As denúncias de escândalos revelam mais o ressentimento do que o espírito de classe, e sempre que isto sucede o risco do fascismo não anda longe. Por João Bernardo
A recente publicação no Passa Palavra de um artigo sobre a actuação de Miguel Cadilhe durante a crise do Banco Português de Negócios deixou-me apreensivo, tanto mais que esse estilo de denúncias se tornou habitual nos meios de esquerda e de extrema-esquerda. Por isso valerá talvez a pena esmiuçar as suas implicações.
Apresentar como promíscua a relação entre o Estado e os negócios é considerar anómalo algo que constitui precisamente uma das componentes estruturais do capitalismo. Pretende-se assim que seja excepção aquilo que na verdade é uma regra, e desta maneira considera-se implicitamente que poderia existir um outro capitalismo, não perverso, em que o Estado seria imune aos negócios. Artigos deste tipo só confundem em vez de esclarecer.
Desde as primeiras décadas do século XIX, quando começaram a formular-se as críticas ao capitalismo na perspectiva da classe trabalhadora, um dos temas em que mais se insistiu foi na ligação dos meios políticos aos meios económicos − mais do que isso, na estreita interdependência de ambos. Depois, e malgrado tudo o que as separava, tanto a vertente marxista como a vertente anarquista, cada uma à sua maneira, insistiram naquela íntima relação. Numa época em que as grandes massas pobres estavam afastadas do voto e, por maioria de razão, dos cargos políticos, os próprios defensores do Estado burguês tinham de admitir que governantes e homens de negócios não andavam muito longe. Tudo o que esses apologistas então pretendiam era que o poder político mantivesse uma certa imparcialidade entre os vários grupos de interesses, para que não fossem só uns os beneficiados, e o rotativismo partidário assegurava que os grupos se revezassem de maneira a que todos se fossem aproveitando da intervenção económica propiciada pelos governos.
Mais tarde, já no século XX, quando a tecnocracia e os grandes administradores passaram a dominar os governos e sobretudo os bastidores da política, começou a difundir-se a ideia não de que os governos seriam imunes às pressões económicas mas exactamente do contrário, de que eles seriam imunes às pressões políticas. Se a burguesia legitima os seus lucros mediante os títulos jurídicos da propriedade privada, os tecnocratas e, em geral, os gestores legitimam-nos mediante o mito da sua competência técnica. A partir de então os governos passaram a ser encarados na mesma óptica gestorial em que se encara a economia. Um bom governo deveria ser gerido como uma boa empresa, e a palavra «político» passou a carregar o sentido pejorativo que ainda hoje conserva.
Quem não gostou nada desta mudança foram os pequenos patrões, os donos das fabriquetas, das oficinas, os merceeiros [donos de sacolões] da esquina, os agricultores suficientemente abastados para assalariar alguma mão-de-obra e produzir para o mercado, mas sem terras bastantes nem capacidade suficiente para aplicarem no cultivo os métodos mais modernos e produtivos. Foi esta gente que começou a denunciar o favoritismo económico dos governantes, não porque se opusessem em princípio à relação da política com a economia, mas porque pretendiam ser eles a beneficiar dessa relação. Nas décadas de 1920 e de 1930, na Europa, em alguns países da Ásia e nas duas Américas, esta insatisfação dos pequenos patrões foi uma das principais componentes do fascismo. Não constituiu o único factor, houve outros igualmente importantes, mas o fascismo nunca se afirmou sem aquela componente. E desde então, onde o rancor dos pequenos patrões existe, o fascismo não anda longe.
Em termos sociológicos, o que estes pequenos patrões pretendiam e pretendem é atacar os governos não numa perspectiva de luta de classes mas numa perspectiva de mobilidade de elites. Trata-se, para eles, de manter a estrutura económica existente, desde que ascendam dentro dessa estrutura e passem a incluir-se entre o escol dominante. Ora, esta situação agravou-se nas últimas décadas.
