A pesada herança do regime de Hassan II – desrespeito pelas liberdades fundamentais, repressão, pauperização, analfabetismo – explica os esforços de comunicação do novo rei para tentar absorver o descontentamento popular crescente, ao mesmo tempo que preserva a sua essência autocrática e as políticas liberais. Por Ismail Manouzi e Julien Tierré [*]
Julien Tierré: O rei de Marrocos, Mohamed VI, goza de boa imagem internacional, chamam-lhe “o rei dos pobres”… Qual é a verdade dos factos?
Ismail Manouzi: É verdade que o regime marroquino parece ser uma excepção no conjunto dos países árabes. Hassan II [o rei anterior, pai do actual] deixou a imagem de um regime autocrático e medieval, mas pouco antes de morrer soube mudar essas feições convocando um governo dito “de alternância”, presidido pelo secretário-geral da União Socialista das Forças Populares (USFP), o maior partido da oposição reconhecida, mas hoje totalmente convertido ao liberalismo e… à monarquia.
O rei actual deu seguimento a esses cuidados com a “comunicação” através de medidas que, não tendo custos políticos nem económicos, têm uma forte carga simbólica: uma tímida revisão do código da família, a criação da estrutura chamada “Instância da Equidade e da Reconciliação” para passar a esponja sobre a repressão, a permissão dada à imprensa para vasculhar o passado ditatorial e se referir a alguns tabus. Estas medidas, cujo alcance foi exagerado pela mídia local e internacional constituem, creio, a base dessa boa imagem.
É certo que a pesada herança do regime de Hassan II quanto ao desrespeito pelas liberdades fundamentais, à repressão, à pauperização mas também ao analfabetismo é razão suficiente para explicar os esforços de comunicação do novo rei para tentar absorver o descontentamento popular crescente, ao mesmo tempo que, infelizmente, preservava a sua essência autocrática e prosseguia a implementação de políticas liberais.
JT: Qual é hoje o papel da monarquia?
IM: A monarquia, hoje, tem de garantir e reforçar os interesses das empresas multinacionais e dos países credores da dívida externa marroquina graças às privatizações e à exploração dos recursos agrícolas e mineiros, entre eles, claro, o fosfato (Marrocos é o maior produtor mundial de fosfatos).
Tudo isto está ligado ao reforço da presença económica da França que representa cerca de 60% de todos os investimentos estrangeiros em Marrocos. A Espanha vem em segundo lugar com 15%. Os acordos de comércio livre servem para permitir a extensão dos mercados das multinacionais e o desmantelamento do tecido económico local. Por isso há sérios riscos de em pouco tempo vermos explodir o desemprego e acelerar o êxodo rural.
No plano social, a política de Mohamed VI é comparável à de Sarkozy, com o desmantelamento sistemático dos sistemas de solidariedade, em particular a CNSS (Caixa Nacional de Segurança Social), a privatização do sistema de saúde, do sistema universitário…
Por outro lado, aumentou o papel do regime marroquino ao serviço da política de luta contra o terrorismo, sobretudo devido ao lugar importante ocupado por marroquinos na rede da Al Qaeda. Daí o reforço da presença militar imperialista na região (exercícios militares da OTAN e uma base militar perto de Tan-Tan), e a atribuição à monarquia de um novo papel de guarda-fronteiras perante as vagas de imigração das vítimas das políticas liberais em África.
JT: Qual é, na tua opinião, o impacto da crise em Marrocos?
IM: Para já, os efeitos são indirectos: sendo os marroquinos residentes no estrangeiro [MRE] o principal recurso financeiro do país, os despedimentos na Europa vão por certo ter um impacto nos números deste ano. No que diz respeito às fontes internas de rendimento, só no têxtil já desapareceram 50.000 empregos. A agricultura não tem sofrido muito graças às chuvas muito excepcionais destes dois anos, mas continua frágil e dependente do pluviómetro. A exportação de fosfato mantém-se estável.
O desemprego dos jovens está em risco de se agravar, mas é um problema sistémico e já muito antigo, que aliás está na origem do Movimento dos Jovens Licenciados no Desemprego, verdadeira sombra negra da monarquia.
JT: Como está esse movimento?
