Por Primo Jonas
Rolando Astarita, professor de economia da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires, recentemente publicou em seu blog um breve texto onde reforça o credo ortodoxo marxista que encontra no ouro a “encarnação do valor”. Para Astarita, a “bárbara relíquia”, o ouro em sua função monetária, permanece em nossos dias por um motivo estrutural, não acessório.
Alguns fenômenos vão ao auxílio do credo: os Bancos Centrais pelo mundo afora vêm aumentando suas reservas de ouro, em particular a China, e o precioso metal se ofereceu como um porto seguro de liquidez em todas as últimas crises econômicas. Instituições deste porte acumulariam sem motivos essa quantidade de pedra dourada em seus cofres? A segurança do ouro nas crises é um comportamento irracional atávico?
Para fazer polêmica com outras interpretações sobre o fenômeno monetário, Astarita afirma que apenas os marxistas ortodoxos acreditam que o ouro “continua tendo uma função monetária no capitalismo contemporâneo”. Se limpamos um pouco o estilo polemista, podemos entender que para o professor apenas os marxistas ortodoxos continuam acreditando que o ouro é a base da função monetária no capitalismo contemporâneo, e nisto ele estaria correto.
Em épocas de Bitcoins e NFTs, seria uma displicência tomar partido em uma discussão para afirmar que algo não é dinheiro. Por mais que doa aos seguidores mais fiéis a Marx, muito se avançou nos estudos sobre os mercados monetários e financeiros, assim como estes têm sofrido repetidos ciclos de regulamentação e inovação. Partimos da seguinte claridade: não se trata de discutir se o ouro é dinheiro ou não no século XXI. A verdadeira discussão por trás da defesa da ortodoxia diz respeito ao fundamento do dinheiro em geral.
Conservando esse estilo fiel a Marx, o professor ignora a vasta disciplina da antropologia econômica e nos convida a pensar que o dinheiro “surge das contradições da mercadoria”, como se não houvesse dinheiro antes das mercadorias, como se o dinheiro – e especialmente o ouro! – no capitalismo não fosse também uma herança do dinheiro que precedeu o atual modo de produção. O dinheiro não é uma instituição capitalista. E o ouro não é essa figura bíblica, uma mercadoria que é mais mercadoria que todas as demais, e que portanto pode redimi-las. O ouro como “encarnação de valor” é essa mercadoria especial, equivalente geral, e é a única que pode cumprir uma contradição: seu valor é determinado antes de chegar ao mercado, à diferença de todas as demais.
Mais que teoria, justificação do estado de coisas herdado. Marx observou o papel do ouro em sua época e o caracterizou corretamente como dinheiro mundial. O ouro foi útil para estabilizar o comércio exterior e impulsionar o mercado global que Marx conheceu e estudou. Algo ocorreu nessa história que o esquema monetário internacional do padrão-ouro deixou de funcionar, os países já não estavam tão de acordo sobre as regras da integração comercial internacional. A intensificação das políticas fiscais e monetárias nos âmbitos nacionais desarranjou os equilíbrios que o padrão-ouro facilitava nas finanças internacionais. Pois bem, depois veio o dólar para fixar o valor do ouro, de 1945 até 1973, depois o dólar passou a um câmbio variável em relação ao ouro, e hoje já o dólar parece ameaçado como dinheiro mundial hegemônico.
Como se fosse pouco, lá por 2008 surgem as criptomoedas, ou moedas baseadas em blockchain, a tecnologia “cripto-contábil”, ou de registro distribuído, que vem sendo promovida inclusive por Bancos Centrais. A existência de um tipo de dinheiro digital “nativo”, nascido e criado por meio de uma lógica digital e não apenas replicado, está diretamente relacionada com a digitalização dos meios de pagamento. De fato, um dos grandes atrativos das criptomoedas é a facilidade e anonimidade dos seus fluxos. O dinheiro ainda será muitas coisas além de uma contradição da mercadoria, talvez ele siga existindo num mundo onde já não existirão as mercadorias. O ouro definitivamente já não cumpre o papel que tinha antes, com sua capacidade de gerar atividade econômica nas colônias, expandir o mercado internacional, financiar os mercados de valores. Hoje em dia o ouro já não cumpre muitas destas funções, ao menos não de maneira hegemônica: uma variação do dólar afeta a economia global, uma variação do ouro é uma curiosidade para investidores. Pode-se também ir ao centro de uma grande cidade cosmopolita com 0,1 grama de ouro 24k e tentar pagar o seu almoço com esse ativo que é liquidez em estado puro.
