Por João Bernardo
A esquerda anticapitalista encontra-se hoje numa crise ideológica tão grave que para a superar não precisa de alimentar guardiões da fé, mas de proceder a uma rigorosa crítica interna da sua experiência histórica. Aliás, não estaria nesta crise se durante tanto tempo não se tivesse deixado embalar por mitos.
Marx e Engels perante a guerra franco-prussiana
A Comuna surgiu do descalabro do aparelho político e administrativo imperial, quando a França perdeu a guerra contra a Prússia. Para o chanceler Bismarck e o rei da Prússia estava em jogo a supremacia prussiana no processo de unificação alemã, enquanto para Napoleão III se tratava de impedir a constituição de uma potência que alteraria o equilíbrio político europeu e faria sombra à França.
Para Marx e Engels as circunstâncias eram delicadas, porque ambos defendiam a unificação nacional alemã e eram inimigos, mais do que do império russo, dos próprios eslavos. Noutros textos, inclusivamente neste site, analisei a paradoxal dicotomia existente na obra e na prática política dos dois fundadores do comunismo moderno, que por um lado afirmavam na teoria abstracta a inevitabilidade das clivagens sociais e defendiam a posição da classe trabalhadora, enquanto por outro lado, nas análises concretas e na intervenção prática, davam mostras de nacionalismo e acima de tudo de uma obsessão antieslava. Volto agora ao assunto apenas para salientar a ambiguidade das posições tomadas por Marx e por Engels durante a guerra entre os estados alemães e a França.
Os favores dos dois amigos dirigiram-se de início para a Prússia, que aparecia na ocasião como unificadora da Alemanha, um papel histórico que eles consideravam progressivo. Foi Marx quem redigiu a proclamação do conselho geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, ou simplesmente Internacional, emanada em 23 de Julho de 1870, quatro dias apenas após a declaração de guerra, e neste documento remeteu para um plano subalterno os problemas relativos à situação da classe trabalhadora de ambas as nações no contexto das hostilidades militares e atribuiu maior relevo à análise dos aspectos dinásticos e geopolíticos do conflito. Marx deu então livre curso à sua obsessão de sempre. «Na sombra desta guerra suicida», escreveu ele, «espreita a figura sinistra da Rússia». Depois de citar três excertos de resoluções tomadas em comícios de trabalhadores alemães, e em contraste flagrante com o espírito destas declarações, onde o repúdio da guerra se exprimira nos termos exclusivamente proletários de uma afirmação de solidariedade para com os trabalhadores da França, Marx lançou-se uma vez mais em considerações geoestratégicas acerca das fatalidades da política externa prussiana.
Não se tratou de um simples deslize, porque sabemos, através de uma carta dirigida a Marx em 15 de Agosto de 1870, que Engels encarou com simpatia a adesão à política agressiva do governo prussiano manifestada por «toda a massa do povo alemão e por todas as classes» e opôs-se à «obstrução total» do esforço de guerra defendida por Wilhelm Liebknecht, apesar de ser este o principal representante do marxismo na Alemanha [1].
É certo que quando os exércitos germânicos se converteram em invasores e a derrocada das tropas de Napoleão III libertou as energias do proletariado francês, Marx e Engels transferiram as suas simpatias para a França, mas sem abandonarem o quadro geopolítico em que interpretavam os acontecimentos. Nem a invasão nem o facto de os trabalhadores parisienses terem instaurado a Comuna fizeram Engels abandonar a hostilidade com que encarara a acção política conduzida contra a guerra pelos discípulos alemães de Marx. Num texto redigido no último mês de 1887 e nos primeiros meses de 1888, mas conhecido só após a sua morte, Engels referiu-se ao começo da guerra franco-prussiana afirmando que, do lado alemão, «naquele ímpeto nacional assistimos ao desaparecimento de todas as diferenças de classe» [2]. Neste manuscrito, em que se ocupou apenas com a diplomacia de bastidores e as intrigas de corte, não dedicou uma palavra sequer ao facto de Wilhelm Liebknecht e August Bebel, os principais dirigentes do partido marxista alemão, se terem abstido no parlamento aquando da votação dos primeiros créditos de guerra e terem votado contra os novos créditos, nem fez uma simples referência às moções contra a guerra adoptadas em comícios de trabalhadores alemães, nem uma única menção ao aprisionamento de numerosos socialistas que se haviam manifestado mais activamente a favor da paz.
Era uma posição enraizada a tal ponto que num ensaio publicado em 1890 Engels recordou a guerra franco-prussiana exclusivamente pelas suas repercussões sobre a política russa na Europa, esquecendo-se de mencionar as lutas operárias desencadeadas pelo conflito, assim como foi no plano estrito da diplomacia que citou o manifesto da Internacional de 9 de Setembro de 1870, o que aliás ajuda a esclarecer as preocupações de Marx quando redigiu este documento [3].
Marx perante a Comuna de Paris
Na proclamação que escreveu em 9 de Setembro de 1870 em nome do conselho geral da Internacional, Marx saudou a fundação da República, ocorrida cinco dias antes, e aconselhou o proletariado francês a acomodar-se às novas instituições burguesas e a procurar, através de meios legais, reforçar as suas organizações de classe, pondo de parte quaisquer veleidades revolucionárias imediatas. «A classe operária francesa depara […] com circunstâncias extremamente difíceis. Qualquer tentativa para derrubar o novo governo, com o inimigo quase às portas de Paris, seria uma loucura desesperada. […] Que calma e resolutamente [os operários] aproveitem as liberdades republicanas para proceder metodicamente à sua própria organização de classe» [4]. Aliás, já em 18 de Julho de 1870, numa carta enviada a Kugelmann, Marx classificara como «calamidade» qualquer tentativa insurreccional [5].
E embora o proletariado se mostrasse cada vez menos inclinado a seguir aqueles conselhos, Marx manteve a atitude expectante. Só numa carta endereçada a Kugelmann em 17 de Abril de 1871, exactamente um mês após a conquista do poder pelo operariado de Paris, Marx reconheceu pela primeira vez claramente a oportunidade da revolução, apesar de cinco dias antes, escrevendo ao mesmo correspondente, ter já expressado simpatia pela iniciativa [6].
Chegados aqui os leitores anarquistas estarão possivelmente com um sorriso de uma orelha até à outra e a esfregar as mãos de contentamento. Mas antes de tempo.