Um dos aspectos mais marcantes do capitalismo contemporâneo é o facto de a concentração do capital, que se acelerou no plano económico, onde atingiu níveis nunca antes alcançados, ter apresentado no plano jurídico uma fisionomia inversa, levando à fragmentação das antigas grandes companhias da era do fordismo. Vivemos numa época em que a generalização das relações de subcontratação e de terceirização atrelou às grandes empresas uma miríade de pequenos patrões. Por um lado, na medida em que estão inteiramente dependentes do mercado de produtos e de serviços constituído pelas grandes empresas que os subcontratam, os pequenos patrões têm de lhes obedecer e de seguir os seus ditames. Mas, por outro lado, este agravamento da subserviência estimula os rancores. É nestes meios sociais que proliferam as denúncias sobre as benesses que grandes capitalistas e altos gestores obtêm dos governos, e a indignação vem-lhes não do facto de o capitalismo existir, mas do facto de não conseguirem aproveitar-se dele, pelo menos tanto como desejariam.
Não devemos desprezar a capacidade mobilizadora que estes pequenos patrões exercem relativamente à classe trabalhadora. Muitos deles estão unidos por elos familiares tanto aos velhos meios operários como aos novos proletários saídos de cursos superiores e que, apesar disso, não encontram senão empregos precários. Outros desses pequenos patrões são antigos operários que conseguiram juntar um pecúlio e instalar-se como pequenos empresários, e mantêm relações familiares e sociais com o seu meio de origem.
Numa época em que, perante a concentração transnacional do grande capital, os trabalhadores se encontram fragmentados, quando foram em boa medida dissolvidas as suas antigas relações de solidariedade e atenuado ou extinto o seu sentimento de classe, mais fácil se torna que eles encontrem nos pequenos patrões os leaders ou os modelos. No plano ideológico e psicológico, trata-se de substituir o espírito de classe pelo ressentimento, ou seja, o desejo de acabar com o capitalismo pela aspiração de subir dentro do capitalismo. O fascismo, na face que apresentou às massas populares, foi exactamente isto.
Aquele tipo de denúncias de que o artigo sobre Miguel Cadilhe e o Banco Português de Negócios constitui um exemplo reflecte a atitude dos pequenos patrões, que se sentem sistematicamente defraudados pelos grandes capitalistas na distribuição da mais-valia, ou seja, na partilha dos lucros. As remunerações elevadas, em dinheiro ou em benesses, de que beneficiam os altos gestores diz unicamente respeito à distribuição da mais-valia entre os capitalistas, não à exploração da mais-valia, ou seja, trata-se da repartição dos resultados da exploração, dos lucros, e não do processo de exploração. Por isso, é um assunto que diz estritamente respeito aos capitalistas, não aos anticapitalistas. Também não vejo o interesse em arranjar três bodes expiatórios em vez de dois, ou quatro em vez de três, e indagações deste tipo resultam da própria noção de que por detrás dos acidentes do capitalismo estariam culpados individuais, como se fosse uma questão de pessoas e não de um sistema económico. Quanto aos subsídios concedidos pelos governos aos bancos, já me pronunciei a este respeito no artigo Perpectivas do capitalismo na actual crise económica, publicado neste site. Mas é curioso que a esquerda continue a pregar uma política idêntica à que foi aplicada pela direita conservadora norte-americana na sequência da crise de 1929 e que levou a falências bancárias em cadeia e ao agravamento catastrófico da situação económica, até que o New Deal e a segunda guerra mundial conseguissem inverter a situação. Uma vez mais prevalece aqui o ressentimento, ou mesmo a simples inveja, a ideia de que todos aqueles subsídios seriam mais úteis no meu bolso do que no activo dos bancos. Só que eu não desempenho no conjunto do sistema económico a função desempenhada pelos estabelecimentos financeiros.
