Um debate entre alguns membros do coletivo do Passa Palavra sobre as eleições e os problemas levantados pela escolha de um presidente. Por Passa Palavra
Este debate começou como todos, com uma troca de mensagens. A meio decidimos que o debate seria publicado, mas só depois de terminada a votação no Brasil, porque, qualquer que fosse a posição adotada quanto a este segundo turno das eleições presidenciais, todos estamos de acordo em reconhecer que não é no âmbito do aparelho do Estado, mas noutro plano, que a luta anticapitalista deve prosseguir.
A. em 16 de outubro
Não acho que nosso sítio, autônomo e anticapitalista, deva pautar questões referentes às eleições brasileiras que não sejam de crítica, radical e qualificada, ao processo como um todo.
Agora, queria saber um pouco a opinião pessoal de vocês especificamente sobre esta escalada midiático-eleitoral recente (desde fins do primeiro turno, intensificada neste segundo turno), pensando sobretudo nos efeitos sociais que este espetáculo todo já está trazendo para os trabalhadores e para as nossas condições de resistência. E, também, a opinião de vocês sobre os diferentes cenários que, agora, mostram-se factíveis: futuro governo de Dilma ou de Serra. Já incluídas as recomposições feitas ao longo deste segundo turno… Ainda que considerem insignificantes as diferenças entre um e outro…
Eu, confesso a vocês, estou extremamente preocupado com a escalada fascista em que o país está mergulhando, aceleradamente, de forma alucinante. Se já era muito preocupante o fascismo difuso do lulismo, da sua idéia de “Pai dos Pobres”, “Pai do Progresso” deste “Brasil Potência” que se “Reencontrou com o Desenvolvimento”, aprofundando na prática a dominação capitalista por essas bandas, os termos em que estas idéias fascistas estão sendo renovadas e ampliadas neste segundo turno (incorporando as piores faces complementares possíveis, de forma desabusada), têm me causado calafrios!
Neste sentido, creio, a maneira como se deu a passagem para o segundo turno — impulsionada pelas forças mais reacionárias do país — e a consequente nova tônica de sua disputa — cruzada evangélica, racista, machista, homofóbica, criacionista, etc. — não poderiam ser piores! O fundamentalismo evangélico também ganhou espaço “como nunca antes neste país”…
Eu sei que se trata de uma conjuntura perene, de difícil análise no calor dos fatos, mas que por isso mesmo requer reflexão precisa e posicionamentos (nem que sejam pessoais, internos). Inclusive sobre as nuances, que a meu ver talvez não sejam detalhes. Estou amadurecendo, o mais rapidamente possível, a minha análise e a minha posição pessoal — que hoje está tendendo a preferir, sim, a Dilma, como cenário menos pior.
Logo mais compartilho com vocês as razões que, até aqui, têm me levado a tais conclusões — e que, a meu ver, não conformam um simples “voto útil”. Para os compas [companheiros] que possam não estar acompanhando (sobretudo os portugueses), relato uma passagem de agora há pouco, a meu ver emblemática:
O candidato José Serra — que tem sido inegavelmente o principal responsável pelo fortalecimento de algumas “pautas” — reforçou explicitamente hoje, em seu horário eleitoral noturno, que a Paz no Campo depende do fim dos Sem-Terra; e fechou o programa em grande estilo, atravessando certo Rubicão com um depoimento do pastor Silas Malafaia (histórico da Assembléia de Deus, e agora da sua “Assembléia de Deus Verdade em Cristo”). Quem quiser veja aqui os programas de hoje à noite. E quem se interessar veja aqui mais informações sobre Malafaia. Ele define precisamente para os seus fiéis, num vídeo sobre este segundo turno, um dos efeitos desta guinada que eu tratava: “Escute bem aqui… Porque o povo evangélico, depois dessas eleições, nunca mais é massa de manobra de ninguém! E a partir de agora, quem quiser se eleger para presidente ou para governador, vai passar pelo voto evangélico”.
Claro que não é apenas Serra quem está apelando para essas forças. Dilma tem buscado, a todo custo, correr atrás de Beijar todas as Cruzes possíveis. Sabemos que a Igreja Universal do Reino de Deus está, majoritariamente, com Dilma desde o primeiro turno (assim como esteve e está com Lula).
Por outro lado, sabemos também que a Opus Dei e a Tradição, Família e Propriedade, da Igreja Católica, sobretudo em suas regionais Sul e Sudeste, estão fazendo de tudo para Serra se eleger. Muita grana [dinheiro] e muito poder envolvido! Eles, que já têm relações carnais com o governador reeleito do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, querem a todo custo avançar. E Serra está sendo democrático ao escolher sua base privilegiada de apoio: vai de fascistas evangélicos a fascistas católicos. E é este tipo de sinal, concreto, que tem me preocupado muito… e me forçado a considerar o que possa ser menos pior.
Entre vários outros temas, creio que precisamos ter em mãos este tipo de mapeamento detalhado e preciso — que tem e terá implicações seríssimas em todas as dimensões de nossas vidas e de nossa resistência por aqui. Precisamos fazê-lo com precisão, analisá-lo e nos posicionarmos (ainda que pessoalmente). Estou curioso para saber o que andam pensando cada um de vocês sobre o assunto, principalmente os brasileiros que têm acompanhado mais a parada… Fica aqui a provocação para análises e discussões deste tipo entre nós.
B. em 17 de outubro
Eu, particularmente, vou votar na Dilma e recomendo a todos que me perguntam a fazer o mesmo. Não nutro ilusões de mudança por esta via. Porém, o convívio rotineiro com setores mais conservadores da direita me levou a esta posição.
C. em 17 de outubro
Em primeiro lugar, na minha opinião fundamentalismo religioso e fascismo são dois temas bastante distintos, e o que ocorre no Brasil é o alastramento contínuo, consistente e vigoroso do primeiro no campo social. Isto é conjugado com uma hegemonia gestorial no campo político nacional, que se sobrepõe a hegemonias diversas nos campos políticos estaduais (ex.: hegemonia de latifundiários no Centro-Oeste e em alguns estados do Nordeste, etc.). É de se pensar seriamente se o fundamentalismo religioso não é a reação à hegemonia gestorial que segue no Brasil desde a ditadura, com poucas interrupções (Sarney, Collor). E a “escalada fascista” (que penso ser uma escalada do fundamentalismo religioso e não do fascismo) já estava lá desde muito antes do segundo turno; o que se fez foi tornar seus pontos mais sensíveis a chave dos debates no período.
Quanto à questão político-partidária e as eleições, prefiro tratar as questões no plano ideológico e no plano prático.
Num plano ideológico, o “voto útil” em Dilma é uma capitulação ao projeto petista. Não há outro nome para isto. O PT já há certo tempo substituiu a formação e a mobilização de base pelo eleitoralismo, e nos últimos anos este descaso com [desprezo por] dois pontos fundamentais de qualquer organização política de esquerda (nem digo anticapitalista, apenas de esquerda) tem assumido caráter quase messiânico. Na visão dos petistas de base, só Lula salva.
Então vem a proposta de “voto útil” em Dilma, a partir de vários setores: MST [Movimento dos Sem-Terra] (assumidamente dilmista), PSOL [Partido Socialismo e Liberdade] (“Nenhum voto em Serra” abre espaço para isso), PCB [Partido Comunista Brasileiro; não confundir com PCdoB, Partido Comunista do Brasil] (“Derrotar Serra nas urnas e Dilma nas ruas” é palavra-de-ordem pouco mais interessante, mas ainda deixa brecha para o “voto útil”)… Com isto, toda a formação e mobilização feita por estas organizações altamente críticas ao PT e a seu projeto “Brasil potência” é transformada na submissão a este projeto no campo eleitoral. Estas organizações são transformadas, assim, em “tendências externas do PT”. E os petistas sabem disso: não foram poucas as vezes que em assembleias vi petistas chamarem em coro o PSOL e a Consulta Popular de “tendência externa”. Picuinha é às vezes muito mais sincera que a diplomacia.
Além disso, todo “voto útil” justifica-se através do medo. Medo de perder certos programas sociais, medo do “estilo peessedebista” de trato com movimentos sociais, etc. Somos estimulados a todo tempo a termos medo; quando se trata do campo político, este medo paralisa a razão e a crítica. E um projeto político consistente não pode se basear no medo apenas.
Num plano prático, penso que “voto útil” se justifica: (a) quando há concessões programáticas importantes para os movimentos sociais; (b) quando cria um cenário de menor repressão e maior liberdade de ação para os movimentos sociais; ou (c) quando quem acena com estas duas possibilidades está muito atrás nas pesquisas eleitorais.