Bakunin perante a Comuna de Paris
A 2 de Setembro de 1870, no próprio dia em que o exército francês sofreu a catastrófica derrota em Sedan, que ditou o curso dos acontecimentos, Bakunin escreveu numa carta para A. Richard: «Já não podemos ter ilusões acerca de Paris». E justificou este pessimismo invocando a presença na capital de grandes figuras do Império e de políticos orléanistas e republicanos. «Por outro lado, absorto nas diligências da sua própria defesa, Paris não poderá organizar a defesa nacional da França […] O aparelho governativo, o Estado, está quebrado. A França só poderá ser salva por uma sublevação imediata, generalizada, anárquica, de toda a população das cidades e dos campos […] Apelo a todos os municípios: que se organizem e se armem […] Que enviem delegados para um lugar qualquer, fora de Paris, para formar o Governo Provisório […] É necessário que uma grande cidade de província, Lyon ou Marselha, tome esta iniciativa» [7].
A posição adoptada por Bakunin estava nos antípodas da defendida por Marx, e onde um reclamava «uma sublevação imediata, generalizada, anárquica», o outro temia «uma loucura desesperada» e desejava que os operários procedessem «calma» e «metodicamente». Mas num aspecto estas posições convergem, na noção de que se devia evitar qualquer movimento insurreccional em Paris.
A desconfiança que Bakunin sentia por Paris não era ocasional e correspondia a um sentimento profundo. Numa obra de 1870, Cartas para um Francês sobre a Crise Actual, ele escreveu: «Absorto no interesse exclusivo e no pensamento exclusivo da sua defesa, Paris será completamente incapaz de dirigir e organizar o movimento nacional da França […] A única coisa e a melhor que Paris poderia fazer no interesse da sua própria salvação seria proclamar e suscitar a absoluta independência e espontaneidade dos movimentos na província […] se a França ainda puder ser salva, só o será mediante a sublevação espontânea das províncias» [8].
Esta previsão explica que Bakunin tivesse partido para Lyon, onde chegou a 15 de Setembro de 1870. Procurou ali orientar os acontecimentos e em 28 de Setembro participou numa tentativa de insurreição, miseravelmente frustrada. Obrigado a fugir da cidade, Bakunin manteve-se no sul de França, de onde escreveu, possivelmente a Gaspar Sentiñon, uma carta datada de 23 de Outubro de 1870: «Tenho de me ir embora, porque não encontro aqui absolutamente nada para fazer […] Querido amigo, já não tenho nenhuma fé na revolução em França. Este povo não é, de modo nenhum, revolucionário. O próprio povo tornou-se doutrinário, argumentador e burguês como os burgueses […] O melhor conselho que te posso dar é que escrevas antes de mais para todos os nossos amigos de Madrid para que não venham a França, porque seria um gasto de dinheiro completamente inútil […] Saio deste país com um profundo desespero no coração […]» [9].
E assim, para não desatar os cordões da bolsa, o ilustre mentor do anarquismo viajou para outro lugar. Em 5 de Abril de 1871, mais de duas semanas depois de iniciada a Comuna, Bakunin, já regressado à Suíça, escreveu numa carta para Ogareff: «Que pensas acerca do movimento desesperado de Paris? Terminará como puder, mas, temos de reconhecer, são ousados. Em Paris houve precisamente o que procurámos em vão em Lyon e em Marselha: uma organização e homens decididos a ir até ao fim. Provavelmente serão vencidos. Mas também é provável que em seguida a França não encontre nenhuma existência excepto a da revolução social. O Estado francês está perdido para sempre» [10].
A história é escrita por quem beneficia da segurança de conhecer o que se passou, e o historiador pode ironizar acerca dos protagonistas dos acontecimentos. Mas na época as previsões estrondosamente fracassadas das duas principais figuras do movimento revolucionário europeu tinham alguma justificação.
As condições da Comuna
Por um lado, tanto sob o ponto de vista militar como sob o da proporção das forças em jogo, a capital da França parecia o lugar menos conveniente para iniciar um levantamento.
Por outro lado, a perseguição policial durante os últimos anos do Império deixara muito fragilizada a secção francesa da Internacional, e com a proclamação da República, em 4 de Setembro de 1870, os membros da Internacional aliaram-se por todo o lado, tanto na província como em Paris, às correntes radicais da burguesia, aos herdeiros do jacobinismo. Quando Marx escreveu, no manifesto de 9 de Setembro de 1870, assinado pelo conselho geral da Internacional, que «calma e resolutamente» os operários deviam aproveitar «as liberdades republicanas» para «proceder metodicamente à sua própria organização de classe», ele não estava, afinal, senão a reflectir o que parecia ser a realidade política do momento.
Como prever, sensatamente, que o proletariado parisiense se insurreccionasse e tomasse o poder?
A geografia da revolução
Os insurrectos depararam com um obstáculo ainda mais sério do que as perseguições da polícia bonapartista.
O Segundo Império foi um governo autoritário de direita, assente num poder pessoal e plebiscitário. Mas, contrariamente aos regimes tanto conservadores como liberais, para quem as reivindicações operárias eram simples casos de polícia, Napoleão III ocupou-se da questão social e procurou conjugar a repressão com medidas destinadas a reorganizar as relações de classe. Tratou-se de um primeiro esboço do que mais tarde viria a ser o fascismo.
Nesta perspectiva Napoleão III ordenara a modernização social e estética de Paris, e o prefeito do departamento do Sena, barão Haussmann, encetou uma renovação da cidade que só terminaria no final daquele século. Mais do que uma engenharia de pedra ou cimento, uma urbanização é sempre uma engenharia social, e se a estética das casas, das ruas e das praças forma os gostos e condiciona as mentalidades, o arranjo dos bairros e dos lugares públicos e as deslocações de população determinam quadros de convivência. A urbanização que Haussmann levou a cabo foi muito vasta e não é esta a oportunidade para abordar, sequer resumidamente, os aspectos financeiro, sanitário e estético do empreendimento.