Lamento muito dizê-lo, e sem querer ser desagradável para com as pessoas que escrevem aquele tipo de artigos e com as que gostam de os ler, recordo que eles eram a especialidade da imprensa de extrema-direita no período entre as duas guerras mundiais. Já antes disso, desde os últimos anos do século XIX, o jornal da Action Française, o partido monárquico de extrema-direita que se situou na génese de todo o fascismo francês, fizera dessas denúncias a sua prerrogativa, inaugurando um modelo que muitos seguiram e tentaram superar. Em França, foi a denunciar a promiscuidade estabelecida entre os governantes e os negócios que os fascistas se reorganizaram após a segunda guerra mundial e o mesmo tema serve hoje à extrema-direita russa para proceder à apologia do fascismo e de Stalin. Na época actual, no entanto, parece-me que é na Grã-Bretanha que mais plenamente vigora o modelo de uma grande imprensa de massas ao mesmo tempo de extrema-direita e dedicada a publicitar os escândalos entre os ricos. Esta imprensa britânica de massas é uma componente indispensável da vida política no país, mais importante no plano ideológico do que o são o governo e os partidos.
Proliferou por todos os países este tipo de imprensa de massas, situada politicamente na direita ou na extrema-direita e sempre pronta a anunciar que um político foi encontrado com a mão no cofre de um banco ou que um empresário foi encontrado com a mão na gaveta de um ministro. Basta olhar para os escaparates [as bancas] de jornais e ver quais são os mais lidos. Em íntima conexão com esta imprensa dos escândalos e do ressentimento, estão as revistas inevitavelmente colocadas ao lado dos chocolatinhos junto às caixas dos supermercados e que se destinam a mostrar ao povo os exemplos positivos, que em princípio todos gostariam de imitar, as vedetas de sucesso, os homens de negócios que casaram pela enésima vez com uma mulher ainda mais plastificada do que as anteriores, os chics e famosos, os habitantes das ilhas artificiais. Se uns são os jornais do ressentimento, as outras são as revistas da inveja, e juntos fazem um par indispensável à contenção dos rancores dentro dos limites da ordem. Desde que a insatisfação não leve ao derrube das instituições mas à vontade de amaranhar por elas acima, tudo corre dentro do previsto. Onde as coisas começam a estragar-se é quando a juventude lança fogo a automóveis em vez de comprar revistas sobre carros de luxo.
Que artigos como este que suscitou a minha reflexão se tenham difundido entre a esquerda e a extrema-esquerda revela até que nível lastimável decaiu o que noutra época havia sido o anticapitalismo. Em Portugal a situação é mais grave ainda, por razões próprias à história deste país. Durante o período do antifascismo, o Partido Comunista seguiu a política da «unidade dos portugueses honrados contra o punhado de monopolistas ao serviço do capital estrangeiro», e continua aliás hoje a fazer o mesmo, visto que nunca desistiu da sua ambição histórica de pôr a classe trabalhadora à disposição de sectores capitalistas − tanto donos de empresas como gestores − marginalizados na repartição dos lucros. É natural que neste ambiente prolifere a confusão entre espírito de classe e ressentimento. Mas sempre que o ressentimento prolifera entre os trabalhadores, o risco do fascismo não anda longe.
[Ilustrações – pinturas de Peter Bruegel, o Velho, e uma colagem de Raoul Hausmann.]
Vários elementos do que foi o fascismo parecem estar então ainda vivos, e parece, prontos a ser reunidos de novo podendo reconstituí-lo. Mas não faltará um dos mais importantes? Se admitirmos que o fascismo foi uma necessidade objectiva do capitalismo em certos países, a solução capitalista para uma crise específica, a disciplina forçada da própria burguesia para se obter uma unificação política e económica no interior de um quadro nacional, seria o fascismo ainda possível? Quero dizer, por um lado a democracia transformou-se e adquiriu características totalitárias, prescindindo da fascização explícita, por outro o quadro nacional tornou-se inadequado para resolver as crises. Assim, pode existir um fascismo à espreita?
Caro A. O.
Penso, com efeito, que os elementos de que o fascismo se aproveitou continuam hoje a existir, mas sem estarem conjugados num sistema único. Aliás, acho que esses elementos foram anteriores ao fascismo, eles encontravam-se em França já no Segundo Império e, depois, no movimento em torno do general Boulanger, como se encontraram em Portugal entre os monárquicos que procederam à incursão de Chaves e, alguns anos depois, no governo de Sidónio Pais.
Mas para a pergunta principal, a de saber se será possível que no futuro esses elementos sejam articulados de novo, eu não tenho resposta, e você não esperava decerto que eu a tivesse. Apesar disso, parece-me oportuno definir um pouco os contornos da questão.