Quanto ao item (a), não sei qual concessão programática foi feita. Apontem-me uma para que possamos discutir. Quanto ao item (b), A. e B., dois dentre os defensores do “voto útil”, vivem sob regime peessedebista há muito tempo, e a campanha petista em São Paulo é quase sempre fracassada. É normal assumir postura de “voto útil” em tais condições? Vejamos a situação pelo lado baiano, aqui onde G. também defende o “voto útil” em Dilma. Vivemos há quatro anos num regime onde o governador e grande parte dos principais secretários foram operários do Polo Petroquímico, o secretário do Desenvolvimento Social é um sem-terra, agora temos um senador técnico em telecomunicações… Mas este governo aparentemente “operário” intervém diretamente em favor das principais forças do desenvolvimento capitalista no Estado. E os movimentos sociais aceitando tudo como “progresso”, paralisados, ou com a mão no saco do governo, ou com as duas bem algemadas nas costas. Aqui a coisa chega ao ponto de haver sérias suspeitas de a campanha de uma liderança do MST haver sido bancada pela Veracel Celulose. Toda concessão feita é para pacificar movimentos — ausência de conflitos sociais é fator-chave para a conquista de investimentos externos, e o que antes valia para o “risco Brasil” hoje vale internamente aos Estados que disputam investimentos através de guerra fiscal — ou para redirecionar suas lutas em função do melhor desenvolvimento capitalista.
Quanto ao item (c), o cenário aponta eleição de Dilma. Todas as pesquisas feitas até o momento (17/10) apontam altos índices de rejeição de Serra; a pesquisa Sensus mais recente, a mais desfavorável a Dilma entre todas, registra quedas leves nos percentuais dos dois candidatos, e não só de Dilma; as pesquisas Vox Populi e IBOPE dão boa vantagem a Dilma; a própria pesquisa do Instituto Sensus, a mais desfavorável a Dilma até o momento, aponta que a consolidação do voto nela é bem maior que a do voto em Serra e que esta consolidação aumentou do primeiro para o segundo turno; na famigerada pesquisa do Datafolha a diferença é de 6%, mas todas as fragmentações por setor (idade, sexo, escolaridade, etc.) apontam que nos setores com maior número de eleitores Dilma ganha disparado, e a pouca diferença se dá pela ponderação feita pela mistura de setores; etc., etc.
Além disso, o problema não está nem no PT e nem no PSDB, mas na ininterrupta hegemonia do PMDB sobre o “segundo escalão” dos três poderes — ou seja, o Congresso Nacional, que no Brasil é um apêndice do Executivo — e dos entes federativos — ou seja, os governos estaduais. Sendo um partido “coração de mãe” (não por acaso seu símbolo mais habitual, além do logo oficial, é um coração), nele cabem desde os stalinistas do MR-8 até gente como Renan Calheiros, Nelson Jobim, etc. Enquanto o PMDB detiver o “segundo escalão” — e tem sido assim desde o fim dos governos militares — será principalmente a ele que qualquer partido que pretenda manter um mínimo de “governabilidade” precisa ceder. Nestas situações, o fiel da balança é tão ou mais importante que o item pesado.
Daí o cenário político ser mais ou menos o seguinte: em caso de eleição de Dilma, “céu de brigadeiro” para o projeto petista. As concessões à direita de que tanto falam certos analistas de esquerda não são outra coisa além da concretização de um programa que agrada também a amplas parcelas da base petista. Em caso de eleição de Serra, a ala direita do PMDB viraria tranquilamente o partido para sua cria, o PSDB, mas a bancada de esquerda (PT, PCdoB, PSOL, PMN, PSB, PDT) no Congresso Nacional está hoje muito maior do que há tempos atrás (169 deputados) e constituiria um entrave seríssimo à “governabilidade”.
Além das questões que levantei, há uma outra igualmente importante também dentro do plano prático. Quem justificaria sua escolha por Dilma como “voto útil” no segundo turno? Ou alguém que teve algum tipo de voto “anti-Serra” de esquerda no primeiro turno mas não optou por Dilma (Ivan Pinheiro, José Maria, Rui Costa Pimenta, Plínio Sampaio, voto em branco, voto nulo), ou militantes da extrema-esquerda partidariamente organizada (PSTU, PCO, PCB, PSTU). Nenhum deles concorda com o projeto petista, mas por algum motivo seguem pensando que “é melhor lutar com Dilma do que lutar contra Serra”. Mas os votos somados em candidatos da extrema-esquerda partidariamente organizada representaram 1% do total de votos no primeiro turno, o que, diante da diferença atualmente encontrável nas pesquisas, nada muda.
Por isto me sinto tão tranquilo ao anular meu voto no segundo turno quanto me senti no primeiro.
A. em 18 de outubro
Em primeiro lugar, C., devo lhe dizer que gostei muito de receber esta sua análise. Muito boa! Em relação à qual eu concordo com inúmeras coisas, sobretudo no essencial dela (que é a análise sobre o contexto sócio-político dos últimos anos no Brasil).
Mas, além de concordar, creio que ela indica formulações precisas e preciosas (principalmente de hipóteses analíticas ou mesmo teses) sobre esse contexto em que estamos metidos. E eu acho que o que mais tem faltado para nós é avançar nesse diagnóstico mais aprofundado, fazer uma crítica sobre os fundamentos, as estruturas e o pano de fundo geral do rumo que a sociedade tem tomado nestes últimos tempos. Este debate aqui, entre nós, pode (e deve) suscitar aprofundamentos.
Vamos lá à discussão em cima de muitos pontos que você levanta, os quais, por terem sido bem formulados, merecem detalhamento crítico.
Em relação ao “alastramento contínuo, consistente e vigoroso do fundamentalismo religioso no campo social” brasileiro: eu estou em absoluto acordo! E nós precisamos entender bem melhor as características profundas deste processo, suas implicações todas, as quais eu acredito que extrapolam — e muito — o terreno religioso e/ou ideológico. Achei interessante a hipótese que você levantou, deste alastramento do fundamentalismo religioso ser uma reação/conseqüência da “hegemonia gestorial que segue no Brasil desde a ditadura, com poucas interrupções (Sarney, Collor)”. Hegemonia que, ademais, eu concordo com o diagnóstico, o conceito e a temporalização que você deu — incluindo as poucas interrupções apontadas. Vou além, e acho que o Lula levou este processo ao seu ápice, tornando muitas experiências e programas de sua gestão verdadeiras políticas de Estado, incorporadas pelo Estado e consolidadas nele — as quais dificilmente retrocederão no futuro à vista.
No entanto, aí vem uma primeira dúvida a compartilhar com vocês: não sei até que ponto esta “hegemonia gestorial” — e um de seus possíveis desdobramentos, a expansão do fundamentalismo religioso — não seriam alguns dos elementos componentes do que pode ser uma efetiva “escalada reacionária” (que havia chamado de fascista) de longa data no Brasil. Que remonta não a este segundo turno — é claro! — mas, justamente, ao início da redemocratização brasileira. “Já estava lá”, como você chegou a dizer — não sei se referindo-se ao início da redemocratização como eu estou fazendo agora. “Lá”, quando a ditadura civil-militar brasileira obteve sua maior vitória: ter feito os trabalhadores e a esquerda brasileira acreditarem que a estavam derrotando, em mais uma de suas operações militares político-institucionais (corroboradas pelos trabalhadores revoltados) . Os tipos e padrões de mobilização dos trabalhadores brasileiros a partir daquele momento, mesmo com sucessivas e distintas fases (Diretas Já, Constituinte, Fora Sarney, Lula Lá, Fora Collor, Fora FHC, Lula Total, etc.), passaram cada vez mais a transmutar radicalidade e revolta (contra o sistema) justamente no aperfeiçoamento de sua gestão, conservadora, reacionária. Revoltas dentro da Ordem, recuperadas por ela.
A esquerda passou a mobilizar os trabalhadores, mais ou menos organizados, para aperfeiçoar um Estado (democrático de direito) cujas bases fundamentais de gestão a Ditadura havia deixado, na prática, intactas (hegemonizadas pela “direita”). Os bons e velhos PMDBs e PFLs no coração da máquina, sobre os quais voltaremos a falar… A participação dos trabalhadores neste período (em partidos como o PT, sindicatos, setores “progressistas” da Igreja Católica e movimentos sociais), nos termos do Estado democrático de direito colocados em nossos lombos, tem levado a uma verdadeira revolução/atualização capitalista no Brasil (desde o fim da Ditadura). Partidos, sindicatos e movimentos sociais participam do processo político, capitalizando o inconformismo dos trabalhadores na forma da defesa do Estado, para gestar políticas públicas ao Estado.
Mas não foram apenas os partidos e sindicatos “de esquerda” ou a “ala progressista” da Igreja Católica que mobilizaram os trabalhadores no Brasil durante este período — e aqui deixo também uma hipótese complementar importante para a gente aprofundar. Sobretudo as Igrejas Evangélicas pentecostais e neopentecostais (mas também os setores carismáticos e reacionários do catolicismo, impulsionados pela gestão de João Paulo II), também avançaram muito, à sua maneira, na mobilização de milhões de trabalhadores nestas últimas décadas, baseando tal mobilização/organização noutra espécie de transmutação de descontentamentos radicais (sentimento de fracasso, frustração, medo do empobrecimento, depressão, ressentimento contra mais pobres, receios apocalípticos, etc.) em propostas e práticas conservadoras ou reacionárias (batalha espiritual contra demônios mil), conduzidas por pastores que, em muitos casos, são verdadeiros Führers empresariais (sendo os fiéis os seus empregados-seguidores).