Mas é indispensável saber que Haussmann mandou destruir os velhos bairros proletários, de ruas estreitas e tortuosas onde facilmente se erguiam barricadas e de cujos telhados se atacava com vantagem a polícia e as tropas a cavalo. Em seu lugar rasgaram-se as avenidas que hoje conhecemos, demasiado largas e rectilíneas para as barricadas terem efeito perante uma carga de cavalaria bem conduzida. Ao mesmo tempo, a velha distribuição geográfica das classes sociais e das categorias profissionais, com bairros exclusivamente populares e outros exclusivamente nobres, com ruas preferidas por financeiros e com bairros povoados de magistrados, deu lugar a uma forma pluriclassista de distribuição populacional. No último andar, ou nos dois últimos andares, dos grandes prédios que ladeavam as novas avenidas viviam em pequenos quartos a criadagem e a plebe pobre, instaurando uma espécie de divisão vertical das categorias sociais. Além disso, as avenidas foram concebidas como espaço de passeio e mais ainda o foram os novos parques de grandes dimensões, lugares de lazer onde a elite se exibia perante os olhares pasmados ou cobiçosos da pequena burguesia e dos trabalhadores.
Foi numa geografia assim que o proletariado fez a sua revolução. Sem dúvida que os planos de Haussmann haviam sido eficazes para impedir que algumas partes da cidade caíssem em poder dos moradores. Era num espaço socialmente integrado que o proletariado parisiense começara a viver, antecipando o carácter integrador da sociedade contemporânea. Sem poder já localizar-se em bairros exíguos, a revolta estendeu-se por toda a cidade e converteu-se na primeira revolução moderna, a primeira em que o proletariado encarou a necessidade de controlar e reorganizar a totalidade da sociedade.
Afirma-se com frequência que a nova urbanização permitiu esmagar facilmente as barricadas da Comuna. No entanto, o aspecto inovador da Comuna não consistiu nas barricadas, que foram o seu último recurso, e um recurso arcaico. O aspecto inovador consistiu no facto de que, perante a impossibilidade de se prosseguir uma revolução localizada geograficamente, se ampliou e aprofundou o seu carácter social. A urbanização do barão Haussmann pretendera impossibilitar a revolução, e perante este desafio o proletariado inventou uma revolução de novo tipo, uma revolução social global.
A mistificação da história
«Se a Comuna tivesse escutado os meus conselhos!», lastimou-se Marx numa carta de 12 de Junho de 1871 [11], duas semanas após a derrota final. Se a Comuna lhe tivesse escutado os conselhos teria começado por não existir, mas a história é primeiro feita e depois escrita, e os problemas surgem quando ela é escrita por aqueles que a tinham querido fazer de outra maneira.
Marx e Engels empenharam-se em propagar que as duas grandes influências exercidas em 1870 e 1871 sobre o proletariado francês vinham de Blanqui e dos discípulos de Proudhon. Porém, os proudhonianos haviam já sido marginalizados no interior da secção francesa da Internacional durante os últimos anos da década de 1860, e o predomínio passara a caber a uma orientação que se definia como comunista antiautoritária e encontrava em Louis-Eugène Varlin um destacado representante. Foi esta corrente que os marxistas procuraram depois esquecer, quando não a confundiram erradamente com o anarquismo.
Delegado às Finanças na Comuna, e depois, a partir de Abril, aos Abastecimentos e à Intendência, e tendo antes disso ocupado funções de comando na Guarda Nacional, a futura milícia dos insurrectos, Varlin não se mostrou interessado por uma gestão centralista e autoritária da economia e patrocinou a apropriação das oficinas pelos seus trabalhadores, que haveriam de dirigi-las a partir da base. Não só as oficinas abandonadas pelos patrões seriam confiscadas pelos sindicatos e entregues aos seus trabalhadores, consoante estipulou o decreto de 16 de Abril de 1871, mas a documentação que hoje se conhece permite saber que, segundo os projectos da Comissão do Trabalho e das Trocas, a partir do começo de Maio estava igualmente prevista a expropriação completa das manufacturas pertencentes aos grandes capitalistas e a generalização da gestão operária, que em todos os casos assumiria a forma cooperativa. Era precisamente esta a solução proposta por Varlin, e a ele se deveram os contactos regulares estabelecidos entre as associações operárias e a Comissão do Trabalho e das Trocas.
Estavam em jogo duas concepções de socialismo profundamente diferentes. Uma delas pugnava por uma gestão descentralizada das empresas, a cargo dos seus próprios trabalhadores. A outra defendia uma planificação centralizada e despótica de toda a economia.
No panfleto publicado logo após a aniquilação da Comuna, Marx deu o menor relevo possível ao decreto de 16 de Abril, citando-o em último lugar entre as medidas económicas tomadas pelos insurrectos, depois da abolição do trabalho nocturno dos padeiros e da proibição feita aos patrões de praticarem descontos sobre os salários dos empregados enquanto forma de penalização. Dificilmente se acreditará que, tão bem informado acerca de tudo o que se passara em Paris através das centenas de cartas recebidas dos seus partidários, e mantendo naquelas semanas febris uma correspondência com o próprio Varlin, Marx ignorasse a amplitude dos projectos e dos esboços de realização prática promovidos pela Comissão do Trabalho e das Trocas.
Por seu lado, ao referir-se à expropriação dos meios de produção decretada por aquela Comissão, Engels deu menos destaque ao facto de as oficinas deverem ser exploradas e administradas directamente pelos seus próprios trabalhadores do que às disposições necessárias para coordenar esta actividade, que ele apresentou como se tivessem por objectivo instaurar uma direcção centralizada da economia. «A 16 de Abril», escreveu Engels, «a Comuna ordenou que se efectuasse um recenseamento das oficinas encerradas pelos fabricantes e se elaborassem planos para entregar a gestão dessas empresas aos operários que até então aí trabalhavam, os quais deviam reunir-se em associações cooperativas, bem como para organizar estas associações numa única grande federação». E adiante Engels insistiu que «o mais importante de todos os decretos promulgados pela Comuna instituía uma organização da grande indústria, e mesmo da manufactura, que não só devia basear-se na associação dos trabalhadores de cada fábrica, mas também reunir todas estas associações numa grande federação […]» [12]. Ora, Engels conhecia bem demais qual havia sido a este respeito a posição de Varlin e daquela que fora então a maioria da secção francesa da Internacional. As medidas que para uns deviam servir de estímulo à iniciativa da base eram apresentadas pelo outro como devendo reforçar o poder de decisão central.
Mas Marx e Engels puderam escrever tranquilamente a sua versão dos acontecimentos, enquanto muitos dos outros estavam mortos ou deportados.
*
Este artigo retoma os temas que abordei nas minhas intervenções a 10 de Maio em A Comuna de Paris 140 Anos Depois, na UNEB de Salvador; e a 23 de Maio em Tomando o Céu de Assalto. Da Comuna de Paris à Comuna de Oaxaca: 140 Anos de Experiências de Auto-Organização dos Trabalhadores, na PUC de São Paulo.