Explicar o dinheiro hoje fundamentando sua natureza a partir do ouro é propor ao debate um formato bizantino, completamente alheio à experiência cotidiana da classe trabalhadora. O mais próximo que ela vê do ouro é quando tem que vender as joias da família. A digitalização é um dos fenômenos que mais transformou o dinheiro nos últimos tempos. O teletipo foi inventado em 1867, ainda durante a vida de Marx, e já então as operações bursáteis supunham um sistema de comunicação veloz. Hoje na maior parte do mundo é comum que pessoas pobres tenham acesso a meios de pagamento digitais, os celulares são ubíquos.
Quando o Bitcoin alcançou fama mundial e presidentes de Bancos Centrais discutiam o que fazer ante o surgimento das moedas em blockchain, progressistas e esquerdistas falavam da “falta de lastro”, “esquema de pirâmide”, “bolha especulativa”. Oras, as últimas duas grandes bolhas financeiras foram do mercado imobiliário e das dotcom, empresas inventando serviços por internet. São dois mercados com enorme influência nos rumos do capitalismo contemporâneo (bem representados por Trump e Bezos). Foram bolhas que de nenhuma maneira varreram do mapa o seu conteúdo purulento. Concentração de capital, destruição criativa. O professor Astarita pode ficar tranquilo e conservar sua poupança no caixa-forte do seu banco. Não perderemos a fé no valor de seu ouro. O que deveríamos fazer, e rápido, é deixar de adorar a Marx como um bezerro dourado. Nunca é tarde para abandonar velhos esquemas e pensar com mais liberdade.
As imagens que ilustram o artigo são fotografias da obra de Ai Weiwei.






Primo Jonas, você chegou a ler Marx? Ou só o que leu quem diz que leu Marx? Quando ler, se já não leu, e se jé leu, talvez reler de forma mais detida, seria bom se atentar para a questão do método:
“O concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade de diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. (…) Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-se em si, movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, e reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma como gênese do próprio concreto.” (MARX. Grundrisse. Ed Boitempo, 2011: 54)
“Quando, portanto, aqueles que se profissionalizam em ‘ultrapassar Marx’, falam de uma ‘falta de precisão conceitual’ em Marx, de ‘simples imagens’ em vez de ‘definições’ etc., oferecem um espetáculo tão desolador quanto a ‘crítica de Hegel’ por Shopenhauer e a tentativa de apontar nele ‘erros lógicos’: apresentam o espetáculo de sua total incapacidade para compreender pelo menos o abc do método dialético. Mas um dialético consequente perceberá nessa incapacidade não tanto a oposição entre métodos diferentes, mas um fenômeno social, que ele refutou e superou dialéticamente, compreendendo-o como fenômeno social e histórico.” (LUKÁCS. História e Consciência de Classe. WMF Martins fontes, 2012: 60)
Marx não funda apenas uma escola no campo da economia. Marx, antes de tudo, mais importante ainda, funda (ou melhor, dá continuidade, nos oferece o próximo passo) uma forma de pensamento. É afinal filosofia!
Quanto a este trecho aqui: “Conservando esse estilo fiel a Marx, o professor ignora a vasta disciplina da antropologia econômica e nos convida a pensar que o dinheiro “surge das contradições da mercadoria”, como se não houvesse dinheiro antes das mercadorias, como se o dinheiro – e especialmente o ouro! – no capitalismo não fosse também uma herança do dinheiro que precedeu o atual modo de produção. O dinheiro não é uma instituição capitalista.” Fiquei na dúvida se o autor quis imputar que Marx ignora o processo histórico e simplesmente dá um salto para considerar o “dinheiro [enquanto simples meio de troca/circulação de mercadorias] como uma instituição [original e exclusivamente] capitalista”. Em Grundrisse há um capítulo pesado que trata só (o que é muita coisa) da questão do dinheiro. Compartilho aqui uma gotinha de que interessa a Marx: “Chegamos aqui à questão fundamental, que não se relaciona mais com o ponto de partida. A questão geral seria: as relações de produção existentes e suas correspondentes relações de distribuição podem ser revolucionadas pela mudança no instrumento de circulação – na organização da circulação? Pergunta-se ainda: uma tal transformação da circulação pode ser implementada sem tocar nas relações de produção existentes e nas relações sociais nelas baseadas? (…) Além disso, haveria de investigar, ou caberia ANTES à questão geral, se as diferentes formas civilizadas do dinheiro – dinheiro metálico, dinheiro em papel, dinheiro em crédito e dinheiro-trabalho (este último como forma socialista) – podem realizar aquilo que delas é exigido sem abolir a própria relação de produção expressa na categoria dinheiro (…).”(MARX. Grundrisse. Ed Boitempo, 2011: 74) Acho que as boas perguntas são essas.