Outro setor que passou a mobilizar trabalhadores pobres, principalmente jovens em comunidades pobres, foi o chamado “crime organizado”. Aqui também, elementos de transmutação da revolta juvenil contra o Sistema numa mobilização empresarial reacionária, absolutamente dentro da ordem. O “crime organizado”, absolutamente imbricado com os seus braços — militares — dentro do Estado: as polícias e as milícias.
E vamos montando o quadro de terror que vai se mostrando vertiginosamente, com todas as letras e acentos, no último período. Partidos, sindicatos e movimentos sociais crapulizados; Igrejas católicas ou evangélicas empresariais, midiático-carismáticas e reacionárias; e braços armados estatais e para-estatais, imbricados… Todos estes setores amalgamados, junto aos seus respectivos aliados no setor empresarial-financeiro, na disputa pelos seus nacos do Estado democrático.
É este longo processo histórico de “aperfeiçoamento da democracia” — leia-se, de consolidação da “hegemonia gestorial” e aprofundamento da dominação capitalista por aqui — que, a meu ver, o governo Lula levou às últimas conseqüências — conseguindo, inclusive, uma relativa e inédita confluência de vários dos movimentos históricos acima esboçados, além da gestão/condução direta da população miserável atendida pelas Bolsas Família da vida (uma população majoritariamente desorganizada politicamente, ainda que relativamente abarcada pelas organizações cristãs). Com o requinte adicional, nestes últimos 8 anos, de certa “hegemonia às avessas” personalizada no “torneiro mecânico” “trabalhador-cristão”, em carne-espírito à frente deste processo.
Um processo que estas eleições anunciam aprofundar ainda mais, seja com a vitória de Dilma (pendendo para o primeiro dos padrões de reacionarismo acima), seja com a vitória do Serra (pendendo mais para os outros dois, ainda que eles não difiram muito, estando ambos bem contemplados no “pacto lulista” e na gestão político-econômica em curso).
Dito isto, antes de passar ao importante debate dos demais pontos ideológicos e práticos levantados por você, deixo uma questão para ser respondida lá na frente: se já vinha de longe esta “escalada do fundamentalismo religioso” (ou talvez, quem sabe, também certa escalada reacionária/fascista), sua explicitação total, seu escancaramento desabusado podem não ter simplesmente tornado “seus pontos mais sensíveis a chave dos debates no período (segundo turno)”, mas esses debates podem significar novos avanços práticos reais ainda maiores desta(s) escalada(s) histórica(s). Agora cada vez mais desabusados: explícitos, escancarados e, portanto, turbinados. Talvez seja sobre os possíveis cenários e eventuais nuances desta inescapável “sujeição [objetiva] às forças das circunstâncias de derrota” (capitulação) que realmente estejamos tratando neste momento. Infelizmente. É uma tragédia só, uma conjuntura rebaixadíssima. Se não, vejamos melhor.
Em relação às questões político-partidárias e às eleições, você, C., levanta “questões no plano prático e no plano ideológico” que, acredito, tocam em pontos fundamentais para qualquer discussão (e decisão) nesta conjuntura perene.
Sobre o plano ideológico, você começa por afirmar que “o ‘voto útil’ em Dilma é uma capitulação ao projeto petista. Não há outro nome para isto”. Com o que realmente concordo — ainda mais se tratando de um debate entre anticapitalistas autônomos, que sempre optam por votar nulo ou sequer votar —, mas desde que cheguemos a um acordo sobre o que se considera “capitulação”. Se você com isso quis dizer “cedência, sujeição [objetiva] às forças das circunstâncias de derrota”, estou absolutamente de acordo. Fomos duramente derrotados. É o duríssimo cenário prático que eu, e muitos companheiros anticapitalistas (portanto antiburocráticos e autônomos), estamos tentando encarar da melhor maneira neste momento histórico. Colocando-se a questão sobre a importância de intervir — ou não — na escolha (eleitoral) entre a tragédia e a catástrofe (objetivas). Entre o pior e o “mais pior”.
Porém, se você quis dizer ou sugerir que possa estar havendo “cedência, entrega” por capitulação (submissão), numa espécie de “derrota sem combate efetivo”: então creio que está enganado, ao menos quanto às dúvidas enfrentadas por algumas pessoas (nas quais me incluo). Afinal, esta segunda espécie de capitulação (entrega sem combate efetivo, submissão), de fato, está ligada ao tipo de prática burocrática que você bem descreve como presente “em vários setores: MST (assumidamente dilmista), PSOL (‘Nenhum voto em Serra’ abre espaço para isso), PCB (‘Derrotar Serra nas urnas e Dilma nas ruas’ é palavra-de-ordem pouco mais interessante, mas ainda deixa brecha para o ‘voto útil’). Com isto, toda a formação e mobilização feita por estas organizações altamente críticas ao PT e a seu projeto ‘Brasil potência’ é transformada na submissão a este projeto no campo eleitoral. Estas organizações são transformadas, assim, em ‘tendências externas do PT’”. Mas não àqueles que não reproduzem tais práticas (burocráticas e, ao fim e ao cabo, institucionais) no cotidiano de sua atuação política, de formação e de mobilização. Para os quais, por outro lado, talvez tenham importância as possíveis nuances que houver entre um cenário político-social com Dilma (Lula, PT, etc.) à frente, e um cenário político-social com Serra (PSDB, DEM, etc.) à frente.
Mas, daqui em diante, para aprofundar melhor esta questão ideológica faz-se necessário avançar na discussão das questões práticas que você começou a levantar.
Como já disse, concordo plenamente que não tem havido nem está no horizonte “(a) concessões programáticas importantes para os movimentos sociais”. Estamos tratando de um cenário rebaixadíssimo — no qual estamos todos muito longe de impor concessões a quem quer que seja. Infelizmente.
Quanto ao item “(b) quando cria um cenário de menor repressão e maior liberdade de ação para os movimentos sociais”, aqui realmente tenho minhas dúvidas em relação ao quê você diz, C. E olha que eu conheço um pouco da situação inclusive aí na Bahia, cuja “Polícia da Caatinga” — e suas práticas genocidas renovadas — eu tenho ajudado a denunciar e combater cotidianamente há alguns anos. Conheço também o histórico de Jacques Wagner e dos Valmires Assunções da vida… Além do mais, em nenhum momento colocou-se em questão aqui — por nenhum de nós, creio eu — o grau de atrelamento e cooptação, seja em esfera federal ou estadual, que as atuais gestões do PT têm impulsionado. Isto é absoluto consenso entre nós, e o seu combate cotidiano também — me parece.
Acontece que, na minha opinião, o patamar de alternativas que nos está colocado neste momento é outro. É rebaixado mesmo, a começar pelo âmbito federal. Trata-se de uma análise — nem que seja no puro terreno da opinião, sem que ela necessariamente leve ao “voto útil” — de uma projeção dos cenários futuros objetivamente colocados a nós. Sinceramente, não tenho elementos aprofundados para conjecturar sobre quais seriam as melhores condições aí no estado da Bahia: continuidade de Jacques Wagner ou Paulo Souto ou Gedel Vieira. Deixo, por enquanto, isso com vocês.
Já no âmbito federal, creio que poderá haver um terreno de menor repressão às comunidades pobres e aos movimentos sociais num governo de Dilma (Lula, PT, etc.) em comparação com os contornos que vem tomando, aceleradamente, este futuro governo de Serra (PSDB, DEM, etc.). E, bem entendido: “menor repressão” não quer dizer necessariamente “maior liberdade de ação para os movimentos sociais” — que eu não creio que haverá em nenhum dos dois contextos. Menos repressão, neste cenário rebaixado que estamos tratando, significa “menos extermínio, menos genocídio”. E, na minha opinião, os novos contornos que esta disputa eleitoral tem tomado, com o candidato José Serra se apoiando, no discuro e na prática de suas composições políticas, em setores mais reacionários da igreja católica (Opus Dei e TFP, de Igrejas evangélicas tradicionais, como a Batista e Assembléia de Deus e de maçons, isso junto a certos tipos de articulações com os militares mais reacionários do país, além da participação orgânica da CNA em seu núcleo de governo, enfim, conformam objetivamente um cenário de cruzada contra “subversivos” de qualquer espécie, sobretudo homossexuais e movimentos “comunistas”). Estes contornos, comparados com a composição específica da Dilma — mesmo considerando os terríveis PRONASCIS para favelas e o apoio de igrejas como a Universal do Reino de Deus — terão implicações relevantes no cotidiano de nossas experiências de organização e formação popular.
Um exemplo concreto de diferença objetiva, para citar algo que toca a todos do Passa Palavra diretamente: no caso da eleição do Serra, certamente Cesare Battisti será entregue para Berlusconi — assim como se fechará, a meu ver, qualquer possibilidade de se combater a “Lei de Anistia” e avançar na abertura de arquivos sobre a ditadura no Brasil, consequentemente avançando no que se refere à verdade, ao julgamento e à punição de torturadores — vide o encontro programático entre Serra e o Clube Militar, acima referido. Num governo de Dilma, ainda há a simples possibilidade de libertação do Cesare (pelo Lula ou por ela), além de alguns avanços mais no que se refere à revisão da “Lei da Anistia”. É possível, ao menos, ainda que nada nos garanta nada.
