Por Armando Chaguaceda

“E agora que vai acontecer? Negociações com alguns tiroteios inócuos pelo meio e, depois, será tudo igual embora tudo tenha mudado.”
O Leopardo, Giuseppe T. di Lampedusa, 1957

Está ainda fresco o informe de Raúl Castro [1] e está disponível a variegada cobertura que a mídia [os médias] insular (Cubadebate [2], Granma, Juventud Rebelde) e internacional (IPS, CNN, AFP) têm dado ao VI Congresso do Partido Comunista de Cuba (PCC). Pela sua importância, quero abordar nestas linhas vários assuntos ventilados no conclave e a sua relação com problemáticas da actualidade política cubana, com impacto em toda a região.

Perguntava-me um amigo como avaliaria eu este congresso, se tivéssemos uma escala em que o zero significasse o imobilismo absoluto e o 10 uma reforma radical e estrutural da ordem vigente. Eu dar-lhe-ia um 4 ou um 5, o que sublinha um desempenho moderado, com tendência para a baixa. Dou-lhe esse valor a partir de um conjunto de medidas positivas que, material e simbolicamente, significarão mudanças no modelo actual de socialismo de Estado: desestatização e expansão da iniciativa privada, institucionalização e limites para os mandatos. Todavia, as limitações, as ambiguidades e as ausências do conclave obrigam a moderar qualquer falso entusiasmo, e os testemunhos prevalecentes na comunicação que mantive por estes dias com sete amigos (seis deles residentes na ilha e um emigrado) têm uma matiz comum: cepticismo.

O clamor popular

Como antecâmara deste Congresso houve um crescimento do debate, não só nos espaços institucionais (partidários, sindicais, de bairro) autorizados para discutir as “Linhas gerais”… mas também nos foros e publicações intelectuais e em toda a sociedade. As reivindicações da população foram claras, alargadas e persistentes, a ponto de permitirem delinear uma espécie de Programa Mínimo de saída para a crise: melhoria da situação económica (com recuperação do salário, autorização do trabalho privado, atenção à moradia [habitação] e aos transportes) e expansão dos direitos de cidadania (de deslocação, informação, expressão, etc.). Esse clamor é avalizado pelas declarações de artistas como Silvio Rodríguez e Pablo Milanés, pelos inquéritos de instituições cubanas, pelos estudos de peritos estrangeiros, pelas opiniões de qualquer morador [3].

pccvi_1Perante tantas reivindicações (e esperanças) em temas cruciais de impacto e de interesse popular, o VI Congresso não mostrou a discussão requerida, tanto em extensão como em qualidade. Foi uma vez mais verberado o igualitarismo, termo que confunde erros reconhecíveis (como o exemplo dos charutos outrora entregues por caderneta de racionamento a toda a população) com os mecanismos compensatórios que ajudaram a compensar os magros salários dos trabalhadores. Torna-se inconcebível (e indignante) que os delegados mais parecessem funcionários complacentes do que cidadãos comuns debatendo o assunto da caderneta, quando o cronista regista que “os delegados consideraram como magistral a explicação oferecida sobre isso na véspera pelo companheiro Raúl, e não se demoraram na análise desse aspecto” [4]. Irresponsabilidade dos presentes e/ou desonestidade da imprensa ao mostrar, deles, uma visão tão aduladora e simplista? Não será uma mistura de ambos os problemas?

É muito positivo que se aprove a compra e venda de moradias [habitações] e de automóveis, assim como a expansão da entrega de terras a quem deseje trabalhá-las. As limitações existentes à propriedade pessoal e privada em Cuba (na sua posse legal e no seu usufruto real) propiciam a falta de defesa dos cidadãos perante funcionários corruptos, a expansão de diversas formas de delito e a generalização do ilícito como mecanismo de regulação social. Agora as pessoas sentirão que é possível obter bens e rendimentos com esforço próprio, sem depender de autorizações ou de vetos institucionais. No entanto haverá que regular sem demora quanto aos pormenores, para evitar a concentração da propriedade em poucas mãos e o desamparo de sectores e pessoas vulneráveis: incapacitados, idosos, crianças.

Algo que muitos esperavam era uma mudança da política discricionária vigente quanto à migração [5], decisão que pertence por inteiro às autoridades cubanas, já que a sua manutenção obedece mais ao seu uso como mecanismo estatal de captação de divisas e de controlo (prémio/castigo) de emigrantes e autóctones do que à necessidade de defesa contra o terrorismo direitista. Há que ter em conta que os actos mais recentes desse tipo (1997) foram cometidos por visitantes forasteiros e nem por isso foi eliminado o ingresso de turistas. Como foi demonstrado por regimes aliados – como a China –, é possível uma normalização da política migratória, que elimina os pagamentos e as autorizações absurdos, contribuindo para resolver o grave problema sociodemográfico e económico nacional, eliminando a emigração definitiva como opção de muitos autóctones e permitindo o contributo de cubanos no exterior para o desenvolvimento nacional.