Notas
[1] Para poupar trabalho àqueles leitores que em circunstâncias idênticas me têm acusado de ignorar as obras de Engels e de Marx, de proceder a citações fora do contexto ou outras coisas igualmente feias, indico que esta carta se encontra antologiada em Roger Dangeville (org.), Marx et Engels. Écrits Militaires. Violence et Constitution des États Européens Modernes, Paris: L’Herne, 1970, págs. 514-517, estando as frases citadas na pág. 515.
[2] Ver R. Dangeville (org.), op. cit., pág 571.
[3] Os leitores interessados podem encontrar o ensaio de Engels em Paul W. Blackstock e Bert F. Hoselitz (orgs.), The Russian Menace to Europe, by Karl Marx and Friedrich Engels, Glencoe: Free Press, 1952, págs. 48-49.
[4] Karl Marx, La Guerre Civile en France, 1871 (La Commune de Paris), Paris: Éditions Sociales, 1963, págs. 38-39.
[5] A primeira vez que deparei com uma referência a esta carta de Marx foi em Max Gallo, «L’Abus du Mythe», Le Monde, 14-15 de Março de 1971, pág. 12. Depois encontrei o documento mencionado em diversos lugares, mas quero recordar aqui a leitura de um artigo que contribuiu para me lançar numa longa cadeia de reflexões. É curioso observar que a editora do Partido Comunista Francês não considerou oportuno incluir a carta de 18 de Julho de 1870 entre outras enviadas por Marx a Kugelmann acerca das lutas sociais em França, e que foram reproduzidas em K. Marx, La Guerre Civile en France…, op. cit., págs. 94-104.
[6] K. Marx, La Guerre Civile en France…, op. cit., págs. 101-103.
[7] Citado por Max Nettlau no «Prólogo» a Diego A. de Santillán (org.), Obras Completas. Miguel Bakunin, 4 vols., Madrid: La Piqueta, 1977-1979 [1ª ed.: Barcelona, 1938-1939], vol. I, págs. 19-20.
[8] D. A. de Santillán (org.), op. cit., vol. I, pág. 112 (sub. orig.).
[9] Citado por Max Nettlau no «Prólogo» a D. A. de Santillán (org.), op. cit., vol. I, págs. 44-45.
[10] Citado por M. Nettlau em id., ibid., vol. II, págs. 31-32.
[11] K. Marx, La Guerre Civile en France…, op. cit., pág. 111.
[12] Prefácio de Engels à reedição inglesa de 1891 de um panfleto de Marx publicado originariamente em 30 de Maio de 1871. As passagens citadas encontram-se em K. Marx, La Guerre Civile en France…, op. cit., págs. 19 e 22 (sub. orig.).
Diria que o artigo retoma também, mais profundamente, temas levantados em evento similar realizado quando dos 130 anos da Comuna, na UFSC em Florianópolis.
Coitado do Bakunin, pelo que foi apresentado ele só não acreditava que Paris seria foco e catalisador da revolução social na França, e depois perdeu as esperanças de que ela ocorresse em qualquer parte da França. Mas perto do que foi apresentado sobre Marx e Engels em relação à Comuna de Paris, Bakunin até que se saiu muito bem.
Errou nessa mas acertou na análise (brilhante por sinal)de onde surgiria o “nazismo”.
Essa tentativa de se criar monopólios sobre as lutas e de se atribuir uma autoria ou enorme responsabilidade a dados autores é uma constante. O MST, hoje, de certa forma, trata de apagar um histórico de lutas e conflitos em torno da questão da terra e se atribuir a sí um pioneirismo que não existe. As feministas criam uma mítica de mulheres submissas em toda a história da humanidade para atribuírem a sí a libertação das mesmas, como se não houvesse luta feminina antes do advento do feminismo. Não faz 3 meses, um membro do MPL jurava que a luta em torno da questão dos transportes havia surgido com o MPL e eu tive que perguntar o que fazia eu quando participei de quebra de trens em 1997. O Sérgio Vaz, da Cooperifa, vive afirmando que a Cooperifa é o maior movimento cultural da periferia, como senão houvesse todo o resto e todo o antes, como se em décadas atrás já não houvesse saraus e outros mais por tantos cantos, embora não divulgados. Os anarquistas se sentem os detentores do monopólio da luta pela liberdade e os marxistas da luta contra a pobreza, enfim. É bom estarmos atentos a tantas mistificações aqui e hoje também, assim como, a como se passam os fatos concretos, as lutas reais.
Discordo de uma certa generalização no comentário do Henrique.
Quanto ao MST, por exemplo, acho que pelo contrário de se colocarem numa situação de pioneirismo, se colocam em continuidade numa luta pela terra de décadas e séculos. Não vejo tentativa de apagar lutas passadas, pelo contrário. Muita mais há a tentativa de mostrar que lutas, como a do Contestado por exemplo, eram em torno da questão da terra, entre um povo expulso e multinacionais e latifundiários.
Boa reflexão, gostei muito sobretudo dos pontos a respeito dos mitos e da escrita da História pelos “vencedores” (Engels escrevendo sobre a Comuna). Tive a possibilidade de ver a exposição do João Bernardo ao vivo no dia 23/05, com todo o sarcasmo e as provocações bem colocadas. Seria muito bom se essa reflexão fosse publicada.
Primeira parte das minhas discordâncias.
Procuro ler os textos políticos de Marx e Engels dum ponto de vista completamente diferente do autor e, principalmente, dos três sujeitos que comentaram.
Como sempre afirmaram Marx e Engels, suas análises históricas buscavam chamar a atenção da classe trabalhadora sobre a realidade do(s) capitalismo(s) particular. Assim, os escritos políticos – a meu ver – devem ser tomados como testemunhos singulares dos esforços despendidos por Marx e Engels para desenvolver teorias que levam em conta os dados concretos, revelam, igualmente, o quanto eles estão preocupados em desvendar “as correntes profundas da sociedade moderna”. E em mostrar que elas constituem um elemento geral que se revela nas particularidades individuais da “superfície da sociedade”.
Como bem destacou o teórico alemão Eike Henning, podemos ver nos textos políticos de Marx e Engels os seguintes complexos de temas:
• Análise do Estado e análise das classes (as quais são apresentadas sem levar em conta, de modo geral, análises conjunturais independentes);
• Informação da classe operária na forma de crítica: 1) às formas primitivas da política do Estado social; caracterizada ironicamente como “doçura do regime da burguesia”; 2) à tentativa burguesa de “colocar uma parte dos proletários contra a outra”; 3) à divisão da classe dos trabalhadores de acordo com diferenças étnicas; 4) à posição sindical; 5) à posição anarquista; 6) ao papel da pequena burguesia no que diz respeito ao proletariado.
