Por Isadora Guerreiro e Débora Ungaretti

No último dia 8 de setembro foram presas em suas casas as duas principais lideranças da Favela do Moinho, Alessandra Moja e sua filha, Yasmim Moja Flores, além de mais 9 pessoas da comunidade. Cenas de violência invadiram a favela ao alvorecer daquele dia. Pelos relatos, além da injustiça das prisões e das acusações, a polícia forjou a existência de drogas na casa de Alessandra, sem se preocupar em esconder o ato, pelo contrário, deixando ostensivamente explícito que estava fazendo aquilo; seguiram-se cenas de tortura física e psicológica, com uso de choque elétrico. Apesar da semelhança, não era um porão da ditadura militar — mas podemos dizer que a resistência histórica da Favela do Moinho no centro de São Paulo é exemplo contundente de que muitas pessoas “ainda estão aqui”, apesar da brutalidade a qual estão cotidianamente submetidas pelo Estado. Desde então, o medo e a apreensão com a violência desproporcional tomou conta de quem ainda está na favela, o que tem acelerado a saída de famílias e pessoas mesmo antes de receberem o atendimento habitacional.

Particularmente em uma gestão do Governo do Estado de São Paulo que sabemos a filiação, e que no dia anterior à prisão das lideranças declarou publicamente durante a manifestação da direita nas comemorações da independência brasileira — regado à bandeira americana na Av. Paulista — apoio incondicional àqueles julgados e condenados no último dia 11 de setembro por Golpe de Estado. O grito dos policiais ao entrarem na Favela do Moinho na manhã seguinte foi bastante significativo: “vocês ainda estão aqui?!”.

Não sabemos se os policiais assistiram ou não ao filme, mas seria uma citação bem colocada. Eles se referiam, no caso, ao acordo feito entre os governos estadual e federal para a desocupação da área, que comentamos na última coluna — na qual terminávamos justamente analisando que, independente do acordo de atendimento habitacional, as famílias seriam removidas a todo custo e com urgência. O processo violento de limpeza social — esse sim de necessidade absoluta do Governo do Estado — não estava sendo interrompido pelo Governo Federal, como se propagandeou à época, mas mediado por forças que, no fim ao cabo, deram instrumentos para a aceleração do processo.

A favela já está em ruínas, com cerca da metade da sua população deslocada. Os que “ainda estão ali”, dizem que aguardam a tramitação de sua documentação para o atendimento habitacional pelo Governo Federal e pelo Governo do Estado, temendo a violência policial, prisões em flagrante forjadas, e sair sem garantias. Evidentemente não parece ser apenas uma falta de comunicação entre a polícia e a CDHU, ou entre o Governo Federal e Estadual a questão: parece tratar-se de movimento típico do poder estatal na qual o emaranhado burocrático e a espera infinita, por um lado, e a repressão violenta, por outro, se combinam para negar qualquer tipo de saída digna. Aqui, a violência não é mera externalidade, mas parte constituinte desse processo de reestruturação urbana usado como dispositivo para eliminar um território popular e reconfigurar a correlação de forças no poder — aqui em uma escala bastante ampla, que sai do Moinho e chega na disputa nacional.

Alessandra e Yasmim foram denunciadas por associação ao tráfico de drogas, acusação que mantém atualmente preso o irmão de Alessandra, Leo do Moinho — que dominaria, pelo PCC, o “ecossistema do tráfico de drogas” na região vizinha da dita “cracolândia”. A luta por garantia de atendimento habitacional que corresponda às necessidades habitacionais das famílias, reconhecida e apoiada por movimentos sociais, entidades e coletivos que atuam historicamente pelo direito à moradia e a cidade, e universidades, dentre outros, foi desqualificada como defesa dos interesses do referido “ecossistema”. Digno de nota é o timing da polícia — que retoma, acompanhada pelo GAECO (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), a ampla operação Salus et Dignitas do Ministério Público iniciada em agosto de 2024 para a eliminação da “cracolândia” e que, notoriamente, não investiu contra estas lideranças naquele momento.

Timing este que se dá logo após a megaoperação da Polícia Federal no dia 28 de agosto que articulou as operações Quasar e Tank com a Carbono Oculto do próprio GAECO do MP de SP. Neste dia, foi a vez da Av. Faria Lima, coração empresarial-financeiro de São Paulo, amanhecer sob investida da ação policial — um tanto mais comportada do que os porões da ditadura que reapareceram na casa de Alessandra, claro. A Faria Lima aparecia então dentro de outro “ecossistema” criminal, também ligado ao PCC — cujo dinheiro ilícito se mostra espalhado por toda a economia. A investida no Moinho logo após essa operação parece uma resposta, como que a (re)lembrar que bandido mesmo é quem está na favela… e se articula com o campo da esquerda, claro.

Pois de “ecossistema” em “ecossistema”, o dispositivo de criminalização vai sendo acionado, evidentemente, de forma política. O timing inclui um mês para a abertura dos envelopes da concorrência internacional da concessão da Parceria Público-Privada (PPP) de transferência da sede do Governo do Estado para a mesma regiãotiming esse que também está recaindo sobre as famílias das pensões das quadras onde será implantado o projeto, que estão sendo pressionadas individualmente pela CDHU a iniciar a desocupação a partir de 20 de setembro, após aderirem ao atendimento habitacional oferecido.