Com essa mudança todos ganhariam: os cidadãos obteriam mais direitos e o governo poderia concentrar-se nas tarefas de desenvolvimento e reordenamento interno, ganhando legitimidade perante o povo e o mundo. Mas isso parece não ter preocupado os participantes no Congresso, cujas famílias parecem não sofrer as peripécias de tão absurda política.

É notória a saída da Comissão Política do ministro da Cultura, Abel Prieto, um dos poucos dirigentes dialógicos do Estado, cujo trabalho lhe valeu legitimidade entre amigos e detractores do processo. Se juntarmos este “dado” a sinais ambíguos dos últimos tempos (expansão de temas e debates sociais em circuitos académicos e da imprensa nacional, juntamente com acções punitivas contra o activismo cultural autónomo) deveríamos activar um alarme. Como o protesto massivo de intelectuais socialistas cubanos em 2007 (atendido pessoalmente por Abel Prieto) não modificou a ordem de sujeição da política cultural à política política [6], e conhecendo nós experiências anteriores de “retrancas” ao debate (1971, 1996), valeria a pena estarmos alerta quanto ao perigo de tecnocratas e militares quererem interpretar o incitamento de Raúl para um debate “em forma, lugar e modo” como sendo uma administração inculta do debate e do activismo popular. Entendendo este como um processo em que as opiniões são filtradas ao gosto do funcionário de turno, propiciando-as ou tolerando-as em momentos críticos (como os que antecedem o Congresso), suprimindo-as noutros, em nome “da ordem e da eficiência”.

As reformas na berlinda

Na sua intervenção de abertura, Raúl ponderou o incremento do sector não estatal da economia, uma vez que este “(…) permitirá ao Estado concentrar-se na elevação da eficiência dos meios fundamentais de produção, propriedade de todo o povo, e libertar-se da administração de actividades não estratégicas para o país”. Fim de citação. Ele coloca-nos numa situação de dupla crítica potencial, tanto ao velho modelo socialista de Estado como às fórmulas neoliberais, mas dada a memorável precariedade teórica e o pragmatismo dos burocratas insulares, falta verificar como é que o aparelho vai implementar as reformas, transferindo quotas de poder que até agora controla de forma quase monopolista. Bastará ver se a concepção do não estatal se traduz na persistência da actual proliferação dos timbiriches [pequenos comerciantes precários] – típica de uma economia de sobrevivência – ou se se assume conceptualmente a necessidade de fortalecer um sector socialista não estatal (cooperativas, empresas autogeridas, empreendimentos comunitários, associações várias, pequena propriedade privada) facilitando créditos, materiais e assessoria nos ritmos e níveis adequados.

Em Cuba, o discurso oficial, na voz de Raúl, falou de “(…) avançar com solidez e sem retrocessos na paulatina descentralização de competências, do governo central para as administrações locais e dos ministérios e outras entidades nacionais a favor da autonomia crescente da empresa estatal socialista”. Isso acontece depois de reconhecer que “a experiência prática ensinou-nos que o excesso de centralização conspira contra o desenvolvimento da iniciativa na sociedade e em toda a cadeia produtiva, onde os quadros se habituaram a que tudo fosse decidido “acima” e, consequentemente, se deixavam de sentir responsabilizados quanto aos resultados da organização que dirigiam”. Fim de citação.

pccvi_3Esta prolixa declaração significará alguma coisa para os grupos dirigentes que, na própria Cuba (ou mais recentemente em “países amigos” como a Nicarágua e a Venezuela) atacaram a tendência descentralizadora iniciada em todos os contextos há duas décadas, em vez de corrigirem os seus erros, mantendo uma correspondência e competências específicas entre os níveis nacional, regional e local de governo? Será esta descentralização compatível com um modelo de participação como o que persiste em Cuba – e que actualmente é promovido por outras lideranças nacionais –, basicamente redistribuidor, mobilizador e consultivo, em que a autonomia das organizações sociais é substituída pela subordinação centralizada e vertical ao aparelho estatal, e em especial aos presidentes? A minha resposta é negativa.

Sem essa participação autónoma, as reformas institucionais e administrativas, por bem intencionadas e pensadas que sejam, quedar-se-ão num conjunto de medidas tecnocráticas ligadas a uma noção de eficiência também tecnocrática. Tratar-se-ia de aceitar (e amplificar/sistematizar) os mecanismos de democracia consultiva e de deliberação intermitente que caracterizaram a gestão do actual presidente, para permitir uma maior retro-alimentação do Estado com os critérios da população, o que fica demonstrado pela positiva com a rectificação de numerosos artigos das Linhas Gerais e o forte refreamento do desemprego massivo (anunciado para começos deste ano 2011), e com a ampliação dos apoios (créditos, materiais) ao sector privado. Mas trata-se de uma comunicação unilateral, em que o receptor (o Estado) se arroga todo o direito de interpretar as reivindicações à velocidade e na profundidade que ache conveniente, sem que o emissor (os cidadãos) tenha capacidade para controlar o processo ou validar os seus resultados em termos de medidas concretas de política pública.

