Por Ronan Gonçalves [1]

 

unesp61A Universidade, diferentemente do que pretendem apresentar os grandes meios de comunicação, não é somente uma ilha de felicidade, sucesso e tranqüilidade. Tal como em todos os outros meios sociais, ela é perpassada pelas divisões e pelos conflitos sociais, possui o mesmo racismo abundante na sociedade e todas as demais divisões. Por isso, também é local de grande mobilização e de muitas lutas sociais.

A greve dos professores e funcionários da USP e a luta com ocupação dos estudantes, realizadas em 2007, trouxeram à tona a disparidade de condições dentro da universidade. No caso, mesmo no principal centro acadêmico do país, havia alunos vivendo em situação precária, morando em estádios improvisados como dormitórios. A grande mídia no Brasil tende a dar maior visibilidade ao que ocorre em São Paulo, no Rio de Janeiro e nas grandes capitais, por este fato muitas das lutas ocorridas em outras universidades acabam desconhecidas.

unesp2A Universidade Estadual Paulista, a UNESP, tem sido local onde se desenvolveram as mais profícuas lutas sociais estudantis no Estado de São Paulo nos últimos dez anos, ou mais. Trata-se de uma universidade toda ela dispersa por várias cidades do interior paulista e que, até então, é a menos elitizada das universidades do Estado. Por conjugar muitos cursos de licenciatura e por ter mais de 35% de seus estudantes provenientes do ensino público, a UNESP possui a menor renda per capita dentre as universidades paulistas e possui uma demanda por inclusão social que a singulariza.

unesp3Toda a rede de inclusão social universitária existente dentro da UNESP foi formada a partir da pressão constante dos estudantes precarizados que utilizavam as mais variadas formas de luta. Curiosamente, depois de ganhas as construções, as bolsas, as estruturas, as permissões, surgem nas paredes reluzentes placas douradas e/ou prateadas apresentando como benefício cedido por este ou aquele diretor, este ou aquele reitor, as benesses que especifica. No entanto, nada mais longe da verdade, pois apresentam como doações do poder o que surgiu do sacrifício dos estudantes em luta e da solidariedade de tantos outros.

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Estudantes são colocados em ônibus e conduzidos à delegacia, em Araraquara

Todos os acontecimentos recentes relacionados às lutas dentro desta instituição não podem ser desvinculados desta tradição construída, ano após ano, pelos estudantes precarizados. O surgimento de uma corrente de opinião e uma prática gestorial que criminaliza as lutas estudantis dentro de toda a UNESP – que incluiu a expulsão de alunos em Franca, a prisão coletiva de estudantes pela tropa de choque em Araraquara, processos variados contra alunos em Marília, Araraquara e outro mais – se desenvolve como reação a toda uma cultura de crítica e luta social existente. Além de mudanças arquitetônicas e reformas universitárias. Apesar de ter já findado o período de ditadura no país, sobretudo desde a gestão do antigo reitor José Carlos Souza Trindade (2001-2004), a tropa de choque foi incluída como elemento do diálogo com as lutas estudantis. Foi tal reitor que se preocupou em transferir as reuniões do Conselho Universitário, antes feitas na capital, para cidades mais afastadas do Estado, procurando, assim, evitar que lá chegassem os estudantes mais impertinentes, que ainda encontravam a tropa de choque posicionada nas portarias dos prédios onde se realizariam os encontros da cúpula dirigente da universidade.

Por se tratar de uma universidade, um fato é muito interessante e sugestivo: todo o processo de lutas sociais dentro da UNESP não tem sido objeto de pesquisa, de discussão, em eventos acadêmicos e muito menos de publicação nas variadas revistas, jornaizinhos e obras que a UNESP possui. A memória sobre a luta estudantil dentro da universidade é feita pela própria luta. Curiosamente, temos cursos de ciências humanas que se prestam a estudar as práticas de poder, exploração e as lutas sociais nas mais variadas esferas, mas a própria UNESP não surge como objeto de análise. O que torna mais lúcidas as reflexões de Maurício Tragtenberg, em Educação, Política e Sindicalismo, sobre a falta de reflexão dos professores e estudantes a respeito da realidade educacional que os atinge. Assemelhando-os, assim, ao trabalhador alienado que não pensa sobre o sistema produtivo que o inclui.