O fascismo não tem obrigatoriamente de ser nacionalista. O fascismo social sem dúvida que o foi, mas não o fascismo racial. Hitler disse claramente a vários interlocutores que o nacionalismo datava da Revolução Francesa e estava ultrapassado. A «revolução biológica» − os termos eram os seus − que ele pretendia prosseguir ultrapassaria as fronteiras, e para criar, ou recriar, a sua «raça nórdica» ele usou como laboratório biológico os SS, que durante a guerra, nos Waffen SS, incorporaram mais estrangeiros do que alemães. Então, é perfeitamente possível pensar um fascismo supranacional.
O que, na minha opinião, define um movimento fascista é o seu carácter supraclassista e a existência de milícias, ou de alguma forma de mobilização semelhante às milícias. Maurice Bardèche, um dos mais lúcidos expoentes do fascismo europeu do pós-guerra, definiu o fascismo como «o partido da nação em cólera», chamando a atenção tanto para o facto de ele mobilizar em conjunto pessoas de todas as classes sociais como para o facto de ele resultar de uma reacção pontual de indignação, emotiva, irracional. Se isso pôde ser feito com os meios de comunicação que existiam nas décadas de 1920 e 1930, creio que muito mais facilmente poderá ser feito agora. Quanto a uma forma de mobilização popular semelhante às milícias, no Brasil eu observo com inquietação o que se passa em certas Igrejas evangélicas e católicas carismáticas. É certo que essa gente está desarmada, mas é fácil arranjar matracas de um dia para o outro, e existindo boas relações com o aparelho repressivo não é difícil arranjar outras coisas também.
Por isso eu me esforço por prestar atenção a tudo o que me parecem sintomas dissimulados, tantas vezes inconscientes, de um fascismo larvar, porque quando ocorrem mudanças sociais bruscas são esses fenómenos os mais importantes. E, entre eles, o ressentimento parece-me levar muito longe. Não sou só eu a dizê-lo, antes de mim os fascistas disseram-no também. Um dos mais argutos fascistas franceses, Drieu de La Rochelle, que se suicidou aquando da Libertação, escreveu exactamente nessa perspectiva o seu romance Gilles, a biografia imaginária de um fascista em formação. E o que é a prosa de Céline, o mais genial dos ficcionistas do fascismo, senão um colossal exercício de ressentimento e de rancor? Mais modernamente, conviria ler His Butler’s Story, um romance de Eduard Limonov, que na altura em que o escreveu era um soviético emigrado nos Estados Unidos e é hoje o chefe do Partido Nacional-Bolchevista russo, apologista ao mesmo tempo do fascismo e de Stalin.
As pequenas coisas não são indiferentes, são significativas, embora os que insistem em pô-las a claro acabem − como possivelmente a sua experiência própria já lhe ensinou − por ter uma certa reputação de quezilentos.
Muito cordialmente,
João Bernardo
João, você possui, talvez, o grande defeito de conseguir ser mais claro nos comentários e nos artigos do que nos livros, os quais, me parece, ficam muitas vezes ausentes de exemplos explícitos como o invocado sobre as revistas e as igrejas agora. Além de não ter o costume de construir aqueles capítulos de síntese e conclusivos, que auxiliam muito.
No Brasil, para mim, o maior exemplo de difusão de rancores com vista a uma inserção nas hierarquias existentes é apresentado pelo Rap e toda a cultura que o envolve. Excluindo pouquíssimos grupos que fazem um trabalho de crítica e luta social classista e/ou anticapitalista, a totalidade dos grupos de rap se prestam a cultuar um ódio de cunho irracionalista contra os ricos mas somente na perspectiva de que os excluídos, os da periferia, é que deveriam estar consumindo. Alimenta-se o desejo de substituição de elite, vendo-se os manos e as minas no lugar dos playboys e patricinhas. O rap tem se apresentado extremamente consumista e mercantil, fazendo apologia aos valores da sociedade existente, tendo somente o ódio de serem outros a terem carrões e não os membros dos grupos de rap. Daí que exista nesse meio cultural toda uma tradição de menosprezo para com os trabalhadores comuns, os “zé povinho”. E as torcidas de futebol e as gangues de rua, escola, bairro e/ou quadrilhas criminais fornecem a violência física suplementar, tantas vezes voltada para o assassinato, opressão e exploração dos trabalhadore pobres.
