Segunda parte (de três) de um texto de autor anónimo, que circula em páginas sírias do Facebook, traduzido do árabe e aqui apresentado por um professor universitário egípcio. “Se já provaste o sabor da prisão e já foste libertado, há uma coisa que sairá para sempre do teu coração: o medo.” Por Hani Sayed e Comité Local de Coordenação do Bairro XXX (Síria)

Continuação do texto que, na parte (1) deste artigo, foi apresentado e comentado por Hani Sayed e que é difundido com a assinatura do Comité Local de Coordenação do Bairro XXX (Síria).

Então vamos começar:

Ser preso

siria2-4
Principal prisão Síria, localizada em Damasco.

Antes de mais, podes ser preso em casa ou durante uma manifestação.

Ser preso em casa

Eles vão confiscar-te muitas coisas e farão uma busca à tua casa, de cima abaixo. Se tiveres coisas suspeitas como sprays de tinta, panfletos, spray de gás pimenta, esconde-as no telhado ou na cave ou qualquer outro sítio.

Eles vão confiscar-te o computador, o portátil, o telemóvel [celular], a câmara fotográfica, o passaporte, o cartão de identidade, etc. Descontrai! Tudo será devolvido. Eles não vão ficar com nada. A sério, não estou a brincar.

Se fores apanhado em casa, isso quer dizer que algum dos teus amigos ou conhecidos foi preso antes de ti, e teve de lhes dar a tua morada sob tortura.

Ou é possível que Vossa Excelência não tenha tomado as bem conhecidas precauções ao usar a internet ou o telemóvel.

Facebook

O que eu vi quando estive preso, durante um mês, e depois de estar misturado com muitas pessoas que foram interrogadas por diferentes interrogadores, é que os interrogadores não sabem nada, não apenas acerca do Facebook, mas sobre a internet, senão mesmo sobre computadores.

Mas o interrogador vai dizer-te: Agora vem aí o “engenheiro” ou o “perito”. Mas este será também um imbecil, só que de outra ninhada :), vão chamá-lo só para te assustar.

Quanto ao engenheiro ou perito: o mais provável é ser um licenciado de faculdade e pode saber um pouco do assunto, pode ser um diplomado duma escola técnica ou um empregado das telecomunicações. Quanto a mim, não creio que ele tenha percebido alguma coisa, como seria o caso de um engenheiro.

O perito pediu-me uma vez as minhas senhas… Infelizmente eu tinha-as armazenado há tempos num ficheiro que depois apaguei, mas com o “file recovery” o ficheiro foi descoberto e eu fiquei sem poder esconder nada.

Podes deixá-los a ver navios, se estiveres para aí virado, sobretudo se tiveres tido a impressão de que o motivo da prisão nada tinha a ver com a net ou com hacking; o que significa que eles não fazem a mínima ideia das contas que tu tens.

Por acaso as minhas senhas estavam na posse do “perito” e ele foi incapaz de entrar na minha conta, e trouxe-ma muitas vezes pensando que eu estava a enganá-lo – tal é a qualificação desses técnicos.

Seria boa ideia dares a senha da tua conta fictícia a alguém que vá contigo à manifestação, ou ao teu irmão, de maneira que, quando fores preso, essa pessoa possa de imediato aceder ao Facebook e limpar a conta completamente.

A inspecção da tua conta no Facebook levará algum tempo; calculo que uns dois dias. Durante esse tempo eles vão interrogar-te verbalmente – sejam quais forem as descrições horríveis que tu possas ter publicado acerca do regime, isso não conta muito para eles; talvez os tipos já estejam a habituar-se a isso, agora.

Por exemplo: Antes da revolução, eu fiz um vídeo para publicar e apaguei-o porque não estava bem feito. Eles recuperaram o ficheiro que foi aterrar nas mãos do interrogador, e eu recusei-me a confessar acerca desse filme – não por heroísmo, mas porque de facto já me tinha esquecido disso. O interrogador foi-me buscar e trouxe um portátil e passou o filme e foi horrível porque falava abertamente contra o Hafez e o Bashar (e nota que isso foi antes da revolução). Pensei que eles me iam esfolar vivo, mas afinal nada aconteceu por causa disso :), só o espancamento habitual como todos os dias e depois “arrasta esse cão para a cela”.

O que é importante, e voltamos ao “perito”, é que ele vai levar o portátil, o telemóvel e a câmara (se tiver sido confiscada) e inspeccionará em busca de quaisquer materiais que lhes possam interessar.