Sobre a questão do ouro em si, olhe como Marx abre aqui uma portinha: “Mas SOMENTE A AÇÃO SOCIAL PODE FAZER UMA MERCADORIA DETERMINADA UM EQUIVALENTE UNIVERSAL. A ação social de todos as outras mercadorias exclui uma mercadoria determinada, na qual todas elas expressam universalmente seu valor. Assim, a forma natural dessa mercadoria se converte em forma de equivalente universal válida. Ser equivalente universal torna-se, POR MEIO DO PROCESSO SOCIAL, a função especificamente social da mercadoria excluída. E assim ela se torna – dinheiro [!].”. (MARX. O Capital. Ed. Boitempo, 2013: 161).
liv, que bacana que você pegou Lukacs e os Grundrisse para ler!
Mas veja bem, eu não sou partidário dessa prática exegética. Marx não ignora “o processo histórico”, ignora a parte da história humana na qual o dinheiro não era uma mercadoria do tipo “equivalente geral”, ou sequer uma mercadoria.
Aproveito para compartilhar uma coluna do Financial Times que saiu publicada no mesmo dia que este texto, e que aponta para os meios de pagamento como um foco de disputa importante no presente e no futuro:
https://www.removepaywall.com/search?url=https://www.ft.com/content/df996352-1614-40ca-979c-797be02f4717
Liv,
me desculpe, mas acho que você abordou o problema pelo lado errado. Você defende o método de Marx, e está correta nisso; Primo Jonas — e eu também, como demonstrarei mais para a frente — trata não do método, mas dos resultados a que Marx chegou em sua pesquisa sobre a história e natureza do dinheiro. Deixe-me ver se me explico melhor.
Primo Jonas, que tem um ou dois pés lá pela bacia do Prata, polemiza não com Marx diretamente, mas com este artigo de Rolando Astarita, aliás indicado explicitamante no texto. Ao fazê-lo, polemiza com um campo do trotskismo argentino próximo ao PTS/FT-QI, que no Brasil se representa pelo MRT que anima o Esquerda Diário. (Astarita saiu do PTS nos anos 1990 criticando-o, mas, convenhamos, é fruta que não caiu muito longe do pé.)
A polêmica movida por Primo Jonas, novamente, não diz respeito tanto a Marx, mas com a posição de Rolando Astarita, comum a muitos marxistas e encontrável no próprio Marx em certas passagens, de que moedas fiduciárias e sua falta de lastro afastam-se da economia real e compõem a chamada “economia especulativa”.
Tal afastamento se deveria, para Astarita, justamente à falta de lastro da moeda em ouro — que Astarita tenta argumentar, com base em flutuações do mercado de ouro, que “segue tendo um papel monetário no capitalismo contemporâneo”. Daí Astarita recorrer a uma expressão de Keynes, para quem o lastro do dinheiro em ouro seria uma “bárbara relíquia”, mas entra em contradição ao dizer seguir uma afirmação do trotskista belga Ernest Mandel, para quem “o preço do ouro… é o recíproco do papel moeda. No atual regime de troca de ouro, o preço do ouro representa o valor do dólar fixado pela Reserva Federal dos Estadus Unidos relativamente ao ouro”. Bastou isso para a coisa toda começar a dar voltas em falso, porque, para Astarita (seguindo Mandel), o preço do ouro expressa o valor que lhe é dado por uma moeda fiduciária. Daí em diante, o artigo já está perdido no que se propunha a defender.
Mas voltemos a Marx, citado muito de passagem por Astarita. Que tem ele a ver com essa polêmica?
Na obra de Marx, sobre moeda, assim como há passagens, digamos, “relacionistas” tanto nos Grundrisse quanto em O Capital, há outras claramente “essencialistas”, que estabelecem certas mercadorias como tendo propriedades naturais que as fariam o equivalente geral ideal. Veja-se algumas passagens nessa mesma linha “essencialista” tiradas do capítulo “O processo de troca” do livro I de O Capital, na tradução da Boitempo (copiei do PDF, por isso as citações vão sem páginas):
Daí em diante, Marx começa o capítulo sobre “O dinheiro ou a circulação de mercadorias” dizendo que “neste escrito, para fins de simplificação, pressuponho sempre o ouro como a mercadoria-dinheiro”, e assim segue pelo resto inteiro de O Capital.