IM: Desde logo há que lembrar que, desde o nascimento do movimento em 1991, os jovens continuam a não ter qualquer reconhecimento legal, nem mesmo simplesmente associativo, o que continuam a não lhes permitir, por exemplo, terem uma sede. Esse movimento teve a grande virtude de educar o movimento social marroquino, paralisado pela repressão e por uma crise profunda do sindicalismo: os seus militantes foram os primeiros a regressar às ruas, sobretudo nas pequenas cidades. Desse modo conseguiram manter a pressão sobre a monarquia para obterem o recrutamento de 35.000 e 40.000 jovens por ano na função pública. O apogeu do movimento foi a maior manifestação de jovens em Rabat [capital política de Marrocos] em 1999. Desde 2004, o governo e as autarquias locais travaram os recrutamentos, reduzindo-os a um quinto: isto afectou muitíssimo o movimento e reduziu a sua base. Assistimos desde então a uma mudança de estratégia relacionada com esse enfraquecimento, com mobilizações mais locais e por vezes mais radicais.
JT: Como em Sidi Ifni em 2005?
IM: Por exemplo. A enorme mobilização dos jovens e dos habitantes de Ifni mostrou uma forte determinação da população. Ifni tem essa particularidade de ser uma pequena cidade (20.000 habitantes) sem uma actividade económica preponderante. No fim de um fórum social local, os habitantes elaboraram uma plataforma de reivindicações e elegeram um “secretariado de acompanhamento da situação” com representantes das associações, dos partidos políticos e dos sindicatos.
Em 2005 a população desrespeitou a proibição de manifestar e a ala moderada abandonou o secretariado, o que abriu o espaço para uma autogestão salutar que permitiu o desenvolvimento da mobilização. As autoridades não o permitiram, a repressão abateu-se durante 3 horas sobre a cidade, mas os manifestantes aguentaram, a polícia retirou-se e a manifestação continuou e foi terminar à frente do comissariado [esquadra, delegacia].
A população deu provas de uma imensa coragem e de dignidade. Politicamente, foi mais uma prova da utilidade de uma força política que ganhou muita importância e na qual muitos camaradas se organizaram: a ATTAC-Marrocos [1].
JT: Em 2008 houve outra mobilização, a “intifada de Ifni”…
IM: Sim, dessa vez o movimento partiu dos jovens licenciados. O município devia admitir 8 varredores, mas apresentaram-se 800 jovens! Os 792 não admitidos foram bloquear a estrada entre o porto e a vila, 12 deles ficaram em sit-in improvisado, de imediato receberam o apoio da população e milhares de pessoas vieram ajudar a bloquear a saída dos camiões [caminhões] do porto.
O que surpreendeu foi que, por um lado, as autoridades não reprimiram de imediato e, por outro lado, os jovens quiseram falar directamente com as autoridades nacionais, recusando a legitimidade dos negociadores previstos.
O poder acabou por reagir com meios militares, cercando os manifestantes por mar e por terra. Em 8 de Junho, a repressão foi mais violenta do que nunca, os habitantes de Ifni foram vítimas de violações e de roubos, de pilhagem de computadores, telemóveis [celulares], jóias e dinheiro. As forças públicas usaram bombas lacrimogéneas, balas de borracha, pedras e cacetes [cassetetes] contra manifestações pacíficas. Quatro manifestantes foram mortos durante as 3 horas de ataque, a polícia fez 300 detenções. Os detidos foram torturados. Todos estes factos foram elencados e denunciados pela AMDH (Associação Marroquina dos Direitos Humanos), e fez-se uma boa campanha nacional e internacional, em particular uma caravana de solidariedade. Mas infelizmente o movimento não se espalhou.
JT: E agora?
IM: Foi feita uma campanha do CADTM [Comité pela Anulação da Dívida dos países do Terceiro Mundo, próximo da ATTAC] pela libertação de Bara Brahim, um dos nossos camaradas, e de todos os presos de Ifni. Brahim saiu da prisão em Maio passado, ao fim de um ano, apesar de ter sido condenado a 10 anos! Três outros militantes foram libertados com ele – Azeddine Amahil, Mohamed Lamrani e Mustapha Akerbi. Todos graças à campanha de solidariedade.
A ATTAC-Marrocos restrutura-se com os recentes saídos da prisão e recomeça a acumular forças. Nasceu o “Comité do Sit-in”.
Uma ala do “secretariado de acompanhamento da situação”, a mais próxima do poder, propôs uma saída política para a situação e constituiu uma lista para as últimas [eleições] municipais sob a etiqueta do Partido Socialista, uma carcaça vazia que serviu de vitrina legal para a lista. Acabam de ganhar a maioria dos mandatos. Infelizmente a maior parte dos eleitos não são movidos por boas intenções, há entre eles muitos oportunistas, mas a população mantém uma atitude de “vamos dar tempo aos nossos eleitos”. De resto, os camaradas mais radicais estão a incitar a população a criar comités de controlo dos eleitos.
