Por Manolo
Leia a primeira e a segunda partes do artigo.
VI
As novas formas de protesto apresentadas na Revolta do Buzu condicionaram o surgimento de formas complementares de repressão e controle, como numa espécie de “estado de sítio preventivo” declarado em algumas regiões da cidade.
O governador Paulo Souto deu a idéia no dia 3 de setembro: “é preciso dizer que, embora eles tenham o direito à manifestação, não podem parar o trânsito.” Foi justamente quando a PM abandonou as “boas maneiras” com que vinha tratando o movimento nas áreas centrais da cidade, justificada pela postura do prefeito Antonio Imbassahy: “bom prefeito é mandar dar porrada em menino de dez anos?” A mesma repressão que já havia prendido Ibsen dos Reis no dia 1.º de setembro (desfalcando a equipe do CMI que cobria as manifestações) seria reforçada pelo histórico editorial do Correio da Bahia de 3 de setembro (“Chega de Desordem”) – supostamente escrito pelo próprio Antonio Carlos Magalhães – que criticava o prefeito por “não impor sua autoridade para por fim à desordem e não denunciar a manipulação dos estudantes adolescentes por parte de políticos oportunistas e inescrupulosos, que imaginam ganhos político-eleitorais com o caos”. As prisões e espancamentos gratuitos aumentariam: bodes expiatórios como Elder Souza e Lucas (estudante de computação da UFBA) eram arrastados para as delegacias como exemplo, e este último chegou a ser indiciado por “crime contra a organização do trabalho”.
Na cabeça dos ativistas mais desavisados, apenas as organizações realmente revolucionárias estudam os métodos dos movimentos sociais para aprender com seus erros e acertos. Esquecem-se que esta revisão constante da eficácia dos métodos e do estudo da sua adequação a conjunturas determinadas é emprestada da teoria militar, da prática da guerra, e que as forças da repressão, especialmente as militares, são mais bem treinadas neste aspecto do que eles mesmos, e conseguem apreender bem mais rápido as mudanças no modo de protestar. Veja-se, por exemplo, a postura da Polícia Militar com relação aos protestos estudantis mais recentes em Salvador [refere-se aos protestos de 2004]: basta que estudantes coloquem seus pés na rua para encontrar entre 30 a 100 policiais da tropa de choque à espera na Estação da Lapa, e o efetivo destacado para acompanhar as manifestações aumentou numa proporção que precisa ser analisada com mais calma – embora seja visível que o número de policiais nestes eventos é bastante próximo ao dos manifestantes. As manifestações no Iguatemi recebem tratamento especial: já preparados com capacetes e cassetetes, policiais da tropa comum, geralmente entre 30 a 100, aguardam qualquer manifestação no local e, a depender do tamanho da manifestação, fazem um cordão de isolamento em torno dela, para impedir qualquer movimentação no sentido de paralisar as ruas.
Mas a análise do movimento não foi apenas posterior: medidas de desmobilização já eram tomadas durante a Revolta do Buzu. As diretorias das escolas e colégios contribuíram para a desmobilização, suspendendo as aulas e evitando que os estudantes pudessem ter a desculpa de sair de casa, se agrupar e tomar decisões no espaço privilegiado que é a escola. Não que os estudantes não pudessem se organizar em outro local ou mesmo que gostassem de estar na escola em situação normal, mas a escola, bem ou mal, é a instituição que os aproxima, que impõe a formação de relações sociais entre si e que os reúne num só espaço físico. É na escola que quantidades determinadas de estudantes, escolhidas através de critérios que variam (comportamento, idade, série, sexo, etc.), são socadas no mesmo espaço físico; é a partir da convivência na escola, da resistência conjunta ou da aceitação de regimes comuns de disciplina, que se formam relações sociais que duram às vezes uma vida inteira. As escolas e seus prédios, suas quadras de esporte, seus ginásios, seus pátios, seus corredores, suas salas, tornaram-se durante a Revolta do Buzu espaços onde os estudantes encontravam outros indivíduos em situação semelhante à sua, que sabiam estar sensíveis às reivindicações do movimento; igualmente, era lá onde tratavam rapidamente dos métodos de ação a serem empregados imediatamente antes da ocupação das ruas. O lock out docente – mais um paralelo com o movimento operário, para indicar a paralisação realizada por patrões, gerentes, etc., com o fim de desmobilizar ou pressionar os trabalhadores organizados – iniciado nas escolas públicas na primeira semana de setembro por orientação da Secretaria de Educação foi adotado pelas escolas particulares na segunda-feira seguinte; é possível medir a força do movimento pelo fato de estudantes terem conseguido superar este lock out e manter o movimento com gás por mais uma semana mesmo sob a vigilância estreita da PM, que plantou tropas em frente aos colégios mais importantes desde o dia 8 de setembro.