• Análise da burguesia, isto é, das frações do capital, das suas variadas intenções políticas, bem como das institucionalizações do direito do Estado, e análise dos efeitos da industrialização e do liberalismo político.
• Análise da política internacional, com o intuito de conhecer as condições e perspectivas da política mundial e externa que possam vir a ser úteis para uma revolução socialista.
Todos esses pontos culminam na intenção de compreender do modo mais abrangente possível as estratégias das classes sociais e as formas da política. E neste processo a discussão de estratégias políticas é ligada à análise das formas políticas. É por isso que os escritos políticos são essencialmente contra a atitude daqueles que, ao discutirem a tática e a estratégia da classe operária, menosprezam as formas políticas concretas do Estado particular.
Uma análise que busca desmistificar a história e que procura fazer uma crítica interna da experiência histórica da esquerda, deveria ter mais atenção com o material que analisa. Como dizia Marx: “(…) é preciso ter cuidado não só com os princípios, mas também com os detalhes…!”
Segunda parte:
Destacar frases “exemplares” para confirmar uma tese também não parece ser um bom percurso para fazermos uma análise crítica da esquerda e desmistificarmos a história. É preciso contextualizá-las numa conjuntura muito mais ampla. Um bom exercício seria o de confrontar os escritos da época, com a historiografia atual.
Sobre a Comuna, Marx fez críticas, mas em nenhum momento desrespeitou as pessoas que morreram lutando diretamente a favor dela (tampouco se colocou acima delas). Tomar e controlar as instituições burguesas da França, não significava “planificar a economia” ou criar um novo aparelho repressivo. Marx deixa muito claro sua opinião sobre isso: “A classe dos trabalhadores não pode simplesmente tomar em seu poder a máquina do Estado já pronta e acioná-la em benefícios de seus próprios interesses”.
Opiniões – sobre o alcance do movimento proclamadas no calor da hora – devem ser entendidas como algo histórico. Dúvidas e possíveis erros de análises eram inevitáveis.
Outro absurdo, agora escrito por um comentador do site, que possivelmente se apóia nas análises do João Bernardo sobre o marxismo e o nacionalismo (Marx e Engels abrindo o caminho para o desenvolvimento do nazismo). Em direção contrária a tal absurdo, podemos ver nos textos sobre a Alemanha, principalmente de Engels, um acento na necessidade política de se estabelecer antes de tudo as condições burguesas na economia e na política. Ao mesmo tempo, porém, encontramos aí a idéia de que na Alemanha o liberalismo econômico não coincide com liberalismo político, ou seja, que a instauração do capitalismo não caminha paralelamente com a restauração política. Tais afirmações podem nos ajudar a entender o fascismo alemão (ou seja, a partir da idéia da miséria alemã. E não numa defesa cega pela nação alemã).
Os xingamentos por mais numerosos e abomináveis que sejam não são capazes de confirmar uma teoria (essa também é a posição de M. Löwy no seu livro sobre o marxismo e o nacionalismo). Aliás, é sempre bom lembrar que tais xingamentos também tiveram como alvo os países ocidentais, ou se quiserem, os grandes estados desenvolvidos. Dolf Ohler, importante estudioso das revoluções de 1848, nos demonstra como após as grandes derrotas, os derrotados (e não vencedores, como quer um leitor do site) recorrem a uma espécie de “bestialização” do inimigo. Dá diversos exemplos de artistas e intelectuais ofendendo setores da sociedade: Fourier, Proudhon, Baudelaire, Victor Hugo, Tocqueville, Marx, Engels e muitos outros. No caso de Marx/Engels, o ataque aos russos deve ser entendido em conjunto com seus estudos sobre a diplomacia russa e sobre o lugar que a Rússia ocupava no concerto das nações. Posição da contra-revolução, pelo menos desde o Congresso de Viena.
Enfim, Marx/Engels anti-eslavistas? Nacionalistas? Autoritário? Se analisarmos todo o percurso intelectual dos dois, veremos que Marx e Engels participaram de uma intensa troca intelectual e política com os russos e poloneses desde suas juventudes. Foram importantes para os russos no interior da AIT. Veremos também que para eles não bastava à emancipação nacional (essa poderia servir para uma superação do Antigo Regime, mas nunca foi confundida como uma emancipação em si mesma). E por fim, Marx e Engels defendiam um socialismo libertário e por isso criticavam lideranças partidárias e intelectuais filantropos. E também respeitavam e buscavam entender a lógica das lutas particulares (ver opiniões sobre a Rússia).
Para quem tiver tempo, segue abaixo uma breve cronologia da vida de Marx e Engels demonstrando esses pontos (lembrando que isso são apenas informações necessárias para uma boa analise desmistificadora da história):
– Marx e Engels mantinham contato com militantes russos desde a década de 40 do século XIX.
– Anualmente discursavam a favor da Polônia (nos aniversários da insurreição polonesa de 1830).
– Em 1855, Engels reconhece que o pan-eslavismo não tende somente para independência nacional. E que ele tem diversas formas, por assim dizer, democrático e socialista.
– Num artigo sobre a Sardenha, Marx acusa a burguesia confundir emancipação nacional com emancipação social.
– Em 1858, Marx escreve para Engels: “Diante da virada otimista que o comercio mundial assume atualmente (…), é pelo menos um consolo que a revolução tenha começado na Rússia”. (está pensando na movimentação dos servos). Mais a frente: “Para nós, a difícil questão é a seguinte: a revolução no continente é iminente e tornará imediatamente caráter socialista; não será ela necessariamente esmagada nesse pequeno espaço, visto que em terreno muito mais vasto o movimento da sociedade burguesa ainda é ascendente?”
– Em 1860, diz Marx: “O que se passa hoje no mundo é, a meu ver, de um lado, o movimento dos escravos na América, desencadeado pela morte de Brown, e, de outro, o mesmo movimento na Rússia”.
– Em abril de 1860, o jornalista liberal russo Sazanov, fala dos cursos de economia política na Rússia baseados no pensamento de Marx.
– Em 1861, Marx diz a Lassale que suas opiniões sobre a Rússia são baseadas em estudos sobre a diplomacia russa. “(…) odiar e compreender são duas coisas bem diferentes”.