Este tipo de mobilização popular parece ser cada vez mais frequente: por exemplo, na cidade de Tan-Tan tinha havido fortes mobilizações pela gratuidade dos cuidados de saúde, mas a monarquia abafou o caso concedendo certificados de indigência a toda a população.
JT: Falou-se muito do ascenso dos fundamentalistas religiosos no xadrês político marroquino. Como está isso depois do escrutínio municipal [eleições municipais] de 2009?
IM: A existência do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD), o partido que representa a área de influência salafista [2], foi durante muito tempo uma bênção para a monarquia. Esse partido, que aceita sem problemas as políticas liberais do Banco Mundial e do FMI, deixou que a monarquia atacasse a esquerda nas suas zonas de influência. Por exemplo nas lutas feministas, as correntes salafistas mobilizaram cerca de 500.000 pessoas contra a luta da plataforma associativa feminista e contra as suas propostas de reforma para consagrar na lei o direito ao divórcio, à guarda dos filhos em caso de separação e uma justa partilha das heranças entre homens e mulheres (contrária ao Corão).
O PJD tem uma grande capacidade de mobilização que faz dele a maior força política do país. Essa força deve-se, no essencial, a uma forte implantação nas comunidades praticantes, graças às confrarias religiosas.
Isso viu-se claramente nas mobilizações contra a guerra do Iraque e no apoio à Palestina durante o ataque a Gaza (os salafistas representavam dois terços do cortejo, com muitas mulheres e crianças, contra um terço da esquerda).
No entanto, depois das legislativas de 2007 em que foram derrotados, apesar de terem obtido a sua melhor marca de sempre com 10,7%, os safistas têm dificuldade em reaparecer em primeiro plano. Já não são uma força alternativa, depois das experiências desastrosas dos seus eleitos (um caso de corrupção em Meknes, por exemplo), e a população cada vez mais os considera como um partido do mesmo cariz dos outros partidos marroquinos, mentiroso e corrupto. Isso foi confirmado pelo último escrutínio municipal [eleições municipais], onde o novo partido próximo do poder PAM (Partido Autenticidade e Modernidade) ficou em primeiro. É preciso explicar que este escrutínio é muito difícil de analisar: a participação mal chegou aos 50% dos inscritos, o que significa cerca de 80% de abstenção, entre inscritos abstencionistas e não-inscritos.
JT: O PJD voltou a dar que falar quando mobilizou contra o casamento homossexual, adoptado em Marrocos.
IM: Sim, é um epifenómeno mas eles fizeram muito barulho, e fazem o mesmo contra a venda de álcool nos supermercados. Agarram-se a pequenos factos para darem que falar, mas a sua luta contra as práticas “desviantes” do islão aborrece muitos marroquinos.
Paralelamente a isso, para contrabalançar os integralistas, a monarquia começou agora a promover práticas mais tolerantes, como o sufismo. Mas o peso da religião continua bem presente, e, por exemplo, quebrar publicamente o jejum do ramadão é punido com pena de prisão nos termos do artigo 222 do Código Penal. Os avanços nos direitos das mulheres quanto à contracepção também chocam com a realidade das famílias. Aqui, ser laico não é neutral: é confrontar-se com os textos no dia a dia.
JT: Como é que, no vosso jornal, vocês tratam a questão do Saara Ocidental?
IM: O nosso jornal, e sobretudo a secção política de que fazemos parte, optou-se por reagir sempre contra a repressão, contra as injustiças cometidas contra os militantes da Frente Polisário. Mas não temos uma posição clara sobre a questão do Saara. Defendemos a autodeterminação dos povos saraouis, claro, mas isso ainda é um tanto vago.
Quando o jornal começou, evitámos propositadamente o assunto para não sofrermos a repressão reservada a quem fala dessa questão, e preferimos consolidar-nos primeiro e evitar irmos todos parar à prisão…
Há problemas políticos que nós discutimos, como por exemplo: “É uma solução militarmos por um Estado ‘fosfateiro’ com todos os problemas que isso implica?” (o Saara Ocidental tem as maiores reservas de fosfatos do mundo). Mas agora já adquirimos suficiente maturidade para começar um debate sério sobre isso.