Uma luta, uma cultura:

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Unesp de Rio Claro

Os estudantes precarizados da UNESP conseguiram, no decorrer dos anos, obrigar as chefias da universidade a criarem políticas de inclusão universitária, possibilitando, minimamente, que os alunos carentes sócio-economicamente pudessem realizar seus cursos e não abandoná-los, como gostaria uma parcela ressentida. Muitos campi se inseriram num amplo espectro de mobilização e lutas estudantis, desde a década de 80. Num exemplo, a construção da moradia estudantil [lar de estudantes] da UNESP de Marília resultou de longos anos de luta, 1986-1990, quando os alunos moraram boa parte deles em ocupações dentro da faculdade. Surgiram posteriormente ocupações para ampliação dos blocos residenciais em 1996,1999, 2000 e 2002.

Para a realização dessa mobilização vários fatores contribuíam. Um, muito importante, era o acesso aberto que os alunos tinham com relação à infra-estrutura da universidade. Na gestão do antigo reitor Antônio Manoel (1997-2000), de 1999 em diante, desbravaram-se movimentos de ocupação por moradias estudantis em vários campi: Araraquara, Marília, Assis, Rio Preto, Bauru, São Paulo, Presidente Prudente. Essas ocupações vinham na continuidade das anteriores e eram reforçadas com encontros de moradia, também encontros mensais dos estudantes, os chamados Encontros de Entidades Estudantis da UNESP. Havia muitas viagens para protestos e ocupações na capital paulista, local onde se encontra a reitoria. Todas essas viagens eram facilitadas pelo fato de os alunos poderem utilizar os ônibus [autocarros] de cada unidade. Os estudantes se alimentavam (lanche de mortadela, queijo – o X-luta [sanduíche da luta]) com a ajuda de custo que eles angariavam das direções, dos sindicatos e de alguns professores. Além de usufruírem da solidariedade de outros setores, conseguiam obrigar as chefias das distintas faculdades a fornecerem os meios materiais para eles fazerem a sua luta. Assim como elas fornecem hoje a estrutura para as empresas, para os gestores do poder público, etc.

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Ocupação em Assis.

Não só os ônibus eram utilizados livremente pelos estudantes, mas também as salas e outros espaços físicos da Universidade eram livres e recorrentemente utilizados para alojarem os congressos, as reuniões, as festas que arrecadavam fundos, os eventos de discussão política e discussão pública, as salas de vídeo, os laboratórios de fotografia. Com auxílio das chefias e demais apoiadores, os alunos mais ativos faziam jornais, fanzines, eventos artísticos com poesia, música, ciclos de filmes e outras manifestações culturais. Os alunos da UNESP, por comparação com os da USP e Unicamp, têm a distância entre os campi a vencer, se quiserem se mobilizar de forma mais coletiva, e para isso a utilização da infra-estrutura da universidade era essencial. Tudo o que contribuía para ampliar os laços entre os estudantes era bem vindo: lugar para os alunos de outros campi dormirem, meios de transporte, esquemas de alimentação, etc. Naqueles anos, os alunos não necessitavam de autorização de professor para solicitar a utilização de ônibus, salas, vídeos, câmeras, e nem eram obrigados a ter um professor acompanhando as viagens. As festas não eram proibidas e a maior abertura dos campi possibilitava um trânsito mais livre de estudantes entre as várias unidades.

Num tempo em que o PT não estava ainda no poder, a UNE [União Nacional de Estudantes] não era um departamento governista como hoje, e os alunos, vez ou outra, podiam contar com alguma ajuda material numa excursão de protesto que servia para eles estreitarem os seus laços e construírem suas lutas.

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O governador do estado de São Paulo é escorraçado da cidade de Marília, em 2002.

A amplidão das lutas estudantis dentro da UNESP só pode ser compreendida tendo-se em conta que, embora tenha havido seus membros mais dedicados, pessoas mais destacadas, e níveis diferentes de instrução política, as lutas só conseguiram ser realmente efetivas e vitoriosas porque delas participavam os estudantes comuns, aqueles que não estavam lutando porque tinham lido textos ou por terem explicitamente idéias de mudar o mundo. Aqueles que lutavam simplesmente por estarem sendo atingidos por necessidades materiais e/ou por se indignarem com a sua própria condição ou a de seus colegas. As fortes lutas estudantis na UNESP foram feitas por gente que, até então, não havia participado de mobilizações, que eram despolitizadas, gente que hoje está espalhada por todo canto, que possui filhos, assiste a novelas, vai ao shopping, sonha com roupas de grife, torce para times de futebol, reza, enfim. Aliás, a efetiva repressão só começou a se abater sobre os estudantes quando essa camada maior de alunos foi se retirando das lutas. Eram eles a fazer recuar o poder, e não a sempre existente meia dúzia de pessoas com camisetas políticas.