Quanto ao item (c), discordo das duas premissas gerais que você levantou. Não acredito que se justifica o voto útil “quando quem acena com estas duas possibilidades [(a) e (b)] está muito atrás nas pesquisas eleitorais”, tampouco acredito que o “cenário atual aponta para a vitória de Dilma”. Acho que o tipo de voto que estou discutindo aqui se justifica única e exclusivamente quando há possibilidade efetiva do reles voto intervir efetivamente num contexto onde haja alguma coisa relevante em jogo, e portanto há alguma chance do tal candidato precisar deste voto para se eleger à instituição.
Eu creio que a tendência atual aponta para a vitória de José Serra neste segundo turno, por uma pequena diferença de votos. E tenho inúmeras razões concretas para acreditar nisso, sobretudo pela forma que tem se dado a ascensão recente dele desde fins do primeiro turno (e a queda da Dilma); pela ainda maior adesão à sua candidatura que ele passou a ter da alta elite brasileira (nas últimas pesquisas, atingiu 70% entre as pessoas com rendimentos de 20 salários mínimos pra cima — os que decidem); pelo peso que terão os votos de São Paulo e, principalmente, a mudança que se aponta em Minas Gerais — com a adesão de Aécio Neves e Anastasia à sua campanha, agora sem nada a perder; pela base de apoio de Dilma (e Lula) ser majoritariamente a população pobre ou miserável do Nordeste, que enfrenta mais dificuldade para votar; pelo histórico dos resultados das últimas eleições, quando via de regra petistas perdem alguns por cento (1-2%) e tucanos ganham outros (1-2%) em comparação às pesquisas das vésperas eleitorais — isso provavelmente devido à maior dificuldade para votar que os apoiadores de Lula (e Dilma) acabam enfrentando. Isto já representa um empate técnico hoje, com tendência de queda ou (no máximo) estabilidade de Dilma e alta de Serra.
Neste cenário, as pequenas porcentagens dos tais partidos nanicos [anões] ou de pessoas que historicamente votam nulo (como eu), podem fazer alguma diferença. E, caso se julgar que tal diferença (entre os futuros governos possíveis) é minimamente relevante para o contexto de resistência (integridade físico-psíquica, mobilização, organização e formação popular), tal opção pelo voto na Dilma — neste cenário realmente excepcional, a meu ver pode ser relevante.
Quanto ao restante de sua mensagem, C., eu concordo em grande medida.
Sobre o poder nefasto, e crucial, que o PMDB exerce e seguirá exercendo nos segundos e terceiros escalões de qualquer um dos futuros governos: é fato. E aí não há qualquer diferença num ou noutro cenário. Nada em que possamos intervir, por ora.
Em relação à hipótese da eleição da Dilma, concordo que haverá “céu de brigadeiro” para o projeto petista. E também concordo que as “‘concessões à direita’ de que tanto falam certos analistas de esquerda não são outra coisa além da concretização de um programa que agrada também a amplas parcelas da base petista”. Concordo que isto é terrível. Mas o cenário com Serra eleito, além de evitar uma derrota pesada para tais setores que estão com ele (que sairão extremamente fortalecidos), significará também uma reaproximação extra-institucional oportunista de velhos burocratas petistas ao imaginário, às bandeiras e às trincheiras do movimento social (forjando novamente as apoiarem, enquanto “oposição”). As dores de cabeça parlamentares e institucionais provocadas pela frente PT, PCdoB, PSB, etc. a um eventual governo Serra — que você levanta, C. — eu creio que mais atrapalharão a organização popular autônoma (anti-institucional) do que ajudarão. Ademais: o “Feliz 2014” com “Lula Lá de Novo” será quase automático no caso da vitória de Serra, inclusive não apenas para a “esquerda”.
E concordo relativamente com a quase irrelevância dos votos em tais partidos de extrema-esquerda, tanto no primeiro (cerca de 1%), quanto no segundo turno. Mas, por razões que já adiantei acima, minha análise aponta para este segundo turno decidido por margem pequena de votos, com a maior probabilidade de Serra — dada a guinada recente das campanhas. No qual os tais votos (e eu sou daqueles que anulam ou se abstêm) podem fazer diferença relevante — em meu caso, pensando nas condições concretas menos piores para seguir tocando minha atuação política na base.
Por fim, C., uma última questão que ainda não tocamos e que eu acho extremamente relevante, embora ela seja ainda mais conjectural. Refere-se ao momento em que — podemos minimamente antecipar — poderá haver algum freio nos altos ingressos de capitais no país. O crédito e os investimentos abundantes, que explicam em grande medida as altas taxas de crescimento verificadas nestes últimos anos. Por ora, apenas com o início da mega-capitalização referente à exploração do Pré-Sal, bem como grandes eventos internacionais a serem promovidos no país (Copa de 2014 e Olimpíadas de 2016), com as respectivas grandes intervenções infra-estruturais que eles acarretam, eu creio que haverá um Céu de Brigadeiro ecônomico-financeiro para qualquer um dos futuros governantes que assumirem esta Potência. Creio que até, no mínimo, 2014.
É preciso pensar a sério sobre os efeitos que isso terá no fortalecimento de uma ou outra aliança política, bem como passar a conjecturar sobre quando este afluxo de capitais poderá se reverter, e quem estará à frente do Poder Executivo nessas circunstâncias (tanto agora na bonança, quanto numa possível reversão). Mas isso é assunto para outro momento.
D. em 18 de outubro
Vou intervir na questão em dois aspectos, mas antes disso quero dizer o seguinte. Não considero que as eleições sejam um terreno de luta, mas também não faço profissão de fé de não votar. Desde que a democracia representativa foi restabelecida em Portugal, em 1976, eu votei só quatro vezes. De todas as outras me abstive, já que o voto em Portugal, como em muitos outros países, não é obrigatório. Votei em dois referendos sobre o aborto, e votei nas últimas presidenciais e nas penúltimas ou antepenúltimas legislativas. Se eu tivesse direito de voto no Brasil, também votaria desta vez, e votaria na Dilma. Mas não atribuo especial importância a isto. Existe uma grande diferença entre discurso eleitoral e prática política efectiva e entre base eleitoral e base social de governação, e essa diferença existe tanto para a esquerda como para a direita. Atenção a uma coisa. Os discursos eleitorais revelam muito sobre a mentalidade dos votantes, mas não revelam nada sobre a mentalidade dos candidatos. Então, se queremos ficar apavorados, pelo menos não desloquemos o que deve ser o objecto do pavor. Mas passo ao que mais me interessa.
Em primeiro lugar, acho que A. exagera muito no retrato catastrófico que faz do sistema político brasileiro desde o final da ditadura militar. Tudo o que A. diz sobre este sistema é o que caracteriza em todos os países uma democracia representativa que funcione bem. E sublinho — bem. É conveniente também não esquecer que, na Europa, as actuais democracias representativas tiveram como fundamento a luta antifascista e a luta contra o ocupante do Terceiro Reich, durante a guerra. Foi nesta mobilização de massas que assentou a democracia representativa e o Estado de bem-estar social. Seria bom, penso eu, que estas questões fossem analisadas com calma, sem catastrofismo e com distância objectiva. O que se está a consolidar no Brasil é uma democracia representativa. Todos os brasileiros têm de aprender a viver nela e a lutar nela. E é muito mais difícil — embora seja incomparavelmente mais cómodo — lutar sob a democracia representativa do que lutar sob ditaduras (com excepção do Terceiro Reich e da última ditadura militar argentina, que levaram a repressão a extremos nunca antes vistos).
Em segundo lugar, penso que o progresso da religiosidade neste país na última década e meia indica a americanização da sociedade brasileira. O tipo de religiosidade que aqui se está a difundir em nada corresponde à velha religiosidade mística que caracterizou os países europeus da orla mediterrânica nem à religiosidade do ascetismo e da vontade, que caracterizou os países do norte da Europa e a que o Max Weber se referiu no célebre ensaio. O que os evangélicos começaram a desenvolver nos Estados Unidos há várias décadas atrás e que se encontra agora em expansão no Brasil é uma religião do utilitarismo religioso mais imediato, absolutamente desprovida quer do misticismo católico quer da interiorização luterana ou calvinista. É a religião dos pequenos negócios. Deus dá lucro é o artigo único deste novo credo.