Em resumo: para Marx, o ouro e a prata são a forma de equivalente universal por natureza, porque precedidas historicamente por trocas de mercadorias particulares que, por sucessivas abstrações e comparações entre seus respectivos valores, conduziram a um equivalente universal de valor cujas propriedades físicas teriam-no tornado o candidato ideal a tal lugar. Tais trocas, é claro, teriam se dado mediante relações sociais historicamente determinadas, pela ação social; tal afirmação, verdadeira quanto à forma, quanto o método com que Marx apreende o processo histórico, não diz muito quanto aos resultados dessas descobertas, que ele expôs o mais pormenorizadamente possível em O Capital. Para usar um vocabulário técnico da economia: Marx é, no que diz respeito à teoria da moeda, fundamentalmente um metalista.
Marx aplicou um método correto a pressupostos equivocados, ainda que historicamente condicionados; por isso, chegou a más conclusões quanto ao dinheiro. Algumas razões:
1) A teoria momentária assumida por Marx foi tributária dos debates econômicos dos séculos XVI a XVIII, que giravam em torno das posições mercantilistas, fisiocratas e dos primórdios da economia liberal clássica. Ainda não havia dinheiro tal como o entendemos hoje (papel-moeda, dinheiro estritamente contábil, dinheiro eletrônico, etc.), muito menos as instituições que hoje gerenciam o funcionamento da emissão e circulação de dinheiro (bancos centrais, o BIS, o sistema SWIFT, etc.), em que a ruptura com o padrão-ouro em 1971 tornou inútil o debate sobre o lastro em ouro, porque transformou toda moeda, na prática, em moeda fiduciária. Os problemas colocados para Marx naquele momento histórico diziam respeito — por exemplo — à desvalorização do ouro e da prata pelo influxo de metais preciosos extraídos nas Américas pelas potências coloniais; ao debate sobre o chamado chamado debasement, ou seja, a desvalorização da cunhagem pela redução da porcentagem de ouro ou prata em moedas circulantes que mantinham o mesmo valor nominal, debatendo os economistas se isso resultava ou não em inflação; entre outros. Marx não tinha a menor condição de responder a problemas que são nossos; invertendo a via, não podemos assumir todos os problemas postos a Marx como se fossem nossos, sem um mínimo de reflexão crítica sobre sua pertinência atual, ou sobre os vieses próprios daquele tempo. A teoria monetária assumida por Marx pressupunha que o dinheiro resulta do intercâmbio de mercadorias até a formação de um equivalente geral; que esse equivalente geral ficou estabelecido como sendo o ouro (e também a prata), porque (historicamente, segundo Marx) se tratava de metais capazes de suportar enorme fracionamento sem perdas expressivas; que ouro e prata foram sendo paulatinamente desusados como mercadorias propriamente ditas (porque seria impossível valorar o ouro com base no ouro), até se cristalizar seu uso como equivalente geral e depois dinheiro cunhado.
2) Como corolário da teoria econômica que adotou (seja para assumir, seja para criticar), Marx tratou o papel-moeda e o dinheiro a crédito (títulos de crédito, letras de câmbio, notas promissórias, etc.) como meras expressões do valor do ouro, criticando pesadamente John Locke e John Law por considerarem “imaginário” o valor do ouro e da prata, e V. de Forbonnais, Montesquieu e Hegel por considerarem o valor do dinheiro como “estritamente simbólico” (ou seja, sem lastro em metais preciosos); acusou-os todos, com base em Giovanni Francesco Pagnini, de “sicofantas para o poder real, cujo direito de falsificação de moedas eles sustentaram, durante toda a Idade Média, com base nas tradições do Império Romano e no conceito de dinheiro dos Pandectas”. Esse pressuposto metalista é assumido acriticamente por qualquer marxista ortodoxo que se preze (incluindo Rolando Astarita, cujo artigo Primo Jonas critica), resultando daí, ainda em Marx, uma crítica ferrenha a qualquer forma de “capital fictício” (assunto que já rendeu bastante debate aqui, aqui, aqui, aqui, aqui…).