– Em 1863, Marx novamente olhando para Polônia assume sobre a Revolução européia: “Há que esperar que desta vez a lava escorra do Leste para o Oeste, e não ao revés (…)”.
– Em 1866 escreve: “A liderança não é jamais uma coisa agradável, nem uma coisa que eu ambicione. Tenho sempre diante dos olhos teu pai dizendo a respeito (…) o tropeiro é sempre odiado pelos asnos”.
– Em dezembro de 1868 uma anedota. Diz Bakunin para Marx: “Eu faço hoje o que você começou a fazer há mais de vinte anos (…). Minha pátria, agora, é a Internacional, da qual você é um dos principais fundadores. Veja então, caro amigo, que sou seu discípulo, e tenho orgulho de ser”.
– Em março de 1869, Lafargue informa Marx que Blanqui o estima muito. E que ficou entusiasmado com o Anti-proudhon de Marx.
– Marx estuda russo para ler “A situação da classe operária na Rússia” de Flévoroski. Em 1870 diz para Engels: “É o livro mais importante que apareceu desde o teu trabalho sobre a Situação da classe trabalhadora”.
– Assume que a revolução social na Rússia é eminente.
– Em abril de 1870, um grupo de russos pede a Marx que os represente no Conselho Geral.
– Em junho, recebe a visita de Hermann Lopatin, revolucionário russo, que informa sobre o destino de Tchernychevski, exilado na Sibéria. E conta sobre o bakuninista Netchaiev que assassinou um de seus próprios partidários.
– Lopatin informa que Bakunin espalha que Marx seria um agente de Bismarck.
– Em 1870, Marx se encontra – com freqüência – com Tomanovskaia que traz informações sobre a seção russa da AIT e discute sobre a comuna russa (muito antes da Vera Zassoulich!).
Em 1872 Marx pede que Danielson mande notícias sobre Tchernychevski, para despertar simpatias a seu favor no Ocidente.
– Em 1873 lê vários livros russos. E acompanha o debate entre Tchernychevski e Bieliaiev a respeito do desenvolvimento histórico russo.
– Em 1874, recebe visita de Lavrov, revolucionário russo e editor da revista Vperiod!
– Em 1875, Engels discute numa série de textos com Tkatchev. Escreve a questão social da Rússia.
– Marx diz em 1875: “Engels e eu, quando entramos pela primeira vez na sociedade secreta dos comunistas, nós o fizemos sob a condição de que os estatutos descartassem tudo aquilo que pudesse favorecer a fé na autoridade”.
– Marx se encontra periodicamente com o historiador russo Maxim Kovaleski.
– Ainda em 1875, Lavrov convida Marx para falar para poloneses.
– Em 1877 vários escritos sobre a Guerra russo-turca. Novamente afirma: “A revolução começa no leste”.
– Marx discute com Mikhailovski sobre o capítulo “a assim chamada acumulação primitiva” de O Capital.
– Em 1878 escreve como as ambições do Império Russo poderiam causar uma guerra européia.
– Em 1879 escreve vários artigos sobre a Rússia.
– Em setembro de 1879, Engels a pedido de Marx, escreve um texto criticando as lideranças social-democratas que menosprezam a auto-organização da classe operária: “Quanto a nós, por todo nosso passado, só nos resta um caminho. Assinalamos, há quase quarenta anos, a luta de classes como o motor mais decisivo da história, e designamos a luta social entre a burguesia e o proletariado como a grande alavanca da revolução social moderna (…). Nós formulamos, quando da criação da Internacional, a divisa de nosso combate: A emancipação da classe operária será obra da própria classe operária. Não podemos, por conseqüência, trilhar uma rota comum com gente que declara abertamente que os operários são demasiado incultos para se libertar sozinhos e que devem ser libertados pelo alto, isto é, por pequenos e grandes burgueses filantropos”.
– Em 1880, libera a Danielson todas as suas anotações sobre a economia na Rússia.
– Em novembro, Marx elogia os terroristas russos que “arriscam sua pele”, enquanto que “o partido, chamado da propaganda” reside em Genebra e se opõe a toda ação política e revolucionária, acreditando que “a Rússia, através de um salto mortal, alcançará o milênio anarco-comunista-ateísta”.
– Partido Narodnaia Volia presta homenagens a obra de Marx.
– Em dezembro, o narodnik Morozov visita Marx e explica a cisão do partido terra e liberdade na luta contra o czar.
– Em 1881, Marx faz leituras sobre a Rússia (Skrebitski, Golovatchov, Skaldin, Danielson, Janson e outros). Troca inúmeras cartas com Danielson e Vera sobre as comunas russas.
– Em abril, comenta sobre os terroristas russos novamente: “São pessoas de capacidade extraordinária, sem pose melodramática, simplesmente, concretos, heróicos. Ulular e agir são duas coisas completamente inconciliáveis. O comitê executivo de Petersburgo, cuja ação é tão enérgica, publica manifestos de uma moderação refinada. Bem distante da maneira colegial dos Most e de outros tagarelas infantis, que pregam o tiranicídio como uma teoria e uma panacéia. Ao contrário, eles se esforçam por mostrar à Europa que seu método de ação é especificamente russo, historicamente inevitável, sobre o qual é vão moralizar – a favor ou contra – como seria em relação a um tremor de terras em Chios”.
O tom petulante destes dois comentários, talvez tão extensos como o artigo, é por si só elucidativo, sobretudo quando se conhece a capacidade do comentador — ou pelo menos de quem assina os comentários — para, noutras oportunidades, defender confusões e se apegar a elas de maneira lastimável.
Considerar que Marx e Engels «defendiam um socialismo libertário» só pode ser afirmado por quem ignora a luta que os comunistas antiautoritários, como Varlin e os seus amigos, conduziram contra o marxismo a partir das secções francesa e belga da AIT. As ignorâncias nestes dois comentários são muitas, mas vou aqui restringir-me à principal, que diz respeito ao assunto do artigo.
O antieslavismo de Marx e de Engels está amplamente documentado em duas obras que citei nas referências deste artigo, a organizada por Dangeville e a organizada por Blackstock e Hoselitz. A questão foi também minuciosamente analisada por Roman Rosdolsky, marxista e estudioso de O Capital, numa obra disponível em língua espanhola: Friedrich Engels y el Problema de los Pueblos “Sin Historia”. La Questión de las Nacionalidades en la Revolución de 1848-1849 a la Luz de la “Neue Rheinische Zeitung”, México: Pasado y Presente, 1980. O que eu penso acerca da questão pode ser lido em Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta, Porto: Afrontamento, 2003, especialmente nas págs. 357-386. É neste livro que procedo a uma análise amplamente documentada.