E. em 18 de outubro
Prezado A., muito oportuna a sua provocação. Você fala, penso, essencialmente de dois temas: a escalada de uma fascistização no país e o voto em Dilma como um mal menor. Ajuda a nossa reflexão lembrar: a fascistização, aqui entendida como política de governo contra os movimentos sociais, atravessa toda a nossa história republicana, desde a República Velha. O Partido dos Trabalhadores foi organizado como uma oposição ao domínio oligárquico secular na política brasileira, mas logo foi capturado pela institucionalidade e já chegou ao governo central inteiramente descaracterizado e submetido ao mesmo jogo da elite capitalista. Tornou-se assim uma mera peça do jogo institucional, um joguete nas mãos do sistema, cada vez mais impotente para qualquer crítica ao poder instituído e principalmente o melhor instrumento da burguesia para a domesticação e a despolitização dos trabalhadores. Pode até vencer este segundo turno, mas o governo Dilma, refém de suas alianças, será um governo mais à direita ainda que o de Lula, e mais frágil. Será um governo de covardia, quando não de conciliação, com a escalada de fascistização. O governo de Serra será a volta ao poder dos profissionais da política burguesa, no lugar dos amadores petistas. Uma política econômica igual à do liberalismo social de Lula, com mais intolerância às lutas sociais e alinhamento direto ao Pentágono. Uma harmonização do Palácio do Planalto com os instrumentos atuais da fascistização no Estado brasileiro e nos círculos íntimos do poder: Supremo Tribunal Federal, congresso nacional, meios de comunicação, igrejas cristãs, meios empresariais, principalmente do agronegócio…
Como se comportarão os movimentos sociais frente a um e outro governo? No de Dilma — pensando aqui nas siglas-chave com seu poder de influência sobre outros diferentes movimentos — continuarão sendo chapas-brancas? Tudo indica que sim… No de Serra, conseguirão vencer sua desmoralização e fazer uma oposição de conteúdo novo?
Quanto a nós, como esquerda anticapitalista, nos cabe continuar lutando para o fortalecimento de um movimento social minimamente consciente do que está em jogo, da luta de classes, dos interesses inconciliáveis entre trabalho e capital, do que significa o Estado burguês como defesa do domínio do capital e armadilha de domesticação da esquerda. Sabemos todos que só um movimento social assim pode neutralizar e quem sabe barrar a escalada fascistizante e até um fascismo propriamente dito, pois sabemos também que o capitalismo gera fascismo (as contradições permanentes do primeiro ao fim e ao cabo apelam para o porto seguro do segundo). Sem um movimento assim os trabalhadores e o povo sempre estarão na contingência de a cada quatro anos (quando um golpe militar não interrompe) se virem constrangidos a ter de escolher entre dois programas antipopulares. É em boa hora, para ajudar nessa reflexão no seio dos movimentos e da esquerda, que o Passa Palavra está se propondo a fazer a reflexão sobre o Brasil Potência e seus reflexos sociais.
Por tudo isso, não votarei em nenhum dos dois postulantes.
D. em 18 de outubro
Não pensava regressar à questão, mas já que o E. mencionou o fascismo a este respeito, e o A. o havia também mencionado anteriormente, acrescento algumas linhas ao que escrevi antes.
Um dos eixos de toda a minha pesquisa sobre o fascismo consiste em recusar a ideia, comum na extrema-esquerda, de que o desenvolvimento natural do capitalismo leva ao fascismo. E esta foi também uma ideia corrente no Komintern, e duranto o seu pior período, quando estava sob a direcção de Zinoviev. Pelo contrário, toda a pesquisa me leva a crer que o fascismo só se desenvolve quando surgem obstáculos ao desenvolvimento natural do capitalismo.
Mas isto não significa que eu faça uma apologia do liberalismo. A conclusão simétrica da que eu indiquei no parágrafo anterior é de que a democracia não precisa do fascismo para desenvolver as suas modalidades específicas de totalitarismo. Por isso mesmo se deve conceber uma Democracia Totalitária, que é a outra face do fascismo.
Mas creio que é um engano muito grande, e com consequências muito graves, confundir as formas totalitárias da democracia com as formas do fascismo. O que é adequado para combater um não o é para combater as outras.
C. em 18 de outubro
D. aponta o seguinte: “que o progresso da religiosidade neste país na última década e meia indica a americanização da sociedade brasileira” e que “o que os evangélicos começaram a desenvolver nos Estados Unidos há várias décadas atrás e que se encontra agora em expansão no Brasil é uma religião do utilitarismo religioso mais imediato”.
Eu trabalho numa instituição com ligações religiosas e, como sou ateu, me vejo obrigado de vez em quando a entrar em discussões teológicas, pois a Teologia da Libertação, à qual se vincula a maioria dos que aqui trabalham, tem certas consequências metodológicas no trabalho que desenvolvemos junto a movimentos sociais, consequências estas que terminam resultando em retrocesso político. Justamente por isto, me vi obrigado também a entender um pouco desta “americanização” no campo religioso lendo algumas coisas muito rápidas sobre a Teologia da Prosperidade, matriz de todo o campo cristão neopentecostal (Universal, Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Poder de Deus, etc.).
É a partir destas primeiras leituras sobre a Teologia da Prosperidade que posso dizer que este fundamentalismo religioso de matriz neopentecostal é expressão ideológica da reação à hegemonia gestorial. Um dos fundamentos da ascensão e permanência da burocracia e da tecnocracia — não único, mas bastante importante — é o segredo que faz sobre as técnicas e procedimentos que emprega em sua ação, que resulta em verdadeiro domínio. Exemplos, em termos muito gerais e abstratos: o burocrata não dá a conhecer os procedimentos jurídico-administrativos necessários para que questões se resolvam sem sua interferência; muito pelo contrário, cria uma linguagem e ritos próprios para que questões sejam resolvidas. O tecnocrata faz algo semelhante, mas substituindo os procedimentos pelas técnicas.
Ora, em ambos os casos, resolver as questões da vida cotidiana torna-se mais e mais um problema. E quanto menos as pessoas entendem destas técnicas e procedimentos, mais misteriosas ou impossíveis lhes parecem as soluções para seus problemas cotidianos. Isto, por exemplo, vale tanto para a papelada necessária para a aposentadoria ou para o seguro-desemprego quanto para o desenho arquitetônico e as técnicas mais simples de engenharia civil. Este mistério e esta dificuldade, quando se tornam elemento do cotidiano, abrem campo fértil para qualquer coisa que possa dar ou uma explicação para as dificuldades da vida, ou um simples lugar de convívio onde conversar sobre elas.
Eis onde a Teologia da Prosperidade entra. Numa conjuntura de fragmentação dos trabalhadores, de individualismo crescente, de militarização dos espaços públicos, etc., cai bem uma teologia onde pobreza é sinal de falta de fé, onde a força da fé se manifesta através do bem-estar material… Assim, como ideologia que dá um fundamento teológico à prosperidade material e à meritocracia (riqueza, para esta teologia, é sinal de mérito pelo trabalho, não de exploração desenfreada), a meu ver ela se alastra pelas periferias brasileiras — e não só nelas — num quadro de reação à hegemonia gestorial. Entre um mistério que bloqueia as soluções para as questões da vida cotidiana e um mistério que promete o paraíso, é certo que quem vive no aperto e no desespero preferirá este último.
F. em 18 de outubro
O uso indevido do apodo de fascista e fascismo foi — e é ainda — muito corrente em Portugal por parte do Partido Comunista e dos grupúsculos da extrema-esquerda. O quase meio século de ditadura salazarista fez com que toda e qualquer medida ou atitude repressiva do Estado pós-1974 fosse sempre interpretada como um sinal (ou um perigo) de regresso ao “antigamente” e não como uma função normal do novo regime parlamentar. Só uma persistente busca de exactidão factual nos pode ajudar a ir limpando esse sarro que nos deixaram tantos anos de esquerda subjectiva.
G. em 18 de outubro
Nem todo medo é baseado em coisas ilusórias, acho até que o contrário é mais comum. Nesta eleição eu realmente estou com medo, não somente pela possibilidade de Serra ser presidente, mas por ter jogado a esquerda institucionalizada ainda mais para a direita. Esse segundo turno está sendo um horror! Eu não sou tão catastrófico quanto A., mas vejo sim uma onda conservadora crescendo no país.
Eu não caio mais no erro, ou pelo menos no que eu hoje acho ser um erro, que é o de dizer que todos são iguais. Não são iguais por dois motivos: por serem de origens distintas e por terem bases sociais também distintas. Há setores sociais, que estão apoiando o PT, que por mais que tenham capitulado frente ao projeto petista, para se legitimarem têm por obrigação defender uma série de pautas para os trabalhadores. Já do outro lado, há setores que querem exatamente o contrário. Vou dar um exemplo: nada garante que a repressão aos movimentos sociais seja maior num ou noutro governo, mas sem dúvidas que num governo de Serra ela seria muito mais legítima. A CUT e o MST vão ser sempre contra a repressão; já os latifundiários, que apóiam Serra em sua maioria, vão apoiar a repressão com toda a sua força.
Para mim, portanto, está bem claro que um governo de Serra seria ainda pior do que o de Dilma. Daí o “voto [f]útil”. Mas acho legítimo quem diz que serão iguais exatamente por minha análise ter um tanto ou quanto de especulação — pois não sei o que se passa lá no meio deles e pode ser que estejam todos a rir da gente.
Outra coisa é que o governo do PT se mostrou um melhor gestor do capitalismo do que o de FHC. E digo isso seguindo o pensamento de que um capitalismo desenvolvido é aquele que inclui mais trabalhadores no sistema de exploração intensiva (mais-valia relativa) e tira, portanto, mais gente da lógica da mais-valia absoluta. E digo mais: o governo Lula foi melhor ainda na tarefa de tirar pessoas da margem do capitalismo e as colocar pelo menos no circuito da mais-valia absoluta. No primeiro caso cito a expansão das universidades, para o segundo o Programa Bolsa Família.
