Por Primo Jonas

O que a flotilha “Global Sumud”, que recentemente navegou em direção à Gaza bloqueada pelas forças israelenses, e a invasão dos prédios governamentais em Brasília e em Washington por manifestantes de extrema-direita têm em comum?

Em tempos de internet, uma tal provocação tem grande potencial de gerar indignação de ambos os lados do espectro político e, assim, lucrar fortemente com os engajamentos com muito pouca profundidade. O que importa é o impacto da indignação, marcar posição ridicularizando os oponentes, dar uma sensação de última palavra e, depois, ignorar rotundamente qualquer desenvolvimento do tema. O golpe precisa ser rápido: como num esquema “rug pull” de criptoativos, é preciso gerar um interesse abrupto no tema e depois desaparecer com os louros colhidos. O debate sério e sustentado não gera engajamento e não mobiliza. Perda de tempo.

Façamos, então, como quem analisa as redes sociais, ignorando totalmente os conteúdos do que circula, e atentemos puramente às formas da circulação, para ver o que elas podem nos dizer.

Voltemos então à comparação do inicio do texto. Podemos identificar grupos grandes de pessoas, em boa parte desconhecidas entre si mas unidas por um propósito, uma espécie de pequena multidão mobilizada por um objetivo político. Que similaridades podemos enxergar na estrutura desses propósitos políticos? São lutas que reproduzem a passagem bíblica de Davi versus Golias, em que a obstinação e a nobreza do ato inspiram a simpatia por aqueles que aparentam ter menos chances de ganhar. Atualizado aos dias de hoje, é um pequeno grupo humano lutando contra poderosas instituições do status quo.

O mais importante, no entanto, costuma estar escondido atrás daquilo que é mais evidente. A força destes eventos está em sua transmissão. Afinal, o que teriam conseguido qualquer um destes eventos se eles fossem comunicados ao mundo somente algumas semanas depois de sua ocorrência? Podemos dizer que são atos performáticos de justiça, pois são atos justos, capazes de impor ao mundo concreto os preceitos éticos e morais aos olhos de quem os realiza e de quem os apoia de maneira remota. São excelentes exemplos daquilo que chamamos “ação direta”.

Na tradição de luta política radical podemos resgatar, a modo de comparação, a proposta da “propaganda pela ação”. Ela buscava incitar ideais e práticas políticas por meio do exemplo de ações de indivíduos ou pequenos grupos, ações que encerram nelas mesmas uma radicalidade rupturista. Ações sem volta atrás, de compromisso e entrega plena dos indivíduos aos seus ideais. Mas algo separa os anarquistas do fim do século XIX, ou os islamistas de poucas décadas atrás e de hoje ainda, destas pequenas multidões que estamos tentando entender. O forte apelo ideológico que leva ao compromisso e entrega plena prescinde de espectadores; a justiça é para o indivíduo que a realiza aqui e agora. Já no caso de nossas pequenas multidões, as ações eram reproduzidas em tempo real para o mundo inteiro, e não apenas para que o mundo inteiro as testemunhasse, senão para transmitir ao mundo inteiro o significado, as intenções e os detalhes daquilo que estava sendo feito.

Nostalgia de um tempo mais autêntico? De uma política sem espetáculo?

Não, para isso não é necessário escrever textos. Este é o mundo que estamos habitando, nós que estamos vivos aqui e agora. A autogestão, que na história do século XX foi talvez o principal ato de justiça performática, ação direta transformadora e criadora de um novo mundo, foi circunscrita dentro dos limites humanos deste aqui e agora. Nos limites de uma pequena multidão qualquer, isolável do resto da humanidade. A assembleia de fábrica e os conselhos operários já não expressam a vanguarda da inteligência coletiva humana, o potencial criativo e transformador de uma nova sociedade. O aqui e o agora hoje são outros.

As redes sociais estão forjando uma lógica onde o sentido e a direção das ações políticas são disputadas incessantemente. Qualquer pequena multidão é criação de conteúdo, independentemente do que mais ela seja, uma criação de conteúdo que parece propor aos seus espectadores a participação em algo maior. O que elas propõem? Reproduzir de forma “molecular” as mesmas ações ali realizadas? Incentivar um engajamento individual em ações menores e adaptadas a cada realidade? Ambas as coisas podem ser certas, e também outras mais. Com tantas revoltas e insurreições pipocando pelo mundo, por onde percorrem os mesmos títulos (“Geração Z”), personagens (Guy Fawkes, Coringa) e bandeiras (a mais recente é a bandeira pirata do desenho animado “One Piece”), tem sido difícil apresentar um resultado claro das violências de massas nas ruas. Elas parecem ser agora uma parte comum da dinâmica do poder nos mais diferentes países, ao invés de presságio de profundas transformações sociais, como a esquerda costumava pensar no século XX.

O convite à ação destas “pequenas multidões” é reprovável? Certamente não. Mas o que ressalta é como essa dinâmica das redes sociais substitui as instâncias de debate e deliberação coletivas, sobrepondo uma eterna urgência (catastrofista, humanitária, militante, moralista) da ação e, assim, arrastando outras pequenas multidões de um lado a outro.

Para quê ser cabeça-dura e rejeitar inteiramente este estado de coisas? Sempre existiram e sempre existirão líderes, humanos cujas características individuais e cujas circunstâncias históricas terminam por forjá-los como catalisadores de processos coletivos. Mas de onde eles vêm? Por qual mecanismo são controlados pelos demais? Neste aspecto, as redes sociais são muito menos transparentes e muito mais manipuláveis que um sindicato, que uma liderança comunitária, figuras de ciclos de luta anteriores. Hoje vemos muitos setores da extrema-esquerda guinando para uma política de redes sociais, buscando criar seus próprios influencers. O processo é tão vertiginoso que há casos em que os influencers se revelam mais poderosos que o próprio partido do qual dizem participar, invertendo a equação.

A disjuntiva que ainda está posta sobre a mesa para a extrema-esquerda é entre disputar as redes ou seguir habitando a irrelevância, como se as métricas das redes sociais expressassem o poder de uma pauta. O problema que subjaz é de ordem moral, pois habitar a irrelevância política é uma tarefa árdua e sem glória, com a qual é difícil entusiasmar-se e para a qual é difícil convocar novas pessoas. Isso também explica a sedução, em nosso meio, de discursos militaristas e, no extremo, nacionalistas, como grito de desespero contra a irrelevância no plano das ideias. A alternativa branda é consumir conteúdo de indivíduos heroicos que podem, eles sim, realizar atos épicos que redimam o resto de nós, em nossa impotência diária.

Central na estratégia destas ações heroico-espetaculares é a resposta das poderosas instituições do status quo: um passo em falso, um erro de cálculo pode ter como resposta a entrada em jogo de novas pequenas multidões e a transformação destas em multidões incontroláveis. Lanço a hipótese de que estamos vendo apenas os primeiros ensaios deste tipo de estratégia, e seus efeitos, à esquerda e à direita, são difíceis de prever.

As imagens que ilustram este artigo foram geradas por Inteligência Artificial

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here