3) Marx estudou a formação do dinheiro a partir de fontes que não avançaram muito além do que se sabia sobre história econômica por volta dos anos 1850; se estudou o que talvez existisse então de mais avançado e interessante sobre o assunto, tudo isso hoje é completamente ultrapassado. A historiografia econômica e a antropologia econômica posteriores a Marx, em especial a partir do final do século XIX, foi construindo muito robustamente provas históricas de que a troca de mercadorias pressuposta por Marx e pelos economistas que o antecederam nunca existiu historicamente (esse pressuposto é conhecido hoje como “mito do escambo primitivo”). Conferir especialmente, para ficar apenas nos clássicos, Philip Grierson (The silent trade, 1903), Bronislaw Malinowski (The primitive economics of the Trobriand islanders, 1911), Gustav Cassel (Theory of Social Economy, 1918), Georges Davy (La foi jurée, 1922) e, mais famosamente, Marcel Mauss no polêmico, fragmentário e incompleto Essai sur le don (1925), onde chegou a dizer: “Jamais parece ter havido, nem até uma época bastante próxima de nós, nem nas sociedades muito erradamente confundidas sob o nome de primitivas ou inferiores, algo que se assemelhasse ao que chamam a Economia Natural”, sendo “economia natural” outro nome para uma economia baseada no escambo. Mais recentemente, Jean-Michel Servet, economista radicado no CNRS francês, chegou a fazer uma historiografia do “mito do escambo primitivo” (La fable du troc, 1994, e Le troc primitif, 2001), mostrando como ele só surgiu a partir do século XVIII pelas mãos de Cesare Beccaria, Adam Smith e do fisiocrata Turgot, que o haviam adotado de relatos de viajantes que retornavam das Américas, da África e da Oceania; naqueles relatos, o mito fora criado para “explicar” a existência de certas formas de moeda e de crédito nessas sociedades, sempre por meio de abstrações baseadas no comportamento individual de pessoas baseadas naquelas das sociedades europeias de onde vinham esses viajantes. Na antropologia econômica atual, o mito é maldito; para apresentar um exemplo entre muitos, Anne Chapman (Barter as a universal mode of exchange, 1980) esmiúça o problema do “mito do escambo” até demonstrar que o dinheiro e o crédito sempre foram mais generalizados do que se imaginava, que muito do que se apresentava como “escambo” eram, na verdade, relações já medidadas por formas muito específicas de dinheiro próprias a cada sociedade, e que o escambo provavelmente nunca existiu na forma como o mito o apresenta, porque sempre se tratou de um “leito de Procusto” (expressão minha), de um modelo abstrato que nunca levou em consideração os fatos realmente verificados. Caroline Humphrey levou a questão mais adiante, demonstrando (em Barter and economic disintegration, 1985) que o escambo só é verificável empiricamente em condições socioeconômicas específicas lá onde já existia dinheiro, e que nunca foi descrito um só exemplo de economia realmente existente baseada no escambo puro e simples, quanto mais a emergência do dinheiro a partir dele.
4) O modelo abstrato imposto pelo “mito do escambo primitivo” pressupunha que dentro de uma determinada comunidade dita “primitiva” as pessoas faziam trocas entre si tal qual se faz hoje numa cidade moderna. A evidência historiográfica, arqueológica, linguística e cultural (mitos, lendas, história oral, etc.) demonstra, ao contrário disso, que dentro de uma mesma comunidade não havia escambo (ou seja: troca com base em equivalência de valor de objetos diferentes), reservando-se o tipo de troca mais próxima do que previa o modelo do escambo — mediante inúmeros rituais e precauções — para encontros com comunidades mais distantes, onde era literalmente impossível (por muitas razões: violência, guerra, dádiva, hospitalidade, potlacht, etc.) estabelecer equivalências de valor entre “isso” e “aquilo”. O que se verifica como fenômeno mais geral, com pretensão de universalidade, não é o surgimento de um equivalente geral como resultado de relações de trocas reiteradas, mas sim o aparecimento de unidades de conta com as quais se registrava obrigações, tributos, multas, compensações; em outras palavras, não é a troca de mercadorias quem exigiu um equivalente universal, mas a dívida social quem exigiu um denominador comum. Dívida e crédito precedem a mercadoria em milênios. Sociedades antigas funcionaram milhares de anos com moedas puramente contábeis, sem metal envolvido. Sistemas monetários lastreados em muitas formas de contabilidade de dívida e crédito podem funcionar sem lastro físico — e efetivamente funcionaram por milhares de anos antes da emergência do mercantilismo de onde Marx herdou seu metalismo. A estabilidade desses sistemas monetários dependeu de redes de confiança, rituais de compensação, mecanismos de crédito moral, não da produtividade do ouro ou de trocas reiteradas. Por essa via, a troca de mercadorias é apenas uma forma muito tardia de relação econômica, não o fundamento de todas. O foco marxista na mercadoria e sua troca obscurece práticas não-mercantis, economias de dádiva e instituições sociais baseadas em honra, dívida moral e reciprocidade verificadas empiricamente por todos os lados onde surgiram sistemas monetários muito anteriores ao lastro em ouro. Por esta perspectiva — muito próxima, aliás, da de Piotr Kropotkin, que não chegou a avançar tanto na mesma linha mas chegou quase lá — o dinheiro é sempre, desde o início, regulação de dívidas em um contexto de autoridade política baseada na força e na violência atual ou potencial. Deste modo, porque dependente de uma concepção equivocada quanto à origem histórica da mercadoria e da troca, a teoria marxista da moeda não se pode pretender geral, mas apenas — ao contrário do que o próprio Marx pretendeu — como teoria ad hoc para explicar o surgimento do capitalismo em certas áreas da Europa, não em outras. Teorias ainda mais recentes — p. ex., Patrick Spread em Economics, anthropology and the origin of money as a bargaining counter (2022) — vão numa linha bastante diferente (dinheiro como métrica de influência social em ambiente competitivo, não como meio de troca), mas partem da mesma crítica ao “mito do escambo primitivo” e da “economia natural” que está na raiz da teoria marxista da moeda.