Sei que é uma opinião um tanto quanto estranha e de difícil defesa para quem acha que devemos superar o capitalismo, e sei também que essa argumentação lembra em muito a do PCB de 50 anos atrás, mas vejam bem que não coloco isso como etapa para o socialismo e nem contraponho isso ao socialismo em si. Eu só estou dizendo que ante o retrocesso do capitalismo e um capitalismo mais desenvolvido, eu prefiro o segundo.
Por último, eu vi o programa de Serra hoje na TV e ele foi claro no que vai fazer com a Bolívia. Me assustei. Para a América Latina vale o mesmo que vale para os trabalhadores brasileiros. Antes um imperialismo com uma proposta demagógica de união dos povos do que um que faça isso através da força bélica.
E se realmente estiver em jogo alguma coisa nestas eleições, é isso e nada além disso.
C. em 19 de outubro
O debate vai bem. É uma das boas coisas aqui no Passa Palavra: quem discorda não sai no tapa [não começa à porrada]. Fosse outro o lugar, já estaríamos nas desqualificações mútuas e na defesa intransigente de posições “corretas” ou “verdadeiras”. O tom do debate aqui não é o do convencimento doutrinal, mas do compartilhamento de posições que podem ou não ser alteradas no decurso do debate. Ponto para nós quanto a isto. E ponto para os que lerão este debate mais adiante, quando transformado em artigo.
Voltando à vaca fria, gostaria de centrar a argumentação nos pontos de discordância, e de mencionar apenas de passagem, quando extremamente necessário, os pontos de concordância. Escreveria mais, mas estamos amarrando as pontas, então me concentrarei no essencial.
Sobre o caráter fascista ou fascistóide de certos processos de incorporação de mobilização popular pela ordem vigente, nem tudo o que acontece desta forma é sinal de fascismo. E é preciso perceber se o que estava em pauta desde a origem naqueles processos era realmente uma ruptura sistêmica ou uma mudança na forma da dominação. Um exemplo de miopia política quanto a este aspecto são as análises francamente delirantes dos jornais da Causa Operária e da Convergência Socialista no período das Diretas Já: para eles, aquele processo de mobilização de massas pelo fim da ditadura e pela constituição de uma democracia representativa era — diretamente e sem qualquer mediação — uma “situação pré-revolucionária”. Si Trotski dixit, oportet verum. Se o atendimento a tais reivindicações é prática recorrente e normal sob o capitalismo, embora requeira longos processos de luta, por que chamá-la de fascista? Acho que esta combinação de fundamentalismo religioso, aumento da capilarização do tráfico de drogas (e do crime organizado em geral) nas periferias urbanas e hegemonia gestorial — para ficar apenas nos fatores que analisamos — ou bem é o capitalismo funcionando em sua normalidade (aquele capitalismo puro tido como parâmetro existe apenas nos livros), ou então é outra coisa para a qual sequer temos um nome a dar.
Sobre a tese do Francisco de Oliveira (“hegemonia às avessas”), acho que ela explica pouco (como de resto grande parte de sua produção intelectual nos últimos tempos). Ela dá excessiva primazia ao poder das camadas superiores dos principais setores da economia brasileira (agronegócio, indústria, finanças, etc.) e simplesmente omite que aqueles que recebem seus anéis antes de precisar cortar-lhes os dedos também construíram poder a partir de outra base social e econômica e deram origem a outra classe dominante. Basta saber que Luiz Gushiken, sindicalista do setor bancário, já havia dado a letra ao PT e principalmente a Lula sobre os fundos de pensão ainda no final da década de 1980 e se percebe que o poder que estes “oprimidos” queriam conquistar estava, de certa forma, longe e perto do poder de Estado. (Sobre o assunto, recomendo ler a instrutiva entrevista “Sergio Rosa e o mundo dos fundos”, publicada pela Piauí nº 35, de agosto de 2009.)
Sobre a capitulação ideológica, é da derrota sem combate efetivo mesmo que estou falando. Sinal da nossa própria incompetência para tratar de certos assuntos com quem está pragmaticamente convencido do voto em Dilma ou Serra. Se nos dizemos anticapitalistas e falamos em “anticapitalismo”, e não apenas em “apoio a movimentos sociais em luta” (não falo quanto ao Passa Palavra, mas quanto às nossas escolhas pessoais), é porque há algo que vemos aí diante de nós que justifica tal posição. Fatos de pequeno e grande impacto nos levam a adotar tal posição. Mas uma posição anticapitalista exige também que mais e mais pessoas não apenas se sintam convencidos dela, mas que busquem os meios para implementá-la na prática, e que estes meios sirvam ao mesmo tempo para fortalecer-se e enfraquecer o adversário. Se não conseguimos criar ou aproveitar estes meios por força de uma duríssima repressão, encontramo-nos na situação de sujeição objetiva às forças da derrota; se o mesmo acontece em cenário de repressão moderada (aqui é preciso ver de quem estamos falando, porque a repressão exercita-se diferentemente a depender de quem seja seu objeto), é de uma derrota sem combate efetivo de que tratamos.
Um exemplo é o da repressão às comunidades populares urbanas. Não custa lembrar que os responsáveis diretos pela repressão mais imediata e violenta são os governos estaduais, sob cujo comando estão as polícias militares. O PRONASCI banca [apoia, sustenta] suas ações, mas quem as coordena e dirige imediatamente não é o governo federal. Portanto, se se pretende ter “voto útil” com esta justificativa, o alvo está errado. Pior: mesmo um “voto útil” nas eleições para governador não trará novidade alguma aos comandos das polícias militares. Aqui na Bahia, o comando da Polícia Militar e a Secretaria de Segurança Pública foram entregues a figuras “lei-e-ordem” linha-dura por gente da própria esquerda, que incorporou seu discurso na maior tranquilidade. No Rio de Janeiro as UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora] foram implementadas por Sérgio Cabral (PMDB — base aliada do PT) com o beneplácito — e apoio — do governo federal (PT).
Agora, se se trata da repressão a movimentos sociais de massa, acho que a justificativa de “voto útil” com a desculpa de conseguir menos repressão para eles é mais um sintoma da capitulação ideológica a que me referi. Qualquer militante de movimentos de massa sabe que certas práticas de ação direta ou são completamente ilegais, ou são legais mas não são toleradas por quem tem o poder de reprimir. Praticá-las arrisca chamar sobre si a repressão, e é preciso estar a todo tempo pronto para ela. O fato de um governo de esquerda ser composto por gente que apanhou da polícia, sofreu com gás lacrimogêneo, levou tiros, foi ameaçada de morte trocentas vezes, etc. não leva de forma alguma ao desmonte das polícias (militar, civil e federal) e dos órgãos de inteligência [informação e espionagem] (DELOPS, ABIN, etc.), sequer à sua “democratização”. Por sinal, é justamente sob governos de esquerda que mais militantes de esquerda entram nos órgãos de repressão; seus objetivos variam desde o simples salário (estes são os mais sinceros) até sua pretensa — e impossível — “democratização”. Enquanto a esquerda está no governo — e cabe lembrar que a composição do atual governo federal não faz dele um governo de esquerda, mas de centro-esquerda — a polícia fica quieta quanto aos movimentos sociais, mas não deixa de monitorá-los, pois de contrário, e em última análise, todos os empregados dos aparelhos de repressão estariam ganhando dinheiro para não fazer nada.
O que acontece é que vivemos a passagem e a consolidação de um regime que tem na repressão violenta a única forma de controle dos movimentos sociais para um regime que a substitui pela pré-determinação de suas pautas, mantendo-a como potencial a ser empregue contra os dissidentes. Ou seja: vivemos o trânsito de uma sociedade cuja economia baseia-se na exploração dura e desenfreada para uma sociedade cuja economia se baseia na exploração “soft”, intensificada pela inserção de novas técnicas. Na prática: o governo federal abre as portas para os movimentos e dita-lhes as pautas que atenderá; quem as aceita não é reprimido, quem não as aceita toma porrada. Daí dizer: não se trata de “mais” ou “menos” repressão, trata-se da permanência da repressão cotidiana contra as comunidades populares urbanas a partir da ação dos governos estaduais, de um lado, e da mudança no padrão da repressão aos movimentos sociais de massa em nível federal, de outro. Embora a segunda resulte em menos mortos e feridos, basta ver os resultados do governo no campo das reformas fundiárias (agrária e urbana) para entender a quem serve a mudança no padrão de repressão.
Teria outras considerações sobre o cenário eleitoral, mas não acho que seja este, de fato, o centro do debate.