Se tomo a frente a pergunta, podemos ver um fascismo latente no rap e gangues/torcidas de futebol; em algumas igrejas evangélicas e carismáticas, aliás, responsáveis por criar uma aristocracia moral dentre os populares. Na falta de posição econômica, os pobres dessas religiões sentem-se moralmente componentes da mesma elite que inclui os patrões, os ilustres e os governantes. Há, ainda, os grupos de rock e as milícias de roqueiros, some-se o exército e os escoteiros, a maçonaria e o Rotary Club, a TV e o darwinismo dos reality show, a igreja e sua insistência em se apossar do Estado, o judiciário que tem se transformado um poder acima do legislativo e do executivo, as milícias policiais, como muitas no Rio de Janeiro, a militância intelectual de pessoas como Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo, Diogo Mainard, João Pereira Coutinho, Felipe Pondé, o movimento Cansei, a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]… enfim… parece que a direita e suas correntes e campos de ação não são tão pequenas como costumamos pensar.
Esse Limonov influencia uma seita política brasileira chamada NACOS (Nacional-Comunistas) e um grupo venezuelano que apoia o Chávez. Na América Latina, essas seitas usam menos iconografia e temas directamente fascistas, recorrendo mais à parafernália do anti-imperialismo. E recebem a simpatia de alguns velhos estalinistas mais clássicos.
Aliás, a esquerda, quanto a nacionalismo, não precisa de ir roubar nada à direita. Veja-se este artigo http://www.jornalmudardevida.net/?p=1490
Em vez da solidariedade ao proletariado árabe contra os seus estados, sejam ou não “anti-imperialistas”, os esquerdistas querem “que uma confrontação entre correntes políticas diferentes no seio da resistência ao imperialismo seja possível”.
Como eles próprios se vêem como um Estado-Maior (ainda sem tropas, se bem que o programa de recrutamento seja feroz e flexível) só concebem a luta como um diálogo entre aparelhos de enquadradamento para-estatais. Se as massas na sua confusão se viram para o fundamentalismo ou para o nacionalismo vamos atrás delas, se se revoltam contra o Estado e o Capital, sendo o Estado em questão um resistente ao imperialismo e o Capital questionado ( http://libcom.org/news/palestinian-union-hit-all-sides-25072007 ) muito pequenino comparado com o Imperialista, abandonêmo-las à sua sorte, ninguém as mandou agirem fora do enquadramento com cujo aparelho os “comunistas” dos países imperialistas se tinham comprometido.
João Bernardo,
Concordo em linhas gerais com o texto, evidentemente. Mas pensando especificamente o caso brasileiro, hoje em dia, com o caso Daniel Dantas e de outros ricos que aparecem sendo presos num dia e soltos no dia seguinte, não creio que esse sentimento de indignação (que pode ser ressentimento ou não, mas isso não vem ao caso para o que quero dizer) parta de pequenos patrões, ou que tenha neles uma vanguarda nesse sentido, que puxaria os trabalhadores nessa onda. Acho que esse sentimento (indignação ou ressentimento ou seja lá o que for, no caso brasileiro) parte de vários grupos sociais, principalmente talvez da classe média, mas certamente também do pobre (que tem acesso ao noticiário).
Que esse tipo de sentimento ‘moralizador do capitalismo’ possa ser substrato de fascismo, não vejo como discordar. Que a discussão sobre corrupção como se esse fosse ‘O’ mal e não conseqüência, também concordo que não faz sentido para socialistas e anticapitalistas. Tal bandeira “moralizante” pode ser muito bem empunhada por uma TFP (junto ao PSOL, com delegados e juízes juntos), como era pelo PRONA, que se mostrou o partido mais próximo de concepções fascistizantes na história recente do Brasil. No entanto acho que é trabalho dos socialistas e anticapitalistas tentarem tornar a indignação e revolta latente popular de modo que para além da superficialidade da corrupção passe-se a ver as raízes do problema nessa ordem social e econômica. Acho que é tarefa dos anticapitalistas tentar fazer do ressentimento e da raiva contra o patrão tirano, ou contra o rico corrupto, uma revolta contra a exploração. Por isso, em si, o tema corrupção e outros temas que tocam a indignação da população não devem estar (necessariamente) fora da pauta dos anticapitalistas. A questão é como abordar o tema (no que penso que você concorda).