Alternância de lideranças

Mas não há dúvida de que a “pérola” do discurso acaba por ser a afirmação de que “se torna recomendável limitar, a um máximo de dois períodos consecutivos de cinco anos, o desempenho dos cargos políticos e estatais fundamentais”. Fim de citação. Ainda que não refira que as situações que levam a essa reflexão obedecem aos erros de um modelo em que a personalização a todos os níveis e a concentração de funções nas máximas autoridades estatais e partidárias geraram fenómenos nefastos (arrogância, falta de controlo popular/institucional, repetição dos mesmos erros, corrupção, etc.), a afirmação é suficientemente clara para deixar prever uma mudança na concepção da liderança política cubana nos próximos anos. No entanto, não é a primeira vez que se empreendem reformas em Cuba (foi assim em 1976 e em 1993) que logo são revertidas perante a sensação de estabilidade económica, postergando (e tornando mais difíceis) as mudanças estruturais. Resta esperar que, nesta terceira ocasião, a reforma não seja abortada caso, por exemplo, apareça o tão almejado (e explorável) maná do petróleo do Golfo do México.

pcvi_4Quanto à oportunidade das mudanças vale a pena olhar para trás… e para os quintais dos vizinhos. Haverá que continuar a aceitar governos em que os caprichos pessoais se convertem em política de Estado e sejam sistematicamente bloqueadas a emergência de novas lideranças e a participação popular? Será que, se em Cuba se tivesse rectificado real e atempadamente a concentração de poder, como em 1970 (momento da crise e da autocrítica geradas pela direcção da Revolução, então encabeçadas por Fidel Castro), a história não poderia ser, hoje, outra e melhor? Levarão isto em conta os “socialistas do século XXI”?

Porque, embora tardia e não reconhecendo explicitamente os danos e os responsáveis, a proposta do presidente cubano deveria dar que pensar aos que pretendem, agora, depositar “vinho novo em odres velhos”, apostando em reeleições indefinidas e em concentrações de poder, em vários dos chamados “governos progressistas”. Além do mais, embora possa entender-se como uma resposta à exigência de estabilidade para empreender as mudanças, a concentração de poderes estatal/partidário – agora na figura de Raúl Castro – não será indicadora de outro traço do velho modelo que seria necessário modificar, para este como para futuros mandatos?

A substituição de Fidel em todos os seus cargos torna-se um acto formal, importante sem dúvida, mas que obedece ao senso comum e avaliza uma situação de facto. A composição da “nova” Comissão Política [7] reflete mais continuidade do que mudança, com predomínio quase absoluto de militares e velhos dirigentes do partido nos seus assentos. De quinze membros, só foram incluídos três novos membros, e a média de idade ronda os 67 anos, com a ausência de intelectuais e o solitário acrescento de uma mulher funcionária.

pccvi_5Destaca-se o regresso do antigo Secretário Ideológico e ex-ministro da Saúde Pública, Ramón Balaguer, representante da ortodoxia partidária e cujo afastamento há uns meses parecia significar um silencioso reconhecimento, por parte da classe dirigente cubana, da incapacidade/responsabilidade do funcionário no desastre ocorrido no hospital psiquiátrico de Havana, que implicou a morte por hipotermia de idosos internados, pelo qual foram processados médicos e o director da instalação. Isto vem confirmar que em Cuba existe um núcleo de “insubmersíveis”, cujo estatuto não está dependente do desempenho mas da sua pertença à velha guarda, e aponta os limites e as contradições da intenção do presidente de “reforçar a institucionalidade”.

Todos os debates e acordos foram consensualizados, segundo nos diz a imprensa (e as fotografias documentam) com o voto unânime dos delegados. Neste sentido, pareceria que o IV Congresso (em 1991) mostrou mais protagonismo dos seus participantes do que o recém-concluído, já que, naqueloutro, até tivemos um delegado que se atreveu a propor – contra a opinião de Fidel – a restauração do mercado livre camponês, enquanto outros propunham mudanças como a aceitação de religiosos no PCC e a conversão deste num “partido da nação”. Perante semelhante desempenho do conclave actual, com a persistência do falso unanimismo tantas vezes denunciado pelo próprio Raúl, ficam claros os limites estruturais e culturais do modelo actual para promover a participação e a deliberação sérias das pessoas, inclusive nos foros e nas pessoas que lhes são afectas. A este título, o sinal parece claro: mais do mesmo.

