e realocação de si mesmo (ainda que essa realocação seja, em certa medida, um dado objetivo do capitalismo contemporâneo), e com uma autodeterminação ultraindividualista e avessa à colaboração em relações potencialmente conflituosas, o que acaba levando a uma infantilização do adulto, que não aceita relacionar-se com quem possa contrariá-lo e, deparando com situações de conflito, encontra como válvula de escape a redesignação (pela via das identidades) ou a realocação (circunscrevendo sua atuação a espaços aparentemente livres de contradições, onde a pessoa se relaciona consigo mesma ou com outras com que se identifica). Estarão os trabalhadores não apenas renunciando ao trabalho precarizado e mal remunerado, mas também ao conflito, justamente naqueles espaços onde ele se manifesta mais diretamente? Neste aspecto, podemos ainda considerar estas tendências como reflexos da diminuição das lutas e greves em locais de trabalho nas últimas décadas nos EUA, o que faz com que uma parcela muito expressiva dos trabalhadores, principalmente os mais jovens, tenha pouca ou nenhuma experiência em lutas coletivas no mundo do trabalho.

Do ponto de vista dos capitalistas, há quem esteja olhando de forma positiva o fenômeno de aumento de demissões e compartilhamento de críticas aos empregos, como uma continuidade na reestruturação que atualmente ocorre nos locais de trabalho: “Tanto as chefias quanto os empregados estão reimaginando a forma como trabalhamos. É um tempo onde todos estão repensando tudo”, diz Daniel Shapero, COO da LinkedIn, ao comentar sobre a grande onda de demissões.

Greves e recusa ao trabalho nos EUA e no mundo: novo ciclo de lutas?

No sentido da assimilação das lutas, o problema das redes sociais também está profundamente relacionado ao toyotismo, pois já não se trata de barreiras físicas e ritmos frenéticos a impedir a organização dos trabalhadores, como no fordismo, mas sim de uma sedução, de mobilizar para outras coisas, ou para nenhuma, mas com a lógica de ocupar o tempo morto e dar espaço à criação intelectual. Assim até a conspiração pode ser um passatempo, algo sobre o que se fala, se cria uma estética, toda uma produção que habita a mente individual de cada usuário e nada mais. Será que nesta nova modalidade de ambiente antissocial não será possível o surgimento de comportamentos disruptivos e que questionem de forma radical os processos de trabalho?

Outro elemento a ser considerado é a negação do trabalho, que toma o lugar da negação das relações de exploração no trabalho, o que converte os militantes de esquerda, em especial no meio libertário, em apologistas do ócio. Ora, a apologia do ócio constitui um dos entraves às lutas, na medida em que difunde entre os militantes a noção de que as lutas são autônomas quando eles podem decidir livremente quando vão (ou se vão) assumir tarefas e responsabilidades, quando vão (ou se vão) se mobilizar e agir. Incapazes de exercer a autonomia pela autogestão no âmbito da economia e pela participação política irrestrita através da democracia direta, não apenas em instâncias decisórias vinculadas ao Estado, mas também em instituições controladas pela esquerda burocrática, e muitas vezes deparando com graves dificuldades para uma inserção estável no mercado de trabalho, os trabalhadores podem acabar encarando como única possibilidade de autonomia a recusa “autônoma” ao trabalho, tanto no âmbito das empresas quanto no âmbito da militância, introduzindo um fator de permanente desmobilização. Será esse o destino desse movimento massivo de greves e demissões?

Por fim, parece estar muito presente, nessa onda de recusa ao emprego, um sentimento (ou melhor, ressentimento) de “basta!”, algo que tanto os identitários quanto a extrema-direita fascista sabem muito bem explorar. Serão os trabalhadores capazes de evitar essa armadilha?

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As artes que ilustram o texto são da autoria de Matthew Barney (1967-).

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