Meu caro Leo
Eu penso que onde a indignação suscitada por casos como estes pode passar do ressentimento para a luta de classes é na questão penal e prisional. «Porquê dois meses de prisão para o dandy que, numa noite, tira a uma criança metade da fortuna e porquê os trabalhos forçados para o pobre diabo que rouba uma cédula de mil francos com circunstâncias agravantes?», perguntou num romance de Balzac um personagem que era uma espécie de anarquista individualista, e ele mesmo respondeu com todo o cinismo de que era capaz: «Os inimigos da ordem social aproveitam-se deste contraste para se esganiçarem contra a justiça e se indignarem em nome do povo porque se manda para os trabalhos forçados alguém que numa noite vai roubar galinhas num recinto habitado, enquanto se condena só a alguns meses de prisão um homem que arruína famílias com uma falência fraudulenta, mas estes hipócritas sabem muito bem que ao condenarem o ladrão os juízes defendem a barreira entre os pobres e os ricos, que se fosse derrubada traria o fim da ordem social; enquanto o autor da bancarrota, o hábil interceptor de heranças, o banqueiro que dá cabo de um negócio em seu benefício não provocam senão transferências de fortuna». Ora, é curioso que a mesma esquerda e extrema-esquerda que tanto se indigna quando um rico rouba outros ricos se preocupe muito pouco com a situação prisional dos pobres, sob o pretexto de que pertencem ao lumpen.
A este respeito, gostaria ainda de acrescentar que sempre me deixa perplexo a grande ingenuidade dos moralistas, que não perguntam a si mesmos por que motivo um jornal de grande tiragem ou um noticiário televisivo na hora de maior audiência divulgam notícias respeitantes às malfeitorias de um certo capitalista ou de um dado político. Quem transmitiu a informação ao jornalista? Por que motivo o chefe de redacção autorizou a sua difusão? O facto de estas notícias passarem para o grande público resulta de ajustes de contas entre grupos capitalistas ou entre facções políticas, e os vencedores do momento sem dúvida se rirão muito da candura dos que assim os ajudam a triunfar.
Sobre o tema, Celso Lungaretti publicou hoje em seu blog, com título:
COMBATE À CORRUPÇÃO É BANDEIRA DA DIREITA
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2009/04/corrupcao-politica-e-bandeira-da.html
A notícia do momento é mais um escândalo de uso dos recursos públicos para finalidades pessoais de congressistas. Desta vez, a lama respingou até no Gabeira e na Luciana Genro.
É o tipo de assunto do qual mantenho sempre distância. Antes de mim, que eu me lembre, o Paulo Francis adotava a mesma posição.
Por um motivo simples: a desproporção entre o dano causado ao cidadão comum pelos ladrões de galinha da política e as atividades corriqueiras dos capitalistas é incomensurável.
O capitalismo nos acarreta:
* emergências ecológicas como as alterações climáticas que ameaçam a própria sobrevivência da nossa espécie;
* recessões desnecessárias como a atual (que ainda não se sabe se evoluirá ou não para depressão);
* a condenação de parcela considerável da humanidade a vegetar em condições subumanas;
* o desperdício criminoso do potencial ora existente para assegurar-se a cada habitante deste sofrido planeta o mínimo condizente com uma sobrevivência digna;
* a mobilização permanente dos homens para atividades improdutivas e desnecessárias ao invés da redução da jornada de trabalho para que todos possam desenvolver-se plenamente como seres humanos;
* etc. (muitos, muitos etcetaras!).
