Por Leandro Vichi

Entre muitas razões para lutar contra a extradição de Cesare Battisti, queria neste artigo concentrar-me em duas em particular, ligadas entre elas: a manipulação mediática da imprensa italiana, que impede qualquer tipo de raciocínio sobre o acontecimento, e as contradições na avaliação de factos semelhantes.

battisti-2O caso Cesare Battisti explode mediaticamente na Itália no princípio do ano 2000, quando se projecta explicitamente a sua extradição da França, onde tinha encontrado asilo, para cumprir prisão perpétua na Itália, depois da condenação nos processos onde fora envolvido para quatro assassínios ligados à acção do PAC (Proletários Armados para o Comunismo) durante os Anos de chumbo.

Foi só naquele momento que umas poucas vozes minoritárias começaram a pôr em dúvida os métodos com que foram realizados os processos que levaram à condenação à revelia de Battisti: os documentos processuais mostram, de facto, como a atribuição dos crimes a Battisti encontra fundamento exclusivo nas palavras de alguns arrependidos, também pertencentes ao PAC, que além de terem várias vezes entrado em contradição, beneficiaram de enormes diminuições da pena em troca da colaboração com a justiça.

É um facto que os processos daquele tipo, naqueles anos, se desenvolveram segundo um modelo inquisitório, enfraquecendo os direitos de defesa do acusado. É legitimo perguntar, então, se, além da exactidão formal, aqueles processos acertaram sempre na verdade em relação aos casos particulares. Neste caso específico, é legítimo perguntar, sobretudo agora que passaram duas décadas sobre o estado de emergência, se a atribuição das culpas a Battisti foi além duma dúvida razoável; é o que foi feito por parte de algumas pessoas (por exemplo, a redacção do site Carmilla), que levantaram dúvidas e incongruências que, não levando a afirmar a inocência de Battisti, de certeza indicam a sua não condenação segundo as práticas dum processo moderno.

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«Battisti Livre», «Libertemos os Anos Setenta»

Ou seja, nada de transcendental, simplesmente a aplicação prática a um facto com demasiadas implicações políticas para não correr o risco de executar um processo político. Pelo contrário, assistiu-se a uma manifesta defesa dos resultados dos processos, a maior parte das vezes citados de maneira muito aproximada (um exemplo é a errónea atribuição do assassínio Torreggiani). A consequência foi um coro unânime de vozes acríticas, onde o pathos prevaleceu sobre o raciocínio e onde o principal derrotado foi mais uma vez o jornalismo italiano. Os efeitos são evidentes: a ânsia de crucificar Battisti às próprias responsabilidades acabou por criar um processo político público e uma vontade de linchamento que acaba por dar razão ao asilo que lhe foi oferecido até hoje.

A Espanha democrática negou duas vezes a extradição ao fascista Carlo Cicuttini, autor material do massacre de Peteano mas também para o membro de Ordine Nuovo [Ordem Nova, uma organização fascista] Delfio Zorzi o Japão nunca concedeu a extradição. Em 1995 a Suíça não extraditou Licio Gelli, que portanto não foi processado em Itália pelo crime de conspiração política. O terrorista fascista Massimo Morsello ficou em Londres porque a Scotland Yard [polícia britânica] recusou a extradição por insuficiência de provas, em relação àquela que na Itália era uma condenação processual para actos terroristas.

No dia 21 de Janeiro, em Lissone, pequena cidade no norte da Itália, houve uma manifestação contra a decisão (apoiada pela quase totalidade dos partidos políticos actuais) de dar a uma praça o nome de Bettino Craxi, primeiro-ministro italiano socialista nos anos oitenta. A razão que levou as pessoas a manifestarem-se não foi tanto o não reconhecimento dos seus (muito discutíveis) méritos de estadista mas sim o facto de que este personagem, um dos mais influentes da história da república italiana, foi um ladrão várias vezes condenado (seis processos acarretando um total de quase 30 anos de prisão) por graves crimes de corrupção e financiamento ilícito ao seu partido. Para não ser preso, Craxi exilou-se na Tunísia, onde viveu luxuosamente como foragido, protegido pelo seu amigo Ben Ali, até morrer no ano 2000. Nenhum expoente político pediu a extradição de Craxi, mas muitas foram (e continuam a ser) as homenagens e as tentativas de reinterpretar os seus processos, feitos com provas inatacáveis.

battisti-3Silvio Berlusconi, actual primeiro-ministro italiano, envolvido recentemente num escândalo de prostituição de menores e concussão, não perdeu a ocasião para acusar a justiça italiana de tentar subverter a ordem democrática. Na sua última mensagem em vídeo disse que os juízes “devem ser punidos”. Mas esta intimidação foi só a última duma série de ataques que Berlusconi tem feito ao longo de dezassete anos passados no parlamento, não para governar mas só para tentar bloquear os seus mais de vinte processos e calar a justiça. Se escreverem as palavras “Berlusconi” e “Guidici” (Juízes) no Youtube, todas as pessoas podem facilmente ouvir os termos com os quais o primeiro-ministro italiano definiu os juízes italianos (obviamente referindo-se àqueles que se ocuparam dos seus processos) ao longo da sua experiência de “político”: “talibãs da justiça”, “antidemocráticos”, “antropologicamente loucos”, “uma associação criminosa”, “um cancro da democracia”, “uma patologia”, “subversivos das regras democráticas”, “uma metástase da democracia”, “mentirosos”.

Agora, se eu fosse uma autoridade brasileira, não entregaria Cesare Battisti à Itália. Que garantias de justiça pode oferecer um país onde o primeiro-ministro declara quase quotidianamente, também fora da Itália, que “a magistratura é o cancro da democracia italiana”? Que garantias de justiça têm as autoridades brasileiras de que Battisti não foi condenado por um grupo destes juízes criminosos?

Como pode ver aqui, Leandro Vichi foi um dos intervenientes na sessão de apoio à não-extradição de Cesare Battisti, realizada em Lisboa em 15 de Janeiro. Se deseja saber mais acerca do caso de Cesare Battisti leia aqui.

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