Os estudantes, apesar dos percalços, souberam compreender rapidamente a lógica da repressão e criar novas formas de manifestação que contornaram as dificuldades colocadas, às vezes vencendo aqueles que eram – e são – treinados para responder a mudanças táticas com maior velocidade. A partir do momento em que a PM passou a atacar mais duramente os bloqueios, abandonaram momentaneamente esta forma de manifestação e voltaram às passeatas, reapropriadas e subvertidas. A passeata, desde muito tempo atrás, tem sua razão de ser na relação entre os manifestantes e uma autoridade qualquer, à qual os manifestantes pretendem se dirigir para entregar alguma petição com reivindicações, ou fazê-las oralmente. De igual maneira, tem como objetivo não declarado impressionar a autoridade com a qual os manifestantes se relacionam através de uma demonstração de força pelo número. No caso da Revolta do Buzu, os estudantes não usaram a passeata com nenhuma destas finalidades: pretendiam apenas dar voltas pela cidade, interrompendo o tráfego e mantendo a Polícia ocupada em persegui-los sem saber jamais para onde ir. Chegaram, por vezes, a despistar a Polícia, escapando de sua perseguição; as passeatas passaram, assim, de meio ultrapassado e ineficaz de protesto – evidentemente, no contexto e na conjuntura do movimento que então se fazia – a forma conjuntural de manter a manifestação longe da repressão policial. Os estudantes, mesmo sem fazer este tipo de reflexão histórica, retiraram a passeata das circunstâncias em que normalmente é empregada e colocaram-na para funcionar em outra situação, na qual se provou extremamente eficaz.
VII
Apropriar-se da Revolta do Buzu é palavra de ordem de todas as correntes políticas; a disputa que se deu nas ruas agora se dá na escrita da História.
Como aconteceu no quebra-quebra de 1981, a “maternidade” da Revolta do Buzu agora se torna alvo de disputas. O prefeito Antonio Imbassahy lançou a palavra de ordem numa entrevista: “espero tirar proveito de tudo isto”. Ele mesmo que, no dia 2 de setembro, soltara uma nota onde se lia que, quanto ao aumento das passagens, “não há a hipótese de voltarmos atrás”; logo ele que, no mesmo dia, afirmou em programa de televisão que “a população não pode ficar sem o direito de ir e vir”, e pedia que “os pais conversem com os filhos”, pois “esta é uma cidade tolerante”…
O Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos – MDT veio logo na seqüência: participam dele, dentre outras entidades, a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU); a Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer); a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transporte (CNTT/CUT); o Fórum Nacional dos Secretários de Transporte Urbano e Trânsito; o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU); a Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô-SP); a Federação das Empresas de Transporte da Bahia e Sergipe (FETRABASE); a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Este movimento eminentemente patronal e burocrático lançou um manifesto ainda nos últimos dias de setembro de 2003, e pretendia “repartir o custo das gratuidades com toda a sociedade, criando fontes extra-tarifárias para seu custeio” e a “implantação de uma política especial de preços de óleo diesel para o transporte público de passageiros”. Este manifesto ganhou uma edição especial em Salvador, no qual se afirmava que os estudantes haviam dado o primeiro passo em sua luta pela redução dos preços das passagens – numa tentativa de se apropriar de um movimento ao qual o MDT, pela própria situação de classe da maioria de seus membros, seria radicalmente contrário se o sentisse na pele.