Havia todo um consenso intra-universitário de apoio às lutas sociais, um clima moral interno de apoio aos estudantes mais precarizados, de anseio pela democratização interna. Podia haver cem alunos que dormissem na faculdade para fazer agitação pela manhã, mas tinham o apoio de outros 300, 400. Contava-se também com uma cultura de união entre os alunos mais pobres, como no seguinte exemplo: a saída conjunta de todos os estudantes da moradia estudantil da UNESP de Marília para participarem de uma reunião com a então vice-diretora da unidade, em 1999, que pretendia expulsar um aluno da moradia. Sem entrar em minúcias, basta citar que nesse dia – único na vida -, os estudantes chegaram a fazer a gestora chorar dado o teor do debate e do confronto verbal. No mesmo ano de 1999, dado a possibilidade de a tropa de choque ir desalojar os estudantes do campus de Rio Preto, que estavam ocupados na luta por moradia, alguns alunos da unidade de Marília juntaram suas moedas e foram a Rio Preto prestar solidariedade aos seus pares. Ou o caso da doação de colchões e mantimentos, também de ajuda financeira, que o movimento de ocupação de 1999 de Marília recebia de vários alunos, funcionários e alguns professores. Ou mesmo em 2003, quando, a partir de uma assembléia com cerca de 300 alunos na UNESP, saiu-se em marcha para as outras duas universidades privadas na cidade de Marília, conseguindo paralisar as aulas e realizar um ato, contando já com milhares de pessoas, contrários à guerra que os Estados Unidos declararam ao Iraque.

As moradias estudantis possuíam uma cultura de identidade, sentiam o orgulho de serem os alunos que, contra tudo e contra todos, conseguiram passar pelo filtro sócio-econômico que é o vestibular [exame de admissão] das universidades estatais. Havia camisetas que diziam: Sou da Moradia, Sim Senhor, e que, ao lado do desenho das casas existentes, tinha desenhado as futuras moradias, que a luta estudantil haveria que conseguir. E conseguiu! Não se dava tanta importância a roupas de grife, práticas culturais elitistas como rapel, tênis. Hoje, ao contrário, é comum se observar em diversas universidades as camisetas com o nome do curso a imitar os logotipos das empresas transnacionais.

Havia festas com o puro objetivo de sociabilidade e raras as com fins de ganhos monetários, onde a classe média pode se distinguir por poder pagar os ingressos cobrados. Os alunos pobres não se deixavam envergonhar por serem pobres, não abraçavam a perspectiva dos mais bem nascidos, não aceitavam, como ocorreu numa festa do curso de Relações Internacionais em Marília (2005), que seguranças a serviço de tais alunos abastados espancassem dois outros, pobres. A luta estudantil era uma vivência estudantil, toda uma cultura, norteando os estudos, os debates, as festas, atividades esportivas, grupos de teatro, de dança, festivais de música, grupos de arte, intervenções artísticas e tantas mais. Foi a partir deste caldo cultural de lutas e vivências que se erigiram grupos de estudos voltados às lutas sociais, concretizando eventos autônomos e libertários.

Também a partir deste fermento é que em 2002, com a greve da UNESP Marília, os estudantes dos então cinco cursos, além de optarem pela paralisação quando os professores insistiam em dar aulas, iniciaram a prática de ir ao trailler [roulotte que vende hot-dogs, etc], de forma a ampliar o debate e a sociabilidade criada pela mobilização. Tratava-se de uma sociabilidade extraclasse e extracurso, por cima da fragmentação em turmas e da fragmentação em cursos.

Em contraposição ao culto imperante das grandes empresas e das práticas gestoriais de criminalização da pobreza e das lutas estudantis dentro da universidade, buscava-se constantemente uma sociabilidade e uma cultura que não tivesse como critério o quantum de dinheiro que o estudante possui em seu bolso, mas as idéias que traz em sua mente e o sentido que carrega em seu peito. A busca por uma sociabilidade não mercantil que florescia no terreno fértil das lutas e mobilizações dos próprios estudantes.

 

[1] Criado em Franco da Rocha, é mestre em Ciências Sociais pela UNESP de Marília.

3 COMENTÁRIOS

  1. Boa materia, porém o apoio das entidades estudantis da une e uee-sp não ocorriam, as ocupações eram organizadas e o coleguismo de todos valia mais que um bloco, era sentido na amizade dos alunos…porém as entidades dirigidas pela UJS sempre votavam para as materias serem tratadas como indicativo e nunca afirmação e pelo menos uma vez a truculencia foi a maneira de fazer para que membros do dce entracem nos ceeus.

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