O antieslavismo de Marx e de Engels só não abarcava os polacos, considerados como a ponta de lança do germanismo em terras eslavas. Esse antieslavismo exprimia-se em público de uma maneira tal que uma das filhas de Marx, depois da morte do pai, ao lhe reeditar uma das obras, História Diplomática Secreta do Século XVIII, se sentiu obrigada a suprimir-lhe um parágrafo, para lhe atenuar o tom. E é este o estudo sobre a diplomacia russa que o autor dos comentários invoca como uma das provas de que Marx não seria antieslavista. Trata-se de um curioso livro, que todos os marxistas deviam ler. Althusser referiu-se uma vez a essa obra com perplexidade e laivos de desprezo. Stalin, seguindo talvez o exemplo da filha de Marx, proibiu em 1934 um livro inteiro de Engels, A Política Externa do Czarismo Russo. Também vale a pena ler esta obra de Engels e a argumentação de Stalin. Em privado o furor anti-russo de Marx exprimia-se ainda mais despudoradamente. Em 24 de Junho de 1865, depois de ter lido num livro que os russos afinal seriam de origem mongol, ele escreveu numa carta para Engels: «Eles não são eslavos, em suma, não pertencem à raça indo-germânica, são intrusos que é necessário repelir para além do Dniepre!». Este primor encontra-se em Léon Poliakov, Le Mythe Aryen. Essai sur les Sources du Racisme et des Nationalismes, Paris: Calmann-Lévy, 1971, pág. 252.
A primeira vez que Marx abandonou o seu antieslavismo e considerou de maneira sistemática a possibilidade do desenvolvimento de um movimento revolucionário especificamente russo e camponês foi nos vários rascunhos de uma carta para Vera Zassulitch. Mas a breve missiva que acabou por enviar não corresponde aos rascunhos, que só foram descobertos e publicados depois da morte de Marx. Assim, a primeira vez que Marx e Engels abandonaram publicamente o antieslavismo que os caracterizara foi em 1882, no prefácio que escreveram para uma nova edição russa do Manifesto.
Mas os traços ideológicos e práticos do nacionalismo de Marx e de Engels perduraram, com efeitos muitíssimo funestos, na II Internacional, aquando das discussões sobre o colonialismo. Acerca do assunto remeto igualmente para o meu Labirintos do Fascismo, págs. 386-390. E foi ainda a posição tomada por Marx e sobretudo por Engels perante a hostilidade manifestada pelos marxistas alemães contra a política de guerra prussiana frente aos franceses que levou Lukács a criticar «o comportamento de revolucionários importantes, como Johann Jacoby e Wilhelm Liebknecht, relativamente ao aspecto nacional das guerras de Bismarck que, apesar de tudo, levaram ao estabelecimento da unidade alemã». Com este «apesar de tudo» ficaram pudicamente ocultados os antagonismos de classe inerentes à maneira como fora instaurada a unificação da Alemanha e Lukács sentiu-se em terreno politicamente seguro para atacar o «moralismo provinciano» de Liebknecht e para censurar os seus continuadores na esquerda alemã pelo facto de não terem sabido usar «as armas de uma ideologia verdadeiramente patriótica». Esta passagem encontra-se em Le Roman Historique, Paris: Payot, 1965, págs. 314-315. Hábil e dúctil como sempre, Lukács soube explorar o filão do antieslavismo de Engels em abono do patriotismo que Stalin, e Zinoviev antes dele, haviam transformado na versão dialéctica do internacionalismo.
São os fios desta meada que poucos marxistas gostam hoje de deslindar.
Quando escrevi que Bakunin acertou de onde surgiria o “nazismo”, não quis dizer que bakunin disse que ele surgiria de Marx e Engels, mas sim na Alemanha.
Por toda a história social e cultural da Alemanha, com a servidão voluntária e devoção aos ‘príncipes’ e autocratas de seu povo, ele apontava por isso a Alemanha como o país que mais ameaçava a liberdade do mundo…
Caro João Bernado, na sua resposta aos questionamentos do Danilo Nakamura que polemiza questionando o suposto anti-eslavismo de Marx, você cita um trecho de uma carta deste a Engels datada do ano de 1865 a respeito da constituição da raça russa, onde Marx afirma(na citação de seu comentário) que os russos não pertenciam a raça eslava, mas sim a raça mongol e, por isso, deveriam ser banidos para o oriente. Não tive acesso a essa correspondência, e longe de questionar a veracidade de suas informações, mas lendo recentemente as cartas de Marx a Kugelmann, escritas cinco anos depois da carta para Engels, precisamente a carta de 17 de fevereiro de 1870, ele afirma a herança do elemento mongol-tártaro na sociedade russa, um pouco diferente da de 1865. A polêmica se dá com Duchinski, um polonês, que com grande erudição tentou provar que a raça russa “não é eslava e sim mongol”. Contrariando as afirmações do polonês, Marx expressa-se: “Não obstante, sua posição não é correta. Não é o campesinato russo, mas a nobreza russa, que é fortemente impregnada de elementos mongol-tártaros.” E a comuna rural tão presente na sociedade russa como em tempos remotos entre os alemães, fazendo-se as alterações necessárias, são de origem hindu. Enfim, o elemento “mongol”, bárbaro e reacionário da sociedade russa, provem das classes privilegiadas, não da totalidade do povo russo. O suposto “anti-eslavismo” de Marx, identificando o russo como mongol, não seria o anti-aristocratismo do revolucionário alemão? As questões sobre raça não estaria ligado ao tema das classes possuidoras de terra e exploradora do campesinato russo? O campesinato russo pertence ao barbarismo “eslavo-mongol” tão desprezado por Marx? O que acha disso? A citação encontra-se em: MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.(página 274)
Caro leitor,
O antieslavismo de Marx e Engels está abundantemente documentado:
Paul W. BLACKSTOCK e Bert F. HOSELITZ (orgs), The Russian Menace to Europe, by Karl Marx and Friedrich Engels, Glencoe: The Free Press, 1952.
Roger DANGEVILLE (org.), Marx et Engels. Écrits Militaires. Violence et Constitution des États Européens Modernes, Paris: L’Herne, 1970.