O telemóvel

Apaga todas as canções islâmicas, de luta ou revolucionárias, e todas as fotos privadas da tua família porque os mukhabarats são mesmo uns canalhas. Apaga ou altera todos os nomes suspeitos dos teus amigos, como Abu Qoutada, Abu Obada ou Abu Al Q’aq’a, isto é, qualquer nome que soe a islâmico, ou nomes que se referem a “revolução” ou qualquer palavra derivada.

Verifica as tuas fotos para assegurar que não contêm nada que lhes possa chamar a atenção, como a foto de uma rua ou de um bairro.

Não conserves nada que tenha a ver com a revolução, seja o que for, manifestação, caricatura, canção, palavra de ordem, etc.

Não te esqueças de apagar o registro da chamada depois de cada chamada. Todavia, se eles se derem ao trabalho, eles podem conseguir o registro da chamada, e o das mensagens, da companhia Makhlouf. Em qualquer caso faz o que tens a fazer, e apaga.

Quanto às mensagens, apaga tudo o que possa ser usado contra ti. Em todo o caso, se for uma mensagem entre revolucionários, apaga-se imediatamente.

O teu telemóvel, agora, deve estar limpo. Certo? Não! Errado!

Porque é muito fácil recuperar dados do cartão de memória. Por conseguinte, e para teres a consciência tranquila quanto à câmara e ao telemóvel, troca o cartão de memória. Esconde o antigo num buraco no chão, ou debaixo de uma árvore, nem que seja na superfície de Marte. E faz isso mesmo que o cartão de memória não tenha nada acerca da revolução. Por certo não queres que esses canalhas vejam as fotos da tua família.

Falei da câmara. O assunto fica resolvido com o cartão de memória.

O computador, fixo ou portátil

Eles conseguem recuperar dados apagados. Tenta formatar e fragmentar as tuas drives [discos de memória] para teres a certeza de que os dados são realmente apagados. Configura o teu navegador (“browser”) de internet para NÃO guardar a história e os “cookies”. Em qualquer caso, usa o Chrome, o “browser” invisível da Google, para teres alguma paz de espírito.

Facebook e senhas

siria2-2O perito vai questionar-te sobre as senhas. Se és estudante universitário ele não vai acreditar que tu não tens uma conta, em especial se foste apanhado através do Facebook ou se algum amigo teu foi apanhado antes de ti e falou.

Opta por ter duas contas: Uma normal e pacífica como se a revolução estivesse a ter lugar em Moçambique. Quando interrogado, vais confessar que tens uma conta de Facebook e mostras-lhes essa conta. Ela tem de lá ter os teus verdadeiros amigos e deves lá entrar todos os dias para conversar por escrito (“chat”) normalmente. É na segunda conta que tu fazes todo o trabalho real sob pseudónimo e sem qualquer informação pessoal. Claro que nada disto é novo para ti.

Na tua conta normal usa uma imagem ambígua para o perfil, como a imagem de uma bandeira ensanguentada, ou expressões de pesar, etc. Mas não exageres, não precisas de lá pôr a imagem de um sapo.

Ao fim deste tempo todo, talvez eles tenham adquirido alguma experiência de Facebook, e estes truques não os enganem. Aqui põe-se uma questão fundamental: Que informação tenho de esconder, e que informação terei revelar se a pressão a isso me obrigar?

A regra de ouro

Podes manter-te senhor de ti e manter-te firme quanto a todo e qualquer elemento de informação só conhecido por ti, ou informação só conhecida por ti e por outra pessoa que lhes é inacessível. Nunca divulgues essa informação facilmente. E então onde é que está o problema? O problema é que, se foste preso em casa, não sabes como é que eles chegaram até ti. Chegaram a ti pelo Facebook? Por um delator? Porque um dos teus amigos foi preso antes de ti, etc.? Aqui tens de usar o teu engenho para deduzir como chegaram a ti através dos interrogatórios.

Por exemplo: Uma vez o espertalhão do interrogador fez-me perguntas sobre um dos meus velhos amigos. Esse velho amigo e eu, ambos conhecemos um outro amigo com quem fizemos alguma coordenação antes da revolução. Eu concluí, da pergunta, que esse amigo comum tinha sido apanhado antes de mim e que foi ele quem falou do meu velho amigo. E desse modo eu consegui perceber como tinham chegado até mim e comportei-me nessa base.