5) Esse tipo de crítica ao mesmo tempo historiográfica e antropológica bate de frente com certos marxistas que, na tentativa de salvar a teoria marxista do dinheiro, argumentam que Marx nunca pretendeu criar uma “teoria geral” do dinheiro e da mercadoria; argumentam que se trata de uma teoria local, historicamente situada, construída por Marx apenas para demonstrar os limites da teoria econômica mainstream e conceituar o capitalismo por contraste com outros modos de produção meramente esboçados. O próprio Marx demonstra o contrário; além de fazer muitos elogios à teoria do valor de… Aristóteles (sim, o filósofo grego), buscou fundar sua teoria da mercadoria e da moeda em dois exemplos históricos muito anteriores ao capitalismo — e errou nos dois, por falha das fontes. Quando Marx repetiu o mantra da “antiga comunidade indiana” onde “o trabalho é socialmente dividido sem que os produtos se tornem mercadorias”, teve como fonte os Historical Sketches on the South of India (1810) de Mark Wilks e a Modern India (1852) de George Campbell; são dois livros fundamentais para a construção do mito da “aldeia indiana autárcica milenar”, verdadeiros “fósseis vivos” infensos a fatores como mobilidade social, migrações, colapso de unidades aldeãs por guerras, secas, expansão agrícola, castas, patriarcado, servidão por dívida, resistência camponesa, conflitos agrários, insurgências rurais etc., bastante destacados pela historiografia hindu mais recente — p. ex., Introduction to the study of Indian history (1956), de Damodar Dharmananda Kosambi; The agrarian system of Mughal India, 1556–1707 (1963), de Irfan Habib; e Material culture and social formations in Ancient India (1983), de Ram Sharan Sharma. Com efeito, se Marx jamais poderia saber do que se escreveu depois de sua morte, não se pode dar crédito acrítico a historiografia ultrapassada sem ser cúmplice de erro. Na mesma linha, Marx tratou muito de passagem da formação de mercadorias no “Estado inca”, mas errou tanto ao considerar aquele ente político como um Estado, quanto ao desconhecer como a contabilidade avançada de um sistema complexo de reciprocidades nos khipu dispensou o uso de moeda no regime da mita, sendo pouquíssimos vestígios arqueológicos do que pode ter sido algum dinheiro encontrados apenas na costa dos Andes centrais e do norte, onde pode ter sido usado apenas para que uma incipiente classe de mercadores (p. ex., da cultura Chincha) realizasse comércio de longa distância com povos polinésios e do atual México para abastecer kurakas com bens de prestígio de circulação quase nula. (Sobre esse assunto, segui boas pistas de um comentário escrito por “Chaski” aqui no Passa Palavra.) Se Marx errou nos dois exemplos particulares, ao tentar situar historicamente a transformação de valores de uso em valores de troca acertou parcialmente ao estabelecer que “a troca de mercadorias começa onde as comunidades terminam: no ponto de seu contato com comunidades estrangeiras ou com membros de comunidades estrangeiras”; mas errou ao supor que se tratasse de “mercadorias”, pois não havia troca equivalente com o estrangeiro, nem circulação mercantil interna ampla dos bens nas comunidades. Ao estabelecer que “a partir de então, as coisas que são mercadorias no estrangeiro também se tornam mercadorias na vida interna da comunidade”, errou mais uma vez.
