As autoridades de Londres mandaram cobrir com um andaime um graffiti que denunciava o uso sistemático de câmaras de vigilância. Por GGG & João Bernardo

onenationundercctvNo início de Março de 2009 as autoridades de Londres tomaram a decisão de cobrir com um andaime um graffiti pintado um ano antes, denunciando o uso sistemático de câmaras de vigilância que instaurou sobre toda a cidade uma avassaladora fiscalização policial.

O autor desse graffiti é conhecido apenas pelo pseudônimo Banksy, e sobre ele só se sabe que nasceu em 1974, suspeitando-se que viva na cidade inglesa de Bristol. Desde 2002, Banksy tem chamado a atenção através de mensagens transmitidas por diversos graffitis e graças a outras intervenções que envolvem uma ironia crítica acerca da cultura e da política. «O graffiti é arte ou vandalismo?», perguntou Banksy, e ele mesmo respondeu: «Como essa palavra tem uma grande quantidade de conotações negativas e afasta as pessoas, eu não gosto nada de usar o termo “arte”». Além da Grã-Bretanha, Banksy deixou traços noutros países, como os Estados Unidos e a Palestina. Em Julho de 2005 ele foi à Palestina e pintou diversos graffitis contra o Muro da Vergonha. Em Agosto de 2006, Banksy substituiu mais de 500 cópias do CD de Paris Hilton em 42 lojas do Reino Unido. O substituto possui remixes de músicas feitos pelo DJ Danger Mouse e os títulos das músicas são «Why am I Famous?» [Por que Sou Famosa?], «What Have I Done?» [O que Foi que eu Fiz?] e «What Am I For?» [Para que Sirvo Eu?]. A capa do CD também foi modificada, colocando uma foto de Paris Hilton num falso topless e, entre outras imagens dentro do encarte, aparece uma dela com a legenda: «Life wasn’t mean to be fair!» [A vida não se destinava ser justa] [Veja mais]. Em Setembro de 2006, Banksy vestiu um boneco inflável com os mesmos trajes que um prisioneiro de Guantânamo e introduziu-o na Disneylândia da Califórnia [Veja mais]. E em Agosto de 2008, recordando os três anos do Furacão Katrina em Nova Orleans, nos Estados Unidos, Banksy produziu diversos graffitis denunciando a falta de ajuda do governo e a pilhagem feita por militares.

A justificação invocada pelas autoridades londrinas para o atentado que cometeram contra a arte urbana ao cobrirem a pintura de Banksy é a de que é proibido fazer graffitis sem possuir uma autorização prévia. À primeira vista, trata-se de uma vulgar demagogia de burocratas, que sempre que não estão dispostos a perder tempo com discussões invocam a falta de um carimbo. Aquele graffiti atacava de frente uma questão muito polêmica: a da crescente autoridade que tem sido conferida às várias polícias britânicas, tanto as secretas como as não secretas, para espiar, registar, filmar, apreender, deter e interrogar. Entretanto, e com a aversão à simetria que sempre tem caracterizado os agentes da repressão, foi há pouco promulgada no Reino Unido uma lei que proibe fotografar ou filmar qualquer agente da polícia sem motivo plausível, ficando a apreciação do motivo, bem entendido, a cargo da autoridade. De uma maneira concisa, aquele graffiti de Banksy convidava as pessoas a refletirem sobre o facto de que a democracia representativa e o Estado policial podem coexistir, a ponto de cada um reforçar o outro e, logicamente, nem os governantes nem as suas polícias pretendem que este tema adquira visibilidade.

A este respeito, foi recentemente publicada uma notícia curiosa. Segundo o jornal The Independent de 29 de Março de 2009, um programa de vigilância instaurado há um ano e meio na Grã-Bretanha pela Association of Chief Police Officers (Associação dos Oficiais Superiores da Polícia) e financiado pelo Home Office (Ministério do Interior) já conseguiu identificar como potenciais terroristas islâmicos mais de 200 crianças, algumas com 13 anos de idade. A prova de que este programa funciona bem é que em Junho de 2008 haviam sido detectadas apenas 10 crianças. Se continuar este crescimento, antes do final do ano os britânicos banksypiltonfriskterão 4 mil crianças identificadas, e assim por diante. Até agora a polícia só aparecia depois dos crimes terem sido cometidos, para descobrir o criminoso. A partir de hoje a polícia já sabe que alguém é criminoso muito antes de o próprio saber. Segundo Sir Norman Bettison, que superintende a prevenção do terrorismo na Grã-Bretanha, depois de identificadas, as crianças serão submetidas a um «programa de intervenção adaptado às necessidades do indivíduo», que pode incluir conversas com a família e com as autoridades religiosas islâmicas; mas Sir Norman esclareceu que «em vários casos houve intervenção directa da polícia». Ora, um dos graffiti de Banksy anunciara já esta nova realidade.Compreende-se que as autoridades, que pretendem antecipar-se à subversão, não gostem de artistas que se antecipam às autoridades.