H. em 19 de outubro
O debate está bem adiantado, mas a retardatária aqui vai fazer sua modesta participação…
Tenho observado atentamente o debate explorado pelos companheiros sobre as eleições e, sendo tal discussão pertinente e instigante, resolvi empreender um esforço para refletir junto. Como o Passa Palavra é um coletivo que prima por problematizações oriundas do factual, tentarei assegurar tal método, tomando por base alguns exemplos concretos para não incorrer em nenhuma abstração. Quero fazer algumas perguntas que gostaria não fossem consideradas como um recurso retórico, mas um esforço verdadeiro de pensar junto. Caso julguem-nas ingênuas ou equivocadas, solicito a paciência revolucionária e, se possível, o uso de algum didatismo…
Quando participamos de despejos de famílias sem-teto ou sem-terra ou presenciamos a prisão de companheiros em atos e manifestações, o que fazemos? Quando a governadora do Rio Grande do Sul (PSDB) manteve milhares de famílias sem-terra confinadas numa fazenda, sem mantimentos para os velhos e crianças, pois a polícia não deixava ninguém sair ou entrar, para quem ligamos? Quando somos açoitados pelos policiais nos atos, quando atiram spray de pimenta e sentam-nos a borrachada [batem-nos com cassetete] o que fazemos? Quando a ROTA [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, polícia de choque do estado de São Paulo] desce para o Litoral Sul de São Paulo e decreta o toque de recolher nas cidades e mata 20 jovens negros em uma semana, para quem reclamamos, quem se dispõe a ajudar ao menos denunciando publicamente as chacinas? Quando os movimentos têm suas lideranças presas, o que é feito? Quando fazemos uma passeata [manifestação], quem colabora com carros de som, alimentação, enfim, com a estrutura?
Todas as vezes que o Movimento de Greve das Universidades Públicas Paulistas (dou este exemplo por que foi de lá que eu saí) foi à Assembléia Legislativa de São Paulo não teve dúvida entre bater no gabinete do pastor Agnello do PTB ou no gabinete do Cesar Callegari do PSB; entre Ivanir do PRONA [Partido de Reedificação da Ordem Nacional] e Maria Lúcia Prandi do PT, quem chamamos para a conversar? Quando a polícia entrava nos campi (Araraquara e Marília) da Unesp, tínhamos alguma dúvida em solicitar aos professores progressistas que fizessem aulas públicas em frente à Câmara Municipal? Por que recorríamos a estes meios mesmo sabendo que o que importava mesmo era o processo de luta que poderíamos empreender dentro dos campi, que o inimigo a combater era o gestor do campus ou a tendência de uma Comissão de Moradia em negar aos alunos “irregulares” o direito de utilizar o mesmo espaço dos “regulares” na Moradia?
Bom, penso que os argumentos levantados pelos companheiros são todos relevantes e emblemáticos porque, no fundo, nos remetem e nos fazem pensar mais uma vez nas questões que este Coletivo tem pautado nos últimos meses. Ou seja, de que forma os movimentos sociais, os grupos anticapitalistas poderão se situar entre a barbárie e a burocratização? Como abrir brechas de atuação em meio à recuperação cotidiana das lutas da classe trabalhadora? Como sair desse círculo de dominação que, nas palavras do Felipe Corrêa, gera “apatia e subserviência”?
G. em 19 de outubro
Para mim, essa foi a melhor síntese de tudo que eu ouvi nos últimos tempos: “estamos entre a burocratização e a barbárie”, e o pior é que nada impede que sejam as duas coisas juntas e misturadas.
Gostei do debate…
Para contribuir, primeiro mando um trecho do “idealista” Hegel. Em segundo, mando minhas considerações que eu fiz para um amigo que estava justificando e esclarecendo seu apoio a Dilma.
1 – Disse Hegel (Linhas fundamentais da Filosofia do Direito) no século XIX, antes de existir o sufrágio universal:
“eleger é algo de todo supérfluo, ou reduz-se a um jogo menor da opinião e do arbítrio” (§ 311), “na representação de um ato-de-eleger avulso, indeterminado, essa importante circunstancia está entregue somente à contingência” (§ 311, Anotação).
Pensem essa frase hoje, onde as eleições se transformaram num culto ao mercado eleitoral. Onde os projetos políticos estão embrulhados em marketing, em publicidade… Onde as escolhas são simples crença (sem nenhum tipo de garantia material): “esse candidato vai violentar menos”. “esse vai garantir mais liberdade”. “esse vai acabar com o que está dando certo”.
2 – Minha resposta (a um amigo – com modificações):
No essencial, eu concordo e acompanho sua análise. Nossa atuação e nossa luta anti-capitalista deve se dar na construção de espaços autonomos fora da polítca institucional (ou estatal). Todavia, no que diz respeito a um posicionamento nas eleições, minha postura é outra. Já adianto: votarei nulo no segundo turno.
No limite, nenhum dos dois projetos nos interessa. A candidatura do Serra é claramente uma candidatura composta pela direita e a candidatura da Dilma é o resultado de uma derrota da classe trabalhadora (e aqui – a meu ver – não se trata de cooptação, traição, burocratização. Posso estar errado, mas creio que com essas categorias não conseguimos dar um passo para além da lamentação: “como pode o maior partido de esquerda ter abandonado suas bandeiras históricas?”).
O P. Arantes numa conversa na USP sugeriu uma leitura interessante. Se retrocedermos ao surgimento dos “novos sujeitos políticos” que está na origem do PT (novo sindicalismo, comunidades de base e uma sociedade clamando por participação) e analisarmos o modo de funcionamento do neoliberalismo, que com a desestruturação do mundo do trabalho, necessita de uma sociedade participativa, talvez tenhamos uma resposta.
Não é que o PT entregou os pontos (cooptação, traição, burocratização). Nem que o neoliberalismo roubou e destituiu nossa fala (rebaixamento, ressignificação). O que houve foi uma conjunção: uma esquerda sedenta em participar! e um sistema de poder que necessitava de uma sociedade participativa!
É o retrato de hoje: ONG(s), intelectuais que se transformam em técnicos, população desempregada que vive na viração do dia-a-dia, sindicalistas gestores e movimentos sociais se ocupando das emergências cotidianas.
Poderia ter dado outra coisa? Acho que sim, mas o fato é que as coisas convergiram. E ai, a questão da continuidade FHC- Lula (agora por minha conta e risco) faz algum sentido. Foi preciso um governo tecnocrata para desmontar o Estado e depois um governo com ligações com a esquerda para gerir o nivel de pobreza que esse desmonte causou. Como? Programas sociais. Lembrando que isso não é direito social. Qualquer governo pode retirar (basta uma crise).
O Chico de Oliveira quando diz que o Lula é mais privatista que o FHC deveria explicar melhor. O Lula não está privatizando. Mas o que ele faz dá no mesmo. O BNDES não financia privatizações, mas financia as grandes empresas que a muito tempo perderam o selo de nacional. Mas tanto nas privatizações como hoje, temos concentração de capital.
Poderíamos apontar outras proximidades. Principalmente no que diz respeito a violência estatal. O Lula recentemente teve a coragem de dizer que no governo dele a polícia “reprimiu quem tinha que reprimir”. As forças federais junto com as estaduais estão massacrando os pobres. E isso vai aumentar com a proximidade da Copa e das Olimpiadas. Os dilmistas só conseguem questionar isso numericamente (o Serra reprimirá mais). Depois de acontecido vai ser fácil dizer: Se fosse o Serra seria mais! Ou Se fosse a Dilma seria menos! Acho que as pessoas merecem mais respeito.
Fora isso… A economia é utilizada como ideologia (consumo aumentou). Mas não se discute seriamente o capital financeiro que está possibilitando isso, nem o papel dos EUA que estão entuchando dollares no mundo inteiro. Tudo se passa como se o aumento do consumo fosse uma grande política de governo Lula deslocada do cenário mundial (afinal, saímos antes da crise, dirão os petistas).
Pontuo essas coisas, sem aprofundá-las, isso mereceria um artigo. O que me deixou surpreso foi que diante do baixo nível (baixaria mesmo) das campanhas, não houve nenhum intelectual ou movimento para tentar levantar uma discussão mais de fundo. Para não ser injusto, o Chico levantou coisas interessantes na entrevista dessa semana… E a Maria Rita Kehl tocou em algo importante ao criticar a forma como as pessoas desvalorizavam o voto da população pobre. Lá onde as imprensas diziam que esses estão votando apenas em interesse próprio, a Maria Rita Kehl lembrou que tem uma questão essencial: dignidade do trabalhador.
Acho que ela exagerou em querer dizer que isso era “Consciência de Classe”. Ela corre o risco de cair no mesmo erro de quem ela estava criticando. Porque? Por que ela conseguiria explicar o voto dos pobres que já não precisam vender seu trabalho por R$200, mas não creio que se arriscaria a utilizar o conceito de consciência de classe para os pobres que ainda votam na direita histórica (que são muitos!). Pra uns seria consciência de classe… E pros outros? Manipulação? Enfim, num sistema como o capitalismo, acho que não temos a possibilidade de ser juiz da consciência dos outros.
Fora isso, foi o de sempre. Manifestos (universitário, terceiro setor, movimentos sociais) pro-Dilma ou anti-Serra. Falando que devemos evitar o pior! É o discurso que encontramos desde a primeira vitória do Lula e estamos repetindo pela quarta vez (contando as eleições de prefeito).
Diante desse cenário, prefiro não escolher A ou B. Não estou me omitindo, não estou me esquivando para depois dizer: “está vendo, eu avisei que a mulher era filha da mãe”. Não acho que seja irresponsabilidade não escolher A ou B quando analisando friamente não sabemos para onde A ou B nos pretende levar. Eu entendo e respeito quem está escolhendo, mas, sem querer menosprezar, há uma crença ai que não é política.