Roman ROSDOLSKY, Friedrich Engels y el Problema de los Pueblos “Sin HistoriaC. La Questión de las Nacionalidades en la Revolución de 1848-1849 a la Luz de la “Neue Rheinische Zeitung”, México: Pasado y Presente, 1980.
A carta citada encontra-se mencionada em:
Léon POLIAKOV, Le Mythe Aryen. Essai sur les Sources du Racisme et des Nationalismes, Paris: Calmann-Lévy, 1971, pág. 252.
É necessário ter em conta que posteriormente a opinião de Marx e Engels sobre a sociedade camponesa eslava alterou-se. Ver os manuscritos de Marx de 1881 (nunca enviados) de uma resposta a Vera Zassulitch e o prefácio de Marx e Engels à edição russa de 1882 do Manifesto Comunista.
O livro de Rosdolsky pode ser baixado aqui:
https://www.scribd.com/doc/258060797/Rodolsky-Roman-Friedrich-Engels-y-El-Problema-de-Los-Pueblos-Sin-Historia
Há ainda, para acrescentar à lista, o livro Secret Diplomatic History of The Eighteenth Century, também de Marx, o qual teve de ser editado pela Eleanor Marx para “amenizar” algumas passagens “impublicáveis”. Este pode ser baixado aqui:
https://mecollectedworks.files.wordpress.com/2014/04/marx-engels-collected-works-volume-15_-ka-karl-marx.pdf
Quanto à Carta de 1865, fui conferi-la e acabei fazendo uma rápida tradução do trecho em questão, que compartilho:
O que você diz sobre os debates na Câmara prussiana? De qualquer forma, as revelações sobre o sistema judicial, etc., seguindo em rápida sucessão foram esplêndidas. O mesmo quando ao golpe óbvio que os homens da Associação Nacional da Grande-Prússia receberam, como foi mostrado particularmente nos debates sobre a Polônia.
Ad vocem [Quanto à] Polónia, eu estava mais interessado em ler o trabalho de Elias Regnault (o mesmo que escreveu o “história dos Principados danubienses”), “A Questão Européia, falsamente chamada de A Questão Polonesa”. Eu vejo a partir dele que o dogma da Lapinski de que os grão-russos são eslavos não tem sido defendida por razões linguísticas, históricas e etnográficas em toda a seriedade por Monsieur Duchinski (de Kiev, Professor em Paris); ele afirma que os moscovitas reais, ou seja, os habitantes do antigo GRÃO DUCADO DE Moscou, eram em sua maior parte mongóis ou finlandeses etc., como foi o caso nas partes da Rússia situada mais a leste e em suas partes do sudeste. Eu vejo com ele em todos os eventos que o caso tem preocupado seriamente o gabinete São Petersburgo (uma vez que certamente poria fim ao Panslavismo). Todos os estudiosos russos foram chamados a dar respostas e refutações, e estas acabaram por ser terrivelmente fracas. A pureza do Grande dialeto Russo e sua ligação com a Igreja Eslava parece prestar neste debate mais apoio para a visão polonesa que à moscovita. Durante a última insurreição polonesa Duchinski foi premiado pelo Governo Nacional por suas “descobertas”. Tem sido igualmente demonstrado geologica e hidrograficamente que há uma grande diferença “Asiática” a leste do rio Dnieper, em comparação com o que se encontra ao oeste dele, e que (como já Murchison defendia) os Urais de forma alguma constituem uma linha divisória. Resultado obtido por Duchinski: Rússia é um nome usurpado pelos moscovitas. Eles não são eslavos; eles não pertencem em todo à RAÇA indo-germânica, eles são des intrus* (os intrusos) que devem ser repelidos de volta (be chased back across) para o outro lado do rio Dnieper, etc. Panslavism no sentido russo é uma invenção de gabinete, etc.
Eu desejo que Duchinski esteja certo e que EM TODOS OS EVENTOS essa visão prevaleceria entre os eslavos. Por outro lado, ele afirma que alguns dos povos na Turquia, como os búlgaros, por exemplo, que haviam sido previamente considerados como eslavos, são não-eslavos.
Salut.
seu
K. M
(Está no volume 42 do MECW, página 164, e pode ser acessada também aqui: https://marxists.anu.edu.au/archive/marx/works/1865/letters/65_06_24.htm).
Queria trazer uma contribuição ao debate, sobre a Comuna de Paris. Em 20 de Julho de 1870, Marx envia uma carta à Engels na qual diz: “A França merece uma boa surra. Se os prussianos vencerem, a centralização do poder de estado será compensada pela centralização da classe operária alemã. A predominância alemã iria então alterar o centro de gravidade do movimento operário europeu do ocidente da França para a Alemanha, e você precisa somente comparar o desenvolvimento dos dois países de 1866 até o presente para compreender que a classe trabalhadora alemã é superior à francesa tanto em teoria [o lassallianismo e o marxismo] como também em organização. Sua predominância sobre a França em um palco internacional significaria também a predominância de nossa teoria sobre aquela de Proudhon, etc.” (MARX e ENGELS, 2010 [Volume 44] pp. 3-4 apud SILVA, 2017, p. 152) disponível apenas em inglês, no site https://www.marxists.org/archive/marx/works/1870/letters/70_07_20.htm.
Algo muito diferente de A Guerra Civil na França. Após a Conferência de Londres em 1871 e em 1872 ele articula o golpe na AIT com a cisão no Congresso de Haia de 1872 pela inclusão da necessidade de organização de partidos operários como orientação política e a expulsão de Bakunin e Guillaume.
“Resolução Sobre os Estatutos
A seguir ao parágrafo 7 dos Estatutos deve ser incluído o seguinte parágrafo, que resume a resolução IX da Conferência de Londres (Setembro de 1871)[N210].
Art. 7a. — Na sua luta contra o poder colectivo das classes possidentes, o proletariado só pode agir como classe constituindo-se a si próprio em partido político distinto, oposto a todos os antigos partidos formados pelas classes possidentes.
Esta constituição do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da Revolução social e do seu objectivo supremo: a abolição das classes.
A coalizão das forças operárias, já obtida pela luta económica, deve servir também de alavanca nas mãos desta classe, na sua luta contra o poder político dos seus exploradores.
Servindo-se sempre os senhores da terra e do capital dos seus privilegios políticos para defender e perpetuar os seus monopólios económicos e subjugar o trabalho, a conquista do poder político torna-se o grande dever do proletariado.
Aprovado por 29 votos contra 5; 8 abstenções.”