Conclusões?

O VI Congresso ficou aquém em coisas que muitos de nós reclamam (participação autónoma e não apenas a convocada estatalmente, direitos de deslocação e de informação, reconhecimento claro e irreversível da economia social como elemento importante do novo modelo), se bem que tenha abordado problemas centrais (défice de adesões, burocratismos, moral dúplice) sem repetir promessas populistas de aquedutos terminados e de abundantes copos de leite. Continuou a retórica (auto-) complacente do apoio massivo da população a cada decisão governamental e a identificação maniqueísta entre Estado, nação e povo, estigmatizando com o rótulo de contra-revolucionário um segmento da população a quem é negado (e penalizado) o acesso a foros e praças públicos. Mas insistiu de forma positiva – se bem que insuficiente – no reconhecimento da diversidade social, na ampliação da participação e do debate nos canais oficiais e na afirmação do respeito pela discordância nos segmentos aderentes e passivos da cidadania.

Quando tantos camaradas em toda a América Latina – vítimas de propagandas e dogmas – concebem e defendem uma Cuba ideal (e irreal) onde os médicos sobram e se exportam, onde a habitação é um problema resolvido e onde funciona uma perfeita democracia participativa, valeria a pena que lessem, com calma e nas entrelinhas, os discursos de Raúl e que analisassem, no seu real dramatismo, os ecos e o contexto deste congresso. Trata-se de um momento histórico em que as pateadas e os arranjos de uma ordem velha (e dos seus gestores) coincidem com os vislumbres (nas iniciativas e nas reivindicações das pessoas) de algo novo que ainda não consegue nascer.

Por aquilo que sinaliza e pelo que sugere, haverá que esperar sequelas concretas deste conclave, dos seus impedimentos e dos seus avanços, de que se poderão tirar lições. Das medidas que forem sendo implementadas nas semanas sucessivas poder-se-á ver claramente se este Congresso terá sido um sabat para selar a bancarrota ou se serviu como plataforma para relançar os objectivos e promessas de justiça social, desenvolvimento e independência da Revolução de 1959. Espero que os debates da nossa precária esfera pública, havendo qualidade intelectual e civismo, tomem nota destes cenários e dêem conta das esperanças (frustradas?) e das energias populares para enfrentar o futuro. Ao fim de contas, aqui como além, o problema foi a superação do capitalismo subdesenvolvido e dependente com um sistema social superior, que preserve a soberania nacional sem sacrificar a popular.

E sobretudo o abandono, sem abraçar as receitas neoliberais, de um modelo de gestão política e social em que as pessoas (e os seus direitos) são subordinadas pelas estruturas, os meios mais perversos devoram os fins mais nobres e a democracia popular acaba por ser uma palavra de ordem e uma prática vazias, que hipotecam o ideal do socialismo. Isso – e não uma retórica vazia e irresponsável – é o que está hoje em jogo em Cuba, para além de qualquer Congresso.

Notas

[1] Ver http://www.cubadebate.cu/opinion/2011/04/16/texto-integro-del-informe-central-al-vi-congreso-del-pcc/

[2] Ver http://www.cubadebate.cu/noticias/2011/04/18/el-vi-congreso-del-partido-en-tres-jornadas-documentos-fotos-y-videos/

[3] Ver http://www.havanatimes.org/sp/?p=15387

[4] Ver resumos das Comissões em http://www.cubadebate.cu/noticias/2011/04/18/resumen-de-las-comisiones-del-vi-congreso-del-pcc-video/

[5] Tema que o governo vai fingindo ignorar, à parte alguns namoros sobre o tema com sectores emigrados que lhe são próximos.

[6] Ver La campana vibrante. Intelectuales, esfera pública y poder en Cuba: balance y perspectiva de un trienio (2007-2010) en http://www.uv.mx/iihs/documents/Cuaderno37.pdf

[7] Ver http://www.cubadebate.cu/noticias/2011/04/19/elegido-raul-como-primer-secretario-del-pcc-dan-a-conocer-miembros-del-buro-politico/ Os membros (e idades) da Comissão Política são os seguintes: Raúl Castro (79 anos), José R. Machado Ventura (80), Ramiro Valdés (79), Abelardo Colomé (72), Julio Casas Regueiro (75), Esteban Lazo (67), Ricardo Alarcón (74), Miguel Díaz Canel (50), Leopoldo Cintra Frías (70), Ramón Espinosa Martín (72), Álvaro López Miera (80), Salvador Valdés Mesa (61), Mercedes López Acea (45), Marino Murillo Jorge (51) e Adel Izquierdo (50).

Artigo original (em espanhol) no HavanaTimes.org. Tradução do Passa Palavra.

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