A meu ver, precisamos escapar desse pragmatismo. Hoje, os “dilmistas” convictos adoram bater no PSOL e PSTU (por exemplo) e afirmarem sua maturidade política votando no PT (O capitalismo liberal democrático está aceito como fórmula da melhor sociedade possível; só resta torná-lo mais justo, mais tolerante e coisa e tal).
Não estou defendendo a forma partido, mas o problema deles é um problema geral que qualquer militante está vivendo. Podemos colocar a estratégia e a tática em questão, mas eles não são responsáveis pela situação da esquerda (ou são junto com todos nós). Se em alguma medida a gente não for capaz de plantar uma utopia, creio que o melhor é enrolarmos a bandeira (como diz o Badiou: “um sonho que implica alimentar sua própria impossibilidade”).
Sei que isso não se faz numa eleição, mas também não se faz escolhendo A ou B e dizendo: “Por aqui será mais fácil!”
É isso… Me desculpe novamente pelo tamanho do comentário. E vamos pensar juntos, pois não existe possibilidade de política se nosso horizonte for “evitar que o pior aconteça”.
Não li nem até a metade (por falta de disposição minha).
O voto é no menos pior, e quase sempre há o menos pior. É simples assim.
Se não vamos conseguir sair da frigideira agora, que o fogo seja mais brando. Para mim não há motivo para se discutir muito isso.
Este comentário do Leo Vinicius sintetiza, para mim, tudo o que penso das eleições.
1º Nunca participar em campanhas eleitorais, porque essas campanhas nada exprimem do que pode ou não pode mudar na sociedade. São campanhas publicitárias.
2º Votar no “menos pior”, porque é como desviar um pouco o pé para pisar a poça de água em vez da bosta de cão, escolha simples e natural quando se caminha pela rua. Ou não votar em ninguém, como na próxima eleição presidencial portuguesa, porque todos os candidatos são igualmente piores e, em Portugal, o presidente não tem qualquer poder real executivo, sendo apenas o que eles chamam “uma magistratura de influência”.
Oh pessoal, vcs do Passa Palavra estão muito atropofágicos/as pro meu gosto. Ultimamente publicam cada matéria verborrágica, que ninguem tem condições de ler e tem um sério périgo de levar a iniciativa de vcs água abaixo e, pasme, nesta última ainda querendo anonimato (sic!), colocando a,b,c, etc. como se não estivesse mais do que claro quem fala o quê e de onde. É brincar com a nossa inteligência, não?
Dito isso fico, com pé atrás, com os dois últimos (leo e jmb): votar no “menos pior” é melhor, com a anotação que em algum tempo clássico (cem anos atrás, na Europa), votar no sistema da democracia burguesa (no dito tempo uma conquista!), era visto como um mero termômetro, até que logo veio o reformismo político e o revisionismo teórico e a social-democracia (seus representantes tomando gosto do poder, do clima e da macidez das cadeiras) votou a favor da Guerra, aquela depois conhecida como a primeira guerra mundial…
Desde então estamos nessa…
Há uma deliciosa entrevista com FHC (o título engana) na Folha http://www1.folha.uol.com.br/poder/824160-fhc-diz-nao-endossar-mais-psdb-que-nao-defenda-a-sua-historia.shtml, que tem umas pérolas, como: “Social-democracia, vamos devagar com o ardor. O sujeito da social-democracia europeia eram a classe trabalhadora e os sindicatos. Aqui são os pobres. O Lula deixou de falar em trabalhador para falar em pobre. Mudou. Nós descobrimos uma tecnologia de lidar com a pobreza, mas estamos por enquanto mitigando a pobreza.”
Brjs,
Bê-á-bá
Camaradas Leo Vinicius, Bê-á-Bá e Raul:
Concordo com vocês que o texto está muito longo e, às vezes, enfadonho. Depende muito do tempo e do saco de cada leitor…
No entanto, me parece que o mais importante e interessante do debate são as análises específicas do contexto sócio-político vivido por nós – incluindo neste rol de análises o comentário do Danilo Chaves -, e não a discussão pontual sobre o voto. As eleições e o voto, me parece, foram apenas pretexto pra se iniciar uma discussão de maior fôlego. Que tem trazido reflexões muito interessantes, principalmente nas intervenções de A, C, D e G, além do comentário de Danilo Chaves.
Eu estou gostando dos esforços empreendidos até aqui… Acho que contribuem para as reflexões que temos feito (e devemos avançar) nos espaços onde atuamos.
Agora: as análises acima estão em estado bruto. Precisam ser melhor lapidadas, confrontadas e digeridas. É necessário pensar também na melhor forma de comunicá-las (inclusive para além da escrita) junto aos espaços de mobilização e formação na base. É para estes desafios que o debate acima aponta. Vamos ver aonde ele vai dar…
Olhar a Floresta,
não vejo muito sentido em ter como ponta de partida eleições para se chegar a uma análise política que vá além dela. Ora, isso seria justamente colocar as eleições no centro da ação política. Se se fala de eleição, pra mim só faz sentido se discutir voto.
Camarada Leo Vinicius,
Se ao se tratar do contexto eleitoral (mesmo como pretexto, como simples ponto de partida…) só se faz sentido caso se discuta o voto, todo o texto e as análises acima jamais poderiam trazer qualquer contribuição para as suas reflexões (sobre a sociedade brasileira). Afinal, está ressaltado desde o início da publicação (feita depois das votações), que “todos estamos de acordo em reconhecer que não é no âmbito do aparelho do Estado, mas noutro plano, que a luta anticapitalista deve prosseguir”.
O quê quis dizer no comentário anterior é que as análises sobre o contexto sócio-político brasileiro, feitas por muitos companheiros acima, me trouxeram perspectivas interessantes, e relevantes. Para a “floresta” da construção de meu entendimento crítico, e de minha prática militante cotidiana. Ainda que não tenham tido qualquer relevância em mais uma ausência minha nas urnas.
Embora ache um equívoco sua leitura do texto, respeito o bloqueio. Apenas acredito que você tem a perder ao não lê-lo por conta desse, ao se deixar bloquear por esta árvore sem graça…
Por sinal, recomendo a leitura de outro texto (e comentários) aqui no Passa Palavra, que também parte das eleições para analisar muito mais do que elas: http://passapalavra.info/?p=31270 . Mas, advirto desde já, trata-se de outro texto que obviamente não vai ajudar ninguém a decidir sobre qualquer tipo de voto nesta finada eleição…
Creio humildemente que este seja um momento crucial daquilo que poderíamos chamar de “para onde a água irá correr”, com relação aos próximos anos de acontecimentos políticos no país. Parabenizo ao passa-palavra pelos textos desse momento “sofrido” pós-segundo turno, aonde passamos olhar por tudo que suspeitávamos que pudesse vir à tona no momento de segundo turno. Burocratização, engessamento na institucionalidade, paternalismo do povo, e principalmente, discurso sobre “menos pior” em relação ao “mais” pior?? Tenho duas recomendações para dois retratos-militantes desse período:
– Primeiro, aos Dilmistas: a dicotomização exacerbada entre Dilma(Lula) e Serra(FHC) enquanto dois projetos profundamente distintos, confundiu a população em debates escorregadios, cheios de meias-verdades e verborragia. Além disso, o eleitorado que já percebe as contradições desses dois projetos e este tipo de disputa, não engoliu a arapuca Petista, mesmo tendo conhecimento da história do partido.
– Segundo, aos levianos: são os tipos que exaltam o discurso de que agora é Dilma, vamos terminar logo com essa besteira! Ou aos medrosos, que exaltavam a candidatura de Dilma, somente tendo por base a afronta da direita neoliberal. Certamente é um risco, mas, esquecer os princípios moldados pela práxis, justamente no momento das eleições? Travar a luta da consciência, não é disso que se trata qualquer momento democrático?
Como o texto menciona, não é momento de ser pragmático. É momento de comunicar, expôr, destrinchar.
As análises, e todo o labor teórico subjacente, deste texto tem um certo caráter patético. É como se o coletivo PP se desse conta da realidade agora (pilula vermelha do deserto do real).
Nós que estamos na “cotidianidade das lutas” para usar mais um copo vazio do edificio teórico e estratégico da “esquerda”, temos de enfrentar “praticamente” a PM e os aparelhos ideológicos nas ocupacações e na lida. E quando descemos o pau na substância religiosa, nos acusam -toda a esquerda – de intolerantes.
E como o texto inteiro não cabe na regra das publicações do PP, aqui vai o resto. Para que debater as eleições se o nosso assunto está muito além das esfera de Estado? Para que esse alvoroço juvenil, apenar para legitimar o debate sobre o voto útil? Tamofora!!
Coletivo Baderna, repare que o texto é sobre as eleições de 2010, quatro anos atrás.
Caio, o tempo pouca influência exerceu sobre o texto/comentários. Tudo não permanece exatamente “atual”, num deja vu em que todos se enredam num ir e vir sem fim? Ao menos podemos dizer que podemos realizar fissuras, ontem como agora!
DA LONG(uíssim)A MARCHA DE ernaBAD
Ou:
AC) de fissura em fissura, rumo à rotura;
BC) esperando GODOT;
CC) enquanto o lobo não vem…