Ser preso na rua

Se fores preso na rua, vais levar uma carga de pancada no momento da prisão. Para falar com franqueza, não como é que eles te vão tratar quando chegarem contigo à polícia política. Se te prenderam em casa, vão dizer à tua família que é uma questão de meia hora, algumas perguntas e respostas, mera verificação.

Ao chegarem à polícia política, começarão por te falar com simpatia (como aconteceu comigo) em conversa de homem para homem. Vão fazer-te sentir fora de perigo. Tem cuidado! Não te deixes enganar, que o entusiasmo não te leve a dar-lhes tudo o que tens. Logo a seguir eles começaram com o verdadeiro interrogatório e vão retomá-lo do ponto onde tu paraste.

Sempre que te levarem da cela prisional para o interrogatório, o guarda prisional (isto é, um agente da polícia) vai falar contigo ao acompanhar-te. Vai soprar-te aos ouvidos com a voz do pai misericordioso, compassivo e sábio: “Confessa, meu filho! Juro que vais sentir-te aliviado. Ouve o que te digo! Quem é trazido para esta secção tem por força de dizer alguma coisa. Poupa-nos o trabalho e não te obrigues a suportar a tortura.”

Não lhe dês ouvidos. É conversa fiada. Enquanto estás do lado de fora, finge que acreditas nas palavras dele, que conheces bem a regra, que queres evitar o espancamento e que estás disposto a contar tudo.

A primeira chicotada na planta do teu pé vai ser um choque para ti – é incrivelmente doloroso – vais sentir-te fragilizado e vais pensar que é inevitável confessar tudo. Errado. Rapazes! É tudo uma questão de habituação. O primeiro golpe faz um grande efeito, o resto é o que for. Muita gente aguentou o primeiro choque, e não pronunciou palavras desnecessárias. Leiam o romance A Concha de Mustafa Khaliefa [*] que de certeza vos irá fortalecer o ânimo.

Depois de um período de detenção, em especial se tiver havido repetidas torturas (como aconteceu comigo), tu vais entrar no pneu [tortura do pneu] quase que com um sorriso nos lábios, e tudo aquilo te vai parecer uma farsa. E se há alguma informação que eles só possam obter através de ti, guarda-a bem guardada. Quanto ao resto, vai pelo teu engenho.

Não lhes dês ouvidos se tentarem usar a tua família para te chantagear – por mais que eles praguejem, por mais que eles ameacem. Eles deixaram de usar esse método, salvo em muito raras circunstâncias.

Se fores apanhado na rua, podes tentar subornar o agente da secreta com uma centena de libras [sírias] para ele te deixar fugir, como nos disse ter feito um dos nossos. Não sendo assim, não gastes o teu dinheiro inutilmente. A partir do momento em que estás na polícia política, não resulta.

siria2-3
Protesto em Damasco.

Se fores apanhado na rua, tenta fazer-te de parvo e nega qualquer relação com o grupo. No pior dos casos, podes tentar argumentar que viste pessoas a desfilar e por isso seguiste a multidão. Não esqueças que o organizador da manifestação terá direito a tratamento especial, por isso tenta fazer-te de parvo.

Em geral, e o que se segue é certo e seguro, os que ficaram presos bastante tempo ficaram a saber uma coisa: Eles deixaram de meter medo. Verificou-se que não são tão espertos como julgávamos. Além disso, estão mortos de medo, sem pistas, mal se conseguem aguentar. Em meados de Março, quando eu fui preso, estávamos no carro que nos levava para a sede da polícia política. O agente disse para o amigo: “Eu pagava 500 libras [sírias] por uma hora de sono!” E isso foi há quatro meses, quando a Síria ainda estava a dormir.

Fim da 2ª parte.

Ver a 1ª parte aqui.
Ver a 3ª parte aqui.

Hani Sayed dirige o Departamento de Direito da Universidade Americana do Cairo (Egipto).

[*] Al-Qawqa’a [A Concha]. Beirut: Dar al-Adab (2008). Mustafa Khalifa esteve detido na malfamada prisão military de Tadmur (Palmira) entre 1982 e 1994. O romance descreve em pormenor os horrores da tortura, a intimidação e a humilhação por que passam os presos políticos às mãos da polícia política em Tadmur.

Original do artigo (em inglês) em jadaliyya.com. Tradução do Passa Palavra.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here