Primeira parte (de três) de um texto de autor anónimo, que circula em páginas sírias do Facebook, traduzido do árabe e aqui apresentado por um professor universitário egípcio. “Se já provaste o sabor da prisão e já foste libertado, há uma coisa que sairá para sempre do teu coração: o medo.” Por Hani Sayed e Comité Local de Coordenação do Bairro XXX (Síria)

siria1O autor do texto que se segue é anónimo. Mas os seus feitos abalaram os alicerces do nosso mundo na Síria. Ele é um indivíduo e é toda a gente. Não sei nada acerca dele. Provavelmente já estará morto ou na prisão. Ou talvez ainda ande pelas ruas das cidades e vilas da Síria tentando, muito honestamente, conseguir captar o seu próximo instantâneo onde é suposto ele acontecer. Neste preciso momento imagino-o invectivando o computador portátil por se ter bloqueado poucos segundos antes de o seu vídeo ter acabado de subir; ou debatendo-se para descobrir porque é que o Skype deixou de funcionar com o novo software VPN apesar de lhe terem dito que ele trataria sozinho de se autoconfigurar. Mas também poderia muito bem encontrar-se passando a noite na cave do quartel-general da Mukhabarat [polícia política] em Kafar Soussa [zona de Damasco, capital da Síria]: sem conseguir esticar as pernas numa cela prisional cheia de gente, sem poder descansar as costas porque as feridas da sessão de espancamento dessa tarde ainda ardem e sangram, sem conseguir fechar os olhos porque os gritos dos corpos torturados lhe andam às voltas na cabeça como um tornado. Mas, esteja onde estiver, ele sabe que já ganhou.

alepo
Cidade de Alepo - Síria

Eu retirei este texto de uma das páginas do Facebook administradas por um “Comité de Coordenação Local” de um dos bairros de Damasco. O texto é escrito em árabe coloquial. Talvez se possa dizer que ele anda pelos vinte anos e tem um evidente sotaque de Alepo [grande cidade do noroeste da Síria]. Saber como um jovem originário de Alepo foi parar a um bairro de Damasco, só especulando. Nos dias que correm, muito poucos dormem nas suas casas ou no mesmo local por muito tempo.

O texto tem esse carácter vulgar, quase tecnocrático, que o torna extraordinário se considerarmos as circunstâncias. Não é escrito com fins de propaganda política. Não teoriza, não faz muitas declarações ou exigências, não é poético nem confessional. O autor dirige-se aos seus “companheiros” para neutralizar o efeito de um paralisante medo de ser preso que pode ter criado, em muitos deles, receios de participarem em manifestações. A atitude retórica é descritiva. O seu objectivo é desmistificar a experiência da prisão, como antídoto para o medo. O texto parte do princípio que o seu leitor-alvo deve contar com a probabilidade de ser preso e torturado, e por isso não tem que perder tempo a tentar evitá-lo. O facto de se ser preso nada tem a ver com o poderio relativo da Mukhabarat. E também pouco tem a ver com o ser-se mais ou menos cauteloso. Está acontecendo uma revolução, e se uma pessoa se encontra no ângulo de projecção do poder do regime, ser-se preso é só uma questão de tempo – um jogo absurdo de probabilidades. Sabermos o que implica ser-se preso torna a coisa mais suportável, e o medo menos debilitante.

Uma imensa distância o separa a si, leitor desta tradução, do autor do texto original. Talvez uma distância ainda mais inultrapassável me separe a mim, falante do árabe, que em princípio partilho do mesmo “ambiente hermenêutico” que este autor. Essa distância não tem a ver com cultura ou linguagem, ou qualquer outro possível marcador de identidade. Traduzo este texto, não para transpor ou mediar as diferenças, mas para traçar os horizontes da nossa distância. Traduzo-o porque o trabalho de traduzir um texto é como o trabalho sobre os sonhos na psicanálise – uma tentativa desesperada de representar uma experiência quando as palavras estão na fronteira da linguagem. Traduzo este texto porque a tradução me obriga a interrogar estas palavras, a explorar uma consciência que está muito longe de mim, tal como os cientistas interrogam as muitas sombras de luz captadas de uma longínqua estrela na esperança de compreenderem um acontecimento cósmico.