Já me estendi bastante, e creio ter demonstrado o que precisava. Apesar de a teoria da moeda em Marx ser completamente ultrapassada no que diz respeito aos resultados a que Marx chegou aplicando seu método, isso não implica superação de sua teoria da exploração, tampouco do próprio método. Resta aplicá-lo aos resultados a que novas investigações chegaram para tentar recompor uma teoria monetária digna desse nome — pois assim a teoria da exploração seria a base de toda a economia, não apenas uma decorrência da transformação do trabalho em mercadoria. Quem tentou, ainda que fragmentariamente, avançar no sentido de uma nova teoria do valor que levasse em conta esses novos desenvolvimentos foi o finado David Graeber, ainda que de modo ensaístico, pouco sistemático e bastante fragmentário. É uma boa trabalheira, para quem se interessa pelo assunto.
Que tem tudo isso a ver com o acúmulo de ouro pela China desde pelo menos 2023? A meu ver, tudo. Em termos estritamente geoeconômicos, basta olhar o que deixou o governo americano mais preocupado: esse acúmulo de ouro (que é real, factual e incontroverso)? Ou a simples possibilidade que o dólar deixasse de ser usado em transações comerciais bilaterais entre países, com a possível criação de uma “moeda dos BRICS”? Os dois fenômenos são parte de um mesmo processo, mas quem percorrer o noticiário recente encontrará facilmente a resposta.
Eis por que, Liv, desse ponto de vista que adoto, acho que você abordou o problema pelo lado errado. Espero que tenha conseguido me fazer entender, porque o assunto é, realmente, meio nebuloso, tanto em seus detalhes quanto em suas consequências práticas.
Primo Jonas, ler não é só legal, é honesto. Se eu quero tecer críticas, eu preciso antes ler na fonte. Para criticar Schumpeter e seu estouro de boiada, eu também me propus a lê-lo. Para criticar Weber e Durkheim, idem. No campo do pensamento social brasileiro não me bastou ler Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes, deliciosos! Precisei também ler aqueles que me reviraram o estômago, como, por exemplo, o sociólogo da acomodação social nacional por dissolução aparente do conflito, o miscigenista Gilberto Freyre. Quando parei para ler Durkheim, o fiz movida por um sentimento enorme de má vontade pronta para atacá-lo a cada esquina. Li As Regras do Método Científico e Da Divisão do Trabalho Social, falta ler O Suicídio. E no final, olhem só que bizarrice, não posso dizer que saí da leitura convertida ao “Durkheimnianismo”, mas foi por pouco! Desde então passei a acionar Durkheim com frequência, principalmente para apontar que a esquerda deveria ser mais patológica do que criminosa, que a nossa esquerda, a sua ala mais radical, é, quando muito, apenas criminosa. A diferenciação que Durkheim faz entre aquilo que é crime (fato social não apenas espero, como desejado) e aquilo que é patológico (anomalia social a ser combatida) na sociedade é super útil! Enfim Primo Jonas, não é só legal: uma questão de honestidade intelectual. Além do mais, a colocação feita às tais prática exegética (o que em alguns casos pode até ser) está mal colocada, é reducionista, impertinente, afasta o leitor do tema principal e fere de forma desnecessária, sem objetividade, suscetibilidades.
De resto, me calo satisfeita pelos comentários muito bem colocados, inclusive naquilo que fica em aberto, por Manolo.
Que por sinal… O que seriam dos autores sem os seus tradutores, não é mesmo? Manolo, novamente você nos sai um bom tradutor (muito mais do isso, melhor!) e eu só teria ficado mais satisfeita se o teu comentário estivesse ocupando o espaço de artigo e o artigo de Primo Jonas o espaço de comentário. Talvez eu não tivesse nem entrado nesta polêmica! O meu comentário foi justamente no sentido de que, com uma frequência ruim a tradução se confunde com autoria ao ponto de não conseguirmos mais localizar o que de fato o autor disse (e seu comentário foi ótimo para desanuviar a polêmica) e acabamos orbitando em torno do que são apenas ruminações de tradutores que se limitaram a ler outros tradutores (o que não é só comum entre trotskistas, mas é também um hábito que notei nos departamentos de ciências sociais das universidades que já frequentei: USP e UNICAMP).
De qualquer forma, e talvez ao menos nisso estejamos de acordo, depois de Aristóteles e Hegel, Marx nos oferece um próximo passo. O grande trunfo da teoria de Marx é seu método histórico-materialista-dialético. Em nenhum momento defendi que Marx é a última palavra para tudo (disse apenas que Marx, além de nos oferecer um método, nos faz perguntas incômodas e nos abre algumas portinhas de continuidade ou, quem sabe, correções, o que de forma alguma contradiz seu método), e tampouco disse que é possível aplicar ipsis litteris o que se disse há mais de um século a realidade material atual. E eu jamais diria isso, até porque uma fala como essa seria anti-dialética, anti-marxista. Me parece que nem Marx se defenderia com tanto fervor religioso, até porque Marx tem por princípio se debruçar sobre a história, sobre a realidade (e não sobre a ficção, sobre a abstração, e não é por acaso que copiei aqui especificamente a crítica que Marx faz à dialética Hegeliana).