O mesmo timing inclui o calendário eleitoral federal e estadual que começa a se acirrar justamente nas duas figuras políticas maiores que estão disputando a narrativa do Moinho: Lula e Tarcísio, cujo evento do 7 de setembro praticamente colocou este último como candidato da direita, em meio à semana de condenação de Jair Bolsonaro. Não à toa, a imprensa soltou reportagens em seguida à prisão das duas lideranças do Moinho com fotos delas junto a Lula e a Boulos no dia do acordo sobre a destinação habitacional das famílias do Moinho, com chamadas bastante explícitas: “Vídeo: Lula dividiu palco com presa por tráfico na Favela do Moinho” ou “Líder comunitária que preparou visita de Lula extorquia moradores”. Guilherme Derrite, secretário de Segurança Pública de SP, também fez questão de fazer tais conexões em suas redes sociais, bem como outros políticos da direita, como Kim Kataguiri.

O jogo de escalas aí está bem grande, ainda assim Alessandra, Yasmim e as demais pessoas presas, bem como as famílias que permanecem no Moinho, resistem para não sucumbir a ele, apoiadas por enorme rede de proteção — que inclui academia, advogados populares, coletivos variados, imprensa autônoma, movimentos populares e partidos e mandatos legislativos à esquerda. A repressão ao ato que se seguiu a sua prisão, realizado em 10 de setembro, foi expressão desse jogo de escalas desproporcional. Embora com poucas pessoas, o ato nem bem saiu da Favela do Moinho e já foi interceptado e dispersado com bombas de gás. Mesmo depois da dispersão, a polícia se dirigiu ostensivamente a um estabelecimento comercial no qual parte dos apoiadores se reuniram, capturou e conduziu coercitivamente um dos ativistas, ex-deputado estadual, que justamente tinha buscado interlocução com a polícia durante o ato para negociar o seu andamento, e assim evitar violência e dispersão. Afinal, tal rede de apoio também está na mira: segundo matéria do G1, “os promotores afirmam que o grupo criminoso manipulava e financiava movimentos sociais que atuam na favela para dificultar a remoção das famílias”. Sem apresentar indícios ou provas, se reproduz a narrativa criminalizante que apoia o aprofundamento das alianças entre repressão estatal e negócios nos territórios do centro de São Paulo.

A situação em que chegamos é bastante grave. O que está ocorrendo em toda a região de Campos Elíseos em São Paulo não deve ser entendida apenas como mais um novo projeto de reestruturação urbana, ou ainda como guerra às drogas ou sua variante de “fim da cracolândia”. Isso tudo existe na região há muito tempo, mas nunca chegou ao grau de conflito e à escala de forças políticas que estamos assistindo. A articulação entre todos esses aspectos, na mão de um candidato à presidência que representa o bolsonarismo eficiente de face técnica e empresarial, com uso estratégico das forças de repressão — que inclusive transitam muito bem entre a legalidade estatal e a ilegalidade miliciana — deveria chamar a atenção de quem se preocupa com a ascensão da extrema direita.

Um dos aspectos mais preocupantes é a ampla legitimação social das ações de repressão na região, em torno do binômio valorização imobiliária e guerra às drogas — que ganha adeptos num espectro social muito maior do que o próprio bolsonarismo. Em outro momento eu falava da guerra às drogas como cortina de fumaça para o verdadeiro objetivo das forças estatais: avançar com domínio territorial em áreas que, por sua história e processo de produção urbana, se conformaram como espaços regidos por outras normatividades e lógicas sociais que impediam o avanço dos negócios. No Rio de Janeiro, cidade que eu tratava naquele momento a partir da chacina na Favela do Jacarezinho em 2021, o mecanismo das operações policiais parecia servir para a entrada de milícias em territórios antes dominados por facções do tráfico de drogas. Ali já ficava clara a articulação entre repressão estatal e negócios, num enfrentamento com lógicas comunitárias de produção dos territórios, onde o próprio lugar de mediação política e organização popular passou a ser tomado pelas milícias.

Em São Paulo, Tarcísio já percebeu que a coisa é diferente, pois o PCC atua de outra forma em relação às facções cariocas: ao invés de ter domínio territorial, atua em redes de negócios dispersos, articulando empresários e empreendedores variados e, portanto, diluindo as fronteiras entre a economia formal e as informais ou ilícitas. Assim, o Governo do Estado sabe muito bem que destruir um território popular com as clássicas armas da reestruturação urbana — agora financeirizada por meio das PPPs — não desestrutura uma organização internacional como o PCC.

Não tem nada a ver com o PCC, muito menos com as drogas. Tem a ver com um projeto político-econômico em curso, no qual a articulação empresarial-militar parece fazer cada vez mais sentido e ter consequências muito práticas e nefastas para todos aqueles que insistirem em “ainda estar ali”, resistindo. A criminalização da luta por direitos e da existência da Favela do Moinho escancara o significado do repertório que vem sendo construído pelos movimentos negros e abolicionistas penais de que “toda a prisão é uma prisão política”. Reiteramos que Alessandra e Yasmim são presas políticas, antes de mais nada. Toda mobilização em torno da sua liberdade é necessária nesse momento, por quem “ainda está aqui”.

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