Juventudes partidárias espalham terem sido as reais protagonistas das mobilizações estudantis; seus militantes de fora de Salvador propagam que o movimento não teve nada de espontâneo, e brigam para saber quem, de fato, deu início e hegemonizou o movimento. Quando estive em Brasília para acompanhar o Encontro de Grupos Autônomos do Distrito Federal (18 e 19 de setembro de 2004), participei da exibição do videodocumentário A Revolta do Buzu em frente ao espaço Dois Candangos, na UnB; logo no início da exibição, apareceram militantes da UJS, que entusiasmaram-se ao ver as primeiras bandeiras de sua organização no início do vídeo e repetiam o tempo inteiro: “ta vendo aí? Disseram que esse negócio foi espontâneo, e tal, mas quem fez tudo lá foi a gente!” Reconheciam alguns colegas seus (Augusto, Marcelo Gavião) e felicitavam-se. Foram desmentidos pelas cenas imediatamente posteriores, que mostrava a deslegitimação da comissão autoconstituída na assembléia do dia 04 de setembro. Irritaram-se e começaram a discutir. Mas uma dúvida fica no ar: até que ponto esta falsificação do real caráter da Revolta do Buzu surge por iniciativa sua? Panfletos assinados por “UNE, UBES, ABES, grêmios, DAs e CAs” destinados a convocar uma manifestação pelo passe livre em Salvador no dia 02 de setembro de 2004 dão conta deste mesmo protagonismo das entidades na Revolta do Buzu, coisa que nem mesmo os analistas que lhes são mais favoráveis apontam.
Como visto anteriormente, é inegável a participação de militantes de organizações de juventude, partidos e juventudes partidárias nas manifestações estudantis; mais uma vez, é possível dizer que foram diretamente responsáveis pelo começo do movimento no dia 13 de agosto, uma manifestação pensada desde a caravana a Brasília contra a reforma da previdência. No vídeo A Revolta do Buzu é possível reconhecer vários militantes do PcdoB, PT, UJS, PSTU, anarquistas e anarco-punks. Mas o crescimento do movimento e a rejeição destes partidos e entidades pela multidão estudantil fez com que abandonassem a Revolta do Buzu à sua própria exaustão. Já mencionamos a fala de uma das “lideranças” que assinou o “acordão do dia 2”, para quem o movimento, a depender de sua vontade e não fosse ele representante de uma maioria, cessaria imediatamente. Ainda na noite do dia 4 de setembro, depois da assembléia que destituiu a comissão de negociação responsável pelo “acordão do dia 2”, militantes do PT atribuíam os protestos radicalizados ao “PSTU, anarquistas e ao PFL Jovem” – numa paráfrase “de esquerda” do editorial do Correio da Bahia publicado do dia 3 de setembro. Uma destacada militante da UJS baiana ainda diria no dia 11 de setembro: “não devemos retomar as paralisações de ônibus sob pena de perdermos o apoio popular” – num momento em que o jornal A Tarde apresentava pesquisa em que 88,7% da população apoiava o movimento, e a Rádio Metrópole veiculava outra pesquisa em que 70% da população era favorável aos estudantes. Estes militantes, todavia, se perdem na multidão de milhares de estudantes não-vinculados a qualquer partido ou organização sentados nas ruas bloqueando o tráfego – que, se tomarmos como válidos os números apresentados pela imprensa na época, chegavam a vinte mil. Foi mais acertada a posição de uma militante do PSTU: “Como um partido que não tem nem 30 militantes em toda a Bahia vai orientar 19 focos de protestos?”
A quantidade de tentativas de apropriação da Revolta do Buzu, do prefeito ao militante, não se explica apenas pela sua novidade. Fundamenta-se, sobretudo, na grande atração que esta manifestação da revolta popular contra a dominação capitalista exerce sobre as pessoas. Um popular dizia, ainda em 23 de agosto: “é chato ter que caminhar, mas eles [os estudantes] têm razão. Nós que somos pais, arcamos com o custo do transporte deles”. Um eletricista desempregado disse, na mesma ocasião: “podem ser desordenados, mas demonstram aquilo que sentimos.” No dia 3 de setembro, uma moradora do Alto do Peru era ainda mais enfática: “eu tive vontade de descer do ônibus e me juntar a eles.” E eis aqui a chave de todo o problema: por que ela não desceu do ônibus? O que afasta tanto a população da conquista de seus direitos mais básicos através de meios radicais? Durante a Revolta do Buzu, vários sindicatos, e mesmo a CUT, manifestaram seu apoio ao movimento em panfletos e cartazes. Há quem – como eu mesmo – tenha formado bons arquivos deste material, mas ele pouco ou nada significa; a participação dos sindicatos nas manifestações se resumiu a papel, tinta e à cessão de espaços físicos para reuniões, como a quadra do Sindicato dos Bancários. A conjuntura econômica e política de então impedia que organizassem qualquer tipo de mobilização de apoio ou solidariedade à paralisação da cidade pelos estudantes. Além do tremendo arrocho que atinge os trabalhadores, as entidades sindicais estão há certo tempo nas mãos dos mesmos partidos que hegemonizam as entidades deslegitimadas do movimento estudantil. Havia na época inúmeros trabalhadores que apoiaram individualmente o movimento, mas eles estavam igualmente impotentes. O trabalhador que resolvesse abandonar o serviço para manifestar-se com os estudantes tomaria logo um bruto corte de ponto, algo extremamente temido em tempos de total insegurança quanto à permanência no trabalho, e seu sindicato, como visto, talvez não se dispusesse a amparar-lhe nestes casos individuais. Os rodoviários – não o sindicato, mas os trabalhadores individualmente – apoiaram ativamente o movimento, e por sua condição particular foram de imensa ajuda nos primeiros dias do movimento, pois muitos deles atravessaram seus veículos nas pistas bloqueadas.