E, se quisermos ficar no confronto simplista de números, ainda assim o peso da corrupção política no orçamento de cada família continuará sendo uma fração ínfima do custo do capitalismo.
Eis um exemplo bem didático: levantamento da Associação Nacional dos Executivos de finanças, Administração e Contabilidade, numa pesquisa de junho a agosto 2002, constatou que os gastos mensais com despesas financeiras atingiam 35,43% da renda familiar para as situadas entre 1 e 5 salários mínimos, que compram mais a prazo do que os ricos; 33,62% para famílias entre 5 e 10 salários mínimos; e 32,95% para famílias com renda familiar entre 10 e 20 salários mínimos. A média geral para todas as faixas de renda é 29,83%.
Ou seja, apenas o ágio que nos é extorquido pelos agiotas do sistema financeiro já consome ao redor de um terço da nossa renda familiar.
E a estratosférica desproporção entre o custo de fabricação de cada produto e seu preço final? Vejam uma interessante avaliação do economista Ladislau Dowbor sobre o preço de produtos como os Redoxons e Cebions:
“Por caixa, em média, esses produtos têm R$ 0,03 de ácido ascórbico. Você paga R$ 7,00 a caixa, ou seja, o custo do produto é multiplicado por cerca de 200 (multiplicado, não estou falando em 200%). E, com isso, você está tirando do mercado a vitamina C, um produto sumamente importante para a saúde de dois terços da população brasileira. No entanto, o consumidor está financiando o papelzinho dourado, a embalagem, a propaganda.” (ensaio Economia da Comunicação, 2002)
Então, interessa aos defensores do capitalismo fazer a patuléia acreditar que a razão maior de seus apuros econômicos são os impostos, que estes acabam sendo em grande parte desviados pelos políticos e que isto, só isto, impediria nosso país de deslanchar.
Ademais, as intermináveis denúncias de corrupção acabam minando as esperanças do cidadão comum na transformação da realidade por meio da ação política. Se tudo não passa de um lodaçal, as pessoas de bem devem mesmo é cuidar de sua vida…
De quebra, fornecem pretextos para quarteladas, sempre que os meios de controle democráticos das massas não estão funcionando a contento.
Então, Paulo Francis dizia e eu assino embaixo: denúncias de corrupção política são bandeira da direita, que acaba sendo sempre sua beneficiária final, a despeito dos ganhos momentâneos que proporcionem à esquerda.
Esta deveria, isto sim, demonstrar que o capitalismo em si causa prejuízos imensamente maiores para o cidadão comum do que os desvios de recursos dos cofres públicos; e que a moralização da política não se dará com medidas policiais, mas sim com uma transformação maior da sociedade.
Não o faz. Desatinadamente, algumas de suas tendências reforçaram as denúncias que culminaram no suicídio de Getúlio Vargas em 1954 e as que deram pretexto à dita redentora de 1964 (que, claro, nada mudou exceto a relação dos beneficiários do butim).
Agora, o PSOL chega a acompanhar o apocalíptico delegado Protógenes Queiroz em sua tentativa de implodir o sistema, provocando uma crise que não deixaria pedra sobre pedra no Executivo, Legislativo e Judiciário.
Ingenuamente, parece crer que se beneficiará com o descrédito absoluto das instituições, sem perceber que isto criaria, isto sim, cenários favoráveis ao golpismo de extrema-direita.
Então, digo e repito: em vez de pegar carona nos temas que a imprensa burguesa prefere magnificar, cabe à esquerda definir sua própria pauta e explicá-la aos cidadãos.
A corrupção política não é nossa prioridade, mas sim o combate ao capitalismo, verdadeira raiz dos principais males que infelicitam os brasileiros.
Precisamos ter a coragem de assumir a posição correta diante do povo, ao invés de tentar combater o inimigo num jogo de cartas marcadas, travado no terreno que só a ele convém.
Analise extremamente lúcida e precisa. Como pano de fundo, a máxima do cinismo: O melhor do capitalismo é ser capitalista”…
Caro João Bernardo: leio-o recorrentemente e folgo no seu fôlego persistente, vivo, poderoso, atento, intrépido. Quando vier ao Porto, apareça. Abraço, JF