É essa a distância: para você e para mim esse texto é um artefacto, algo sobre o qual eu me dou ao luxo de escrever para que você o possa ler de relance enquanto beberica o seu café. Porém, para o nosso autor anónimo, este texto é um catálogo de sobrevivência. Muita coisa depende de os seus leitores destinatários conseguirem de facto livrar-se do medo “daquilo” – porque esse medo pode matá-lo, porque o nosso silêncio pode matá-lo, porque “quem deixa uma revolução pelo meio está de facto cavando a sua própria sepultura”.

manifsiriaO nosso cosmopolitismo liberal de classe média dá-se mal com um texto assim. O nosso autor é irracional, exactamente como quando achamos que nenhum raciocínio maximizado em contexto competitivo optaria por pagar o preço de construir e pôr a funcionar uma central eléctrica. O nosso autor é não-ético, porque todos sabemos que, na Síria, a consequência de simplesmente tocar uma música num jardim público a milhares de quilómetros é a dor e o sofrimento impostos aos que amamos pelos esbirros infames contratados pelo regime, os shabbiha. Pois não sei se sabem que, se alguém for preso pela polícia política e o seu corpo aparecer uns dias mais tarde com sinais de tortura, o pai da vítima será intimidado, espancado e humilhado até que irá à televisão estatal “agradecer” esse facto ao Presidente e pedir-lhe que seja ainda mais duro com esses agentes externos. Dizemos que é não-ético na medida em que sabemos que os nossos actos “irracionais” terão como consequência o sofrimento infligido a outros que optam por agir racionalmente. E no entanto, na mente dele, mais gente deveria sair para as ruas. Dá-se, nele, uma outra mudança que não nos é acessível. O nosso autor sabe da inferioridade relativa de um indivíduo perante o aparelho de segurança do regime. Está resignado à ideia de que, durante a detenção, o seu interrogador lhe pode partir os ossos, tratá-los e parti-los outra vez. A detenção pode durar horas, ou pode durar décadas. O nosso autor sabe tudo isso e compreende que, enquanto estiver detido, nada poderá fazer. Está resignado ao medo. Mas acontece algo de paradoxal no preciso momento da resignação do seu intelecto. A sua vontade recusa render-se porque acredita – porque, de forma algo surreal, ele sabe que já ganhou. Na nossa perspectiva global e cosmopolita do mundo, essa mudança do autor é absurda. É absurdo acreditar que um protesto pacífico pode deitar abaixo um regime. Mas, enquanto nós tendemos a parar perante a força do absurdo, o autor avança. Ele compreende o significado desse absurdo e uma crença secular permite-lhe intuir a mudança seguinte.

Prisão Tadmor - Deserto da Síria
Prisão Tadmor - Deserto Sírio

A distância, repito, é a que existe entre a resignação de toda uma geração e o seu “medo e tremor”. Entre o que Kierkegaard chamava o “cavaleiro da resignação” e o “cavaleiro do medo”. Transposta silenciosamente, num ápice, como se um raio de luz activasse as poucas células sensitivas da mácula [da retina]. A fé, diz Kirkegaard, “não é uma emoção estética, mas algo muito superior, exactamente porque pressupõe a resignação; não é a inclinação imediata do coração, mas sim o paradoxo da existência”.

Não podemos falar por ele. Apenas podemos admirá-lo.

Antes de passar ao texto, algumas notas acerca da tradução.

O texto é escrito numa linguagem coloquial que é de difícil tradução. Espero que o leitor bilingue seja indulgente com a minha incapacidade para restituir em pleno os matizes do texto. Optei por manter algumas palavras na sua transliteração árabe. Em particular quando se trata dos métodos de tortura usados nas prisões sírias. No que resta desta introdução explicarei essas palavras.