Sobrou para os estudantes pobres; coube-lhes o papel de dar corpo à revolta contra o sistema de transportes – e contra a baixa qualidade de vida em geral, como afirmaram em vários depoimentos. É a eles que pertence todo o mérito da Revolta do Buzu. Eles estão submetidos a dispositivos disciplinares cuja violação não traz conseqüências além de uma suspensão ou transferência ex officio; ainda que sujem seus currículos escolares e queimem o filme em casa, a punição que sofrem por qualquer motivo não afeta ninguém mais além de si mesmos, não gera conseqüências imediatas tão graves quanto um corte de ponto ou uma demissão. Na sala de aula da escola pública, o estudante não se sente bem, esgota-se, vive infeliz, não desenvolve livremente suas energias físicas e mentais; é perfeitamente possível dizer que o estudante foge da sala de aula como quem foge da peste, mesmo se se fizer necessário enfrentar um sistema organizado de coerções que lhe impõe a permanência na escola (muros, grades, fiscais de corredor, supervisores, chamadas, etc.). Nos pontos e estações de ônibus, aglomeram-se para entrar pelas janelas sem pagar, para traseirar, fazer batuque nas cadeiras e laterais da parte do fundo dos ônibus, onde a ausência de um corredor lhes permite agrupar-se para perturbar. Ocupar as ruas pode ter sido uma grande festa, como demonstram os incontáveis grupos com cavaquinhos e instrumentos de percussão que povoavam os bloqueios. Foi, apesar disso, uma festa movida a muita indignação, a muito desgosto: pela situação dos pais, desempregados ou em trabalho precário, e pela sua pouca perspectiva de futuro. A ocupação das ruas, a constituição dos bloqueios, muitas vezes passou de ato político a ato de desespero catártico: “o movimento está enfraquecendo. Todo mundo quer liderar, mas dizem que não. Infelizmente está se desfazendo, mas eu quero continuar indo para a rua.”
Tal como os estudantes que a construíram e da forma como se apresenta, a Revolta do Buzu não se presta a apropriações de quem quer que seja. Selvagem, indômita, não permite reduzir seu conteúdo à “lição de cidadania” na qual pretendem enclausurá-la sem que se perca com isto toda a riqueza e conflituosidade da experiência prática de ação direta, onde reside sua força. Ao contar sua história, é impossível escapar de um elogio de sua autonomia, que passa muito perto, embora criticamente, da apologia da sua espontaneidade – dois fantasmas que perturbam o sono dos empresários de transportes e da burocracia do movimento estudantil. Autonomia como a busca e uso de formas organizacionais que, se deixaram a desejar no âmbito institucional daquele momento histórico, abriram a pessoas de fora dos círculos da militância a possibilidade de tomar em suas mãos o seu próprio destino; espontaneidade como a imprevisibilidade, criatividade e entrega próprias daquele “despertar das más paixões” de que falava um velho libertário russo. Uma vastidão de problemas perde de imediato qualquer sentido diante da Revolta do Buzu; um sem-número de discussões é inutilizada por ela de um só tapa. Graças a ela, a época das sutilezas e elucubrações no movimento estudantil agora é passado. A Revolta do Buzu – assim como a greve dos bancários de setembro/outubro de 2004 e outras lutas sociais de base pelo mundo afora – extirpa todas estas questiúnculas, varre toda toxina imobilista e nos coloca outras, simultaneamente simples e profundas: você é a favor ou contra a ação, os métodos e o programa dos estudantes de Salvador? É a favor ou contra a radicalização do movimento estudantil – e dos movimento sociais – pela ação direta?
[Fim da 3ª e última parte do artigo]
Fotos por Marcelo de Trói, em http://www.flickr.com/photos/marcelotroi/sets/72157625751456121/with/5376057489/
Peço desculpas por abusar do espaço dos comentários, que, afinal, são destinados a