A situação do Saara, hoje, é complicada, criou-se um fosso entre os refugiados de Tildouf que passaram 33 anos em campos e as elites do Saara Ocidental que beneficiam de “privilégios” concedidos pelo governo, em particular a exportação de areia! Isso exerce uma grande pressão na base da Polisário que ficou sem orientações claras após 18 anos de cessar-fogo. Ainda há acções radicais visando a polícia e a repressão continua muito forte.
JT: O vosso jornal sofre alguma forma de censura?
IM: Até agora temos escrito o que queremos, a censura não nos caiu em cima, a bem dizer, mesmo quando falamos com precisão e pormenor do movimento sindical e social marroquino. Não nomeamos expressamente o rei para não infringirmos a lei, mas falamos do “governo” ou da “monarquia”… A gente adapta-se.
A nossa tiragem é de 3.000 exemplares e, no essencial, a venda é militante, naturalmente sem qualquer subvenção. O nosso site é também um dos sites políticos marroquinos mais visitados e publicamos on-line obras clássicas em árabe, também fazemos traduções para o site marxisme.org.
Alguns dos nossos artigos traduzidos são difundidos em França na revista Inprecor ou no site Europe Solidaire Sans Frontière, e esperamos que brevemente na nova revista Contretemps [3].
JT: O vosso grupo político está oficialmente constituído?
IM: Não propriamente, organizamo-nos em torno do jornal. Para nos declararmos enquanto força política seria preciso começar por aceitar os três pilares do regime: a monarquia, o islão e a unidade nacional… três coisas que nos põem problemas! Quando formos mais fortes, teremos uma relação de forças mais favorável para que essas formalidades não tenham custos políticos para nós.
JT: Vocês tentam fazer alianças com outros grupos da esquerda radical para terem mais peso na situação?
IM: Sim, iniciámos um debate com uma organização chamada Voix Démocratique [Voz Democrática] (VD), que coloca a si própria no campo da esquerda radical. Esse partido teve origem numa cisão do partido de Serfaty “Ila Al Amame” (Avante, em árabe), mas herdou daí práticas internas pouco tolerantes com o debate de ideias, e nós sempre tivemos uma relação muito tensa com eles, seja politicamente seja nas lutas.
Nós queremos discutir com eles, mesmo assim, há muitas coisas que nos aproximam. Temos de clarificar com eles alguns temas importantes, em particular a nossa estratégia nas organizações sindicais. Enquanto nós tentamos organizar os sindicalistas “lutas de classe” nos sindicatos, os quadros da VD assumem cargos de responsabilidade fazendo grandes concessões aos burocratas. Isso torna-se frequentemente problemático e achamos que faz falta termos uma discussão franca.
A VD seguiu muitas vezes uma estratégia de aliança de toda a esquerda, mas agora começa a posicionar-se pela união da esquerda radical, então nós dizemos: “óptimo”!
Desejamos sinceramente um debate com eles para, quem sabe, avançar para uma aliança séria e sólida nas lutas e em acontecimentos políticos concretos. Ficámos decepcionados com a ineficácia de uma aliança que existiu entre a VD e o Partido da Vanguarda Democrática e Socialista (PADS), que não deu nada de concreto… As lutas corajosas do povo marroquino merecem melhor do que isso!
Notas do tradutor
[*] Ismail Manouzi é director do jornal Almounadil-a, de tendência trotskista, que inclui artigos e análises sobre a actualidade política e as lutas sociais em Marrocos. Esta entrevista foi feita em 17 de Setembro de 2009 por Julien Terrié.
[1] Association pour la Taxation des Transactions financières et pour l’Action Citoyenne [Associação pela Taxação das Transacções Financeiras e pela Acção Cidadã], associação “altermundialista” que apareceu em França em 1998 por impulso de pessoas ligadas ao Monde Diplomatique, como Ignacio Ramonet, Bernard Cassen e Susan George. Foi uma das impulsionadoras do Fórum Social Mundial de Porto Alegre (2001) e tornou-se entretanto um movimento internacional, com associações locais em muitos países.
[2] O salafismo é um movimento islâmico do ramo sunita com origens no século XIV. Defendendo um “retorno às origens”, ou seja, uma releitura literal dos livros sagrados do islão, tornou-se um movimento fundamentalista com projecção na vida social e na política.
[3] A Inprecor é uma revista da IV Internacional (trotskista). A revista Contretemps foi fundada pelo filósofo e dirigente troskista francês Daniel Bensaid, falecido em Janeiro de 2010.
Artigo original (em francês) aqui. Tradução do Passa Palavra.