Nos finais dos anos 1980, a Amnistia Internacional documentou cerca de trinta e oito métodos de tortura usados sistemática e difusamente nas prisões sírias [*]. A partir dos múltiplos relatos acerca do que está a acontecer nas prisões da Síria durante a revolução, é óbvio que a crueldade e a generalização sistemática destas práticas não diminuiu durante o reinado de Assad Filho. Os seguintes métodos são mencionados no texto:

dulab (pneu): “pendurar (o prisioneiro) de um pneu suspenso e espancá-lo com paus, bastões, cabos ou chicotes”;

falqa: “bater nas plantas dos pés”;

bisat ar-rih (tapete voador): amarrar o preso a um pedaço de madeira com a forma do corpo humano e, ou bater-lhe, ou aplicar choques eléctricos por todo o corpo. Na descrição do bisat ar-rih dada no texto, parece-se mais com um misto de kursi;

al-almani (a cadeira alemã). Este método, descrito nos anos 1980, consiste em “uma cadeira de metal com partes móveis à qual o preso é amarrado pelos pés e pelas mãos. O encosto da cadeira inclina-se para trás, causando uma extrema hiperextensão da coluna e uma forte pressão no pescoço e nos membros”. O autor descreve um artefacto que é usado para criar pressão na coluna e no pescoço, acompanhado por espancamento por todo o corpo.

O texto diz o seguinte:

O medo de ser preso

Muitos dos nossos amigos estão a ficar paranóicos e cheios de medo de serem apanhados nas mãos da Mukhabarat.

politicalsiriaSentem-se a toda a hora como se o agente da Mukhabarat estivesse à espera atrás da porta ou debaixo da cama, ou prestes a violar as suas contas do Facebook. Têm quatro contas fictícias, seis pseudónimos e só participam em manifestações quando não há perigo. Como uma espécie de aristocratas! Por que fazem isso tudo? Porque não querem ser presos. Deveras?! Se é isso, então podem dizer adeus a esta revolução. E por isso vamos escrever o que pode acontecer se se for preso, e o que é preciso saber para nos prepararmos para isso. Peço a Deus que me inspire para escrever tudo isso correctamente.

Muito bem, vamos a isto com a graça do Senhor:

Ser preso não é uma experiência tão temível como muitos suspeitam. Ser preso é uma medalha que, depois, trazemos ao peito, e cujas histórias poderemos contar aos nossos filhos.

Ser preso é uma experiência mista de estranheza, de desconhecido, de honroso e de incrível. Quanto mais diversas forem as circunstâncias da prisão, quanto mais tempo se ficar preso, quanto mais gente se encontrar no caminho, mais rica e excitante será a experiência. Por isso é importante cada um não se esquecer de escrever o seu relato assim que sair de lá.

Manifestantes sírios algemados e estendidos no chão depois de serem presos numa manifestação em Baida, em Abril. (foto The Independent)
Manifestantes sírios algemados e estendidos no chão depois de serem presos numa manifestação em Baida, em Abril. (foto The Independent)

No momento de ser preso, o desconhecido aterroriza-nos. Mas tranquilizem-se. O mais difícil já passou – são os momentos da prisão e do primeiro espancamento. Há que tentar, nos momentos de calmaria, recuperar a autoconfiança e levantar o moral, e usufruir desse tempo em que se está a ser alvo dessa honra – pois já não falta muito para este regime cair, e pode não haver outra oportunidade.

Na prisão, tenta adaptar-te a tudo, excepto à humilhação e às blasfémias que vais ouvir. Reza – seja em que posição for – e tenta preservar uma forte relação com Deus – a espiritualidade será bem elevada se expuseres totalmente a tua alma.

Fim da 1ª parte.

Ver a 2ª parte aqui.
Ver a 3ª parte aqui.

Hani Sayed dirige o Departamento de Direito da Universidade Americana do Cairo (Egipto).

[*] Middle East Watch, Syria Unmasked: The Suppression of Human Rights by the Asad Regime (1991), em particular o Appendix A: Types of Torture in Syria—The Amnesty International List (pp. 149-155).

Original do artigo (em inglês) em jadaliyya.com. Tradução do Passa Palavra.

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