Mas o argumento de que é necessária autorização prévia para pintar graffitis tem ainda outras implicações, talvez menos evidentes. O apreço estético que se pode ter pelos graffitis e a definição das correntes artísticas − ou vandalizadoras, para seguirmos a ironia de Banksy − em que se inserem diminuiria muito ou até desapareceria se eles não resultassem de uma forma activa de violar espaços urbanos, se não constituíssem o ponto nevrálgico de condensação dos confrontos estéticos no interior das cidades. O impacto dos graffitis vem-lhes do imprevisto, e só na cabeça de um funcionário administrativo ou de um polícia, que é a versão musculada do burocrata, poderia nascer a ideia de exigir ao imprevisto uma autorização prévia. Em 2008, a curadora da Bienal de São Paulo decidiu mostrar que era uma senhora de mente arejada e declarou que os espaços de exposição se abririam à rua sob o mote «Em vivo contato», convidando artistas para fazer de lá «um espaço para encontros, confrontos, fricções». O convite realmente concretizou-se e a rua entrou pelos espaços da exposição sob a forma de pichos. Os limites carolinapivettaestéticos da arte oficial, mesmo ao se pretender de vanguarda, ficaram claros quando a curadoria da Bienal recorreu ao argumento entre todos o mais poderoso e chamou a polícia. Caroline Pivetta, a única detida pela ação, permaneceu encarcerada por quase dois meses e foi necessária uma intensa campanha pela sua libertação, que mobilizou desde amigos próximos até o novo Ministro da Cultura, Juca Ferreira.

Outra das implicações do argumento invocado pelas autoridades de Londres diz respeito não ao valor estético dos graffiti mas ao seu valor pecuniário, à sua cotação no mercado de arte. Os marchands − palavra francesa que designa internacionalmente os donos de galerias que representam artistas e fazem mover o mercado da arte − sabem que não são as formas nem o colorido que dão valor aos graffiti, mas sobretudo a sua intervenção contestatária, a sua violação das normas, entre elas a norma da autorização prévia. Evoca-se com tanta frequência a «queda do Muro de Berlim» que a expressão se tornou já uma frase feita, e todavia ela é errada. Se o Muro representava fisicamente a guerra fria, ele representava também, na sua face ocidental, a intervenção urbana dos pichadores e pintores de graffitis, por isso o Muro não caiu, foi cortado aos pedaços e vendido no mercado de arte. Para os marchands a beleza disto tudo, e podemos falar aqui de beleza porque é de estética que se trata, é que eles fazem dinheiro com os graffitis do mesmo modo que um de nós, se fosse esperto, faria dinheiro a vender ar. Arte fugaz e sem dono, identificada com o gesto do artista e com o olhar de quem passa na rua, os graffitis não têm proprietário, até que apareça alguém e se aproprie deles. Assim, apesar de Banksy não comercializar as suas obras, é fácil encontrar em vendedores on line posters e outros tipos de cartões. Em 2004, quando Banksy parodiou notas bancárias substituindo «Bank of England» [Banco de Inglaterra] por «Banksy of England» [Banksy de Inglaterra] e as atirou para uma multidão em Notting Hill, elas foram parar em sites de venda on line, comercializadas a 200 libras por unidade. Não se ganharia tanto dinheiro com notas falsas, mas o importante aqui é que os que ganharam não foram os que as forjaram. Em 2006 uma pintura de Banksy foi vendida por 50.400 libras [Banksy works set auction record] e uma atriz de Hollywood, Angelina Jolie, investiu mais de 200.000 libras na aquisição de uma obra de Banksy.

Assim, curiosamente, a decisão de cobrir aquele graffiti de Banksy não diz apenas respeito aos confrontos políticos contemporâneos, ela interfere também no mercado capitalista de arte, proporcionando aos marchands maiores lucros. Se quanto mais reprimida for uma obra tanto mais valiosa ela será para quem se apoderar dela, os atos repressivos servem ao mesmo tempo os interesses das autoridades e os dos negociantes de arte. Que perfeição, este sistema!

3 COMENTÁRIOS

  1. Excelente texto, aprendi bastante com ele. É muito bom que existam alguns artistas anticapitalistas.

  2. agora anda um gajo a pintar o boneco do pac-man por toda lisboa, deve ser do mesmo genero

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