Não tenho mais comentários. Não li David Graeber. Vou ler para só então, em uma próxima oportunidade (e espero que o Passa Palavra continue a nos oferece-las), comentar.
Liv,
David Graeber não é exatamente uma “unanimidade”, por razões que já falei: é ensaístico, fragmentário, pouco sistemático, tem umas ideias geniais que desenvolve pouco, pula de um assunto para outro sem estabelecer muito bem as conexões…
O que gosto muito nele é que escreve com graça — mesmo que algumas piadas se percam nas traduções — e escolhe sempre as polêmicas certas. Ele vai onde dói, revira tudo, sacaneia todo mundo e nos deixa com muito mais perguntas do que respostas. É a esculhambação como método científico de agitação política. Só quem já o viu ao vivo pega a visão — e agora só via Youtube, porque infelizmente morreu cedo. Para se divertir bastante, procure lá um debate entre ele e Peter Thiel.
Que acadêmico “sério” se perguntaria por que entramos nos anos 2000 e ainda não andamos nos carros voadores que os Jetsons nos prometeram?
Que acadêmico “sério” faria uma pesquisa sobre “trabalhos de merda” (bullshit jobs) e “vagas arrombadas” (shit jobs)? Que acadêmico “sério”, na mesma paulada, criaria categorias de “trabalhos de merda” extremamente operacionais como “baba-ovo” (flunky), “brabo” (goon), “magáiver” (duct taper), “enxugador de gelo” (box ticker) e “coach de rolê” (taskmaster)?
É que Graeber estava esculhambando tudo de uma vez só. Ao mesmo tempo atacava o alvo, instabilizava a “seriedade” e o formalismo acadêmico, implodia a noção de que um vocabulário técnico para ciências sociais precisava ter cara de grego (anomia, poliarquia, práxis etc.) ou latim (habitus, persona, homo sacer etc.), e ria feito a porra com tudo isso.
Ao mesmo tempo, e talvez por isso mesmo, Graeber conseguia trazer para um público mais amplo problemas, debates, conceitos e categorias que, deslocadas de seu lugar acadêmico original e de sua função estritamente teórica, jogavam luzes diferentes sobre problemas políticos do presente. Permitia um olhar menos dogmático, menos “quadradão”, sobre tudo isso que estamos vivendo.
Mas é justamente por elevar a esculhambação a um patamar científico que Graeber se perde. Porque provocador, ele às vezes generaliza ou interpreta evidências históricas de forma um tanto simplista, às vezes mesmo especulativa. Ele tem aquela mania de antropólogo de fazer “grande história universal” com umas generalizações meio apressadas sobre “humanidade” ou “civilização” baseadas em estudos de casos específicos ou sociedades relativamente bem documentadas; com isso, tende a ignorar variações regionais e contextuais importantes. Suas análises, além disso, não incorporam plenamente modelos econômicos, sociológicos ou antropológicos complexos, correndo o risco de romantizar sociedades pré-capitalistas.
De um modo ou de outro, é uma leitura muito interessante para quem se deixa provocar. Foi o meu caso. Graças ao Dívida: os primeiros 5.000 anos, fui atrás da antropologia econômica e saí encontrando tudo isso de que falei no comentário. Graças ao Towards an anthropological theory of value, comecei a integrar essas leituras a uma crítica atualizada à teoria do valor, bem melhor do que seria se eu me prendesse — em campos ideológicos e teóricos muito diferentes — a Marshall Sahlins, Jürgen Habermas, Eduardo Viveiros de Castro ou Alfred Sohn-Rethel. Graças ao Bullshit Jobs e ao The utopia of rules, pude rever alguns elementos essenciais da crítica à burocracia, desta vez de modo muito mais direto e aplicável ao nosso dia-a-dia que, digamos, numa leitura de Max Weber. E me diverti muito, se é que se pode divertir com um livro de ciência social. São meus gostos estranhos, mas é isso.
Recomendo muito ler David Graeber, com essas precauções. Ou nenhuma, senão a piada perde a graça.
Manolo,
Se faltam braços, mãos e pernas neste site, por que insistir com comentários maiores que o texto original?
Porque sim, uai. E por que não?