CARTA ABERTA DO MOVIMENTO PASSE LIVRE SÃO PAULO SOBRE QUESTÃO DE GÊNERO E MOVIMENTOS SOCIAIS
Na quarta-feira, dia 30 de março, no último ato da Jornada de Luta Contra o Aumento das Tarifas no Transporte Público em São Paulo, houve um “escracho” a um re-incorporado militante do Movimento Passe Livre e ao próprio MPL, caracterizado pela denúncia de machismo verbal e psicológico praticado por esse companheiro há cerca de seis meses atrás.
Primeiramente, precisamos deixar claro que suas atitudes machistas foram discutidas extensamente dentro do Movimento, que o militante ficou afastado por cerca de quatro meses e iniciou acompanhamento terapêutico, desde que tomamos ciência destas atitudes. Durante a Jornada de Lutas de 2011, com o início da sua aproximação às manifestações, voltamos a discutir, e dessa vez com mais profundidade, os diversos fatores envolvidos nessa questão, procurando nos posicionar da melhor forma possível.
Diante da gravidade das atitudes do companheiro, gravidade que este mesmo reconhece, o Movimento colocou condições essenciais para seu retorno como militante: (1) o reconhecimento do seu erro, colocado não como um simples ‘pedido de desculpas’, mas dentro da perspectiva de gênero; e, mais importante que isso (2) – comprometimento de mudança de suas atitudes como parte do processo da retomada de confiança, sendo este processo gradual, conforme estas mudanças vão se mostrando nítidas nas suas práticas; e ainda (3) – a continuidade do tratamento psicológico que o mesmo iniciou aos cometer o machismo verbal e psicológico. Esse comprometimento de mudança não só foi assumido por ele como pelo próprio Movimento que se propôs a também cotidianamente rever-se.
O MPL – SP concluiu, diante de seu posicionamento e do compromisso de mudança assumido por ele e pelo Movimento, que a melhor forma de lidar com uma questão tão latente como esta, avançando na discussão de gênero, era a não exclusão do indivíduo, pois a exclusão não significaria a eliminação do machismo. Achamos mais produtivo, tanto para o MPL, quanto para a luta anticapitalista, nos esforçarmos em impulsionar a transformação das suas atitudes do que excluí-lo. A re-incorporação com perspectivas objetivas e subjetivas de mudança e retomada de confiança dá, nesse caso, espaço para que esta transformação possa acontecer.
Ainda assim, concordamos que durante este processo de retorno, o companheiro não assumiria tarefas públicas pelo Movimento, o que foi seguido desde o retorno do mesmo às manifestações (vale dizer que no dia em questão, quem estava dando a entrevista era um secundarista, o Caio, e que este pediu auxílio pro militante que estava mais próximo…).
Com relação a tornar a questão pública e expor o posicionamento do MPL, entendemos que a resposta deveria, inicialmente, ser dada ao próprio MPL, além disso, foi pesado em nossas discussões o grau de exposição que sofreria a companheira envolvida neste caso. No entanto, o MPL respondeu e responderia sobre o ocorrido a qualquer grupo ou individuo que nos questionasse
Entendemos que os fóruns de decisão do Movimento são sim espaços públicos, e não privados, e que nesse sentido a situação foi sim discutida politicamente. “Acobertar” seria não discutir isso na instância oficial do Movimento, sua reunião periódica, aberta, com decisões constadas em ata.
Sobre o “escracho”
Gostaríamos de ressaltar que existe uma diferença entre o mérito de uma denúncia e o método com o qual ela é feita: acreditamos que deve ser apoiada toda e qualquer denúncia a um ato de intolerância (machismo, racismo, homofobia, etc.), independente se quem o praticou é ou não um militante. Já o método com que a ação de quarta-feira (30/03) foi planejada e realizada nos preocupa muito por uma série de fatores. É importante destacar que em nenhum momento as mulheres do MPL-SP foram procuradas, nem antes nem depois desta ação.
O que leva a pontuar uma outra questão importante: apesar da grande quantidade de organizações feministas e mulheres presentes nesta Jornada, a ação teve um caráter isolado em relação à boa parte destas pessoas e organizações. Nem nós mulheres do MPL, nem as companheiras de diversas outras organizações foram procuradas, evidenciando um sectarismo preocupante.
Além disso, na nossa concepção, escrachos devem ser realizados com aqueles com os quais não é possível, e muitas vezes nem desejável, o diálogo: o escracho tem como objetivo humilhar e deve ser direcionado aos nossos inimigos, àqueles que sabemos que nunca estarão do nosso lado. Dessa forma – para o referido caso – entendemos que para as executoras desta ação não há a disposição de dialogar nem resolver nenhum problema de fato, mas sim nos colocar na posição de um inimigo, o que retrocede na luta e na unidade dos grupos anticapitalistas e na própria luta feminista como um todo.
Queremos expor que acreditamos termos tratado a questão com a seriedade necessária e que a nossa decisão aponta para uma tentativa de construir uma sociedade igualitária, tolerante e não punitiva. Mesmo o MPL-SP acreditando que atitudes e relações possam ser modificadas e que uma expulsão em nada contribuiria para esta transformação, o militante decidiu se afastar indefinidamente do Movimento, por decisão pessoal e pedido de sua família.
Por uma vida sem catracas e sem desigualdades de gênero
Em meio a tantas demandas e pressões que a luta por um transporte público nos coloca fizemos questão de dedicar diversas horas nos nossos espaços para a discussão de gênero, por considerarmos esta uma questão fundamental. Temos avançado muito nesse sentido nos últimos meses e principalmente enquanto mulheres, reivindicamos a nossa autonomia pra encampar esta discussão junto aos demais militantes da forma como a analisamos e entendemos. E nós mulheres, independente de qual organização façamos parte, devemos avançar juntas – respeitando em primeiro lugar as diferentes posições – e buscar sempre o diálogo, e não a desmoralização das visões que são diferentes das nossas.
Por fim, acreditamos que a personalização do problema na figura de uma única pessoa reduz a questão de gênero, tirando o foco de inúmeros outros problemas de gênero que acontecem todos os dias, em maior ou menor grau, não trazendo nenhum avanço na construção de uma nova sociedade de mulheres e homens livres de opressão: o feminismo deve, acima de tudo, construir ferramentas para a desconstrução do machismo e não para a destruição dos homens.
E a fim de estimular esta importante discussão de forma séria, e que traga avanços efetivos na discussão de gênero nos movimentos sociais e organizações políticas, convocamos à todas e todos para a construção de um grande debate, a ser marcado em breve, com a participação de mulheres e homens, entendendo que esta questão transcende todos os grupos e devemos juntas e juntos caminhar rumo à uma igualdade real entre mulheres e homens na luta contra o sistema capitalista.
Maravilha. E então, quando será esse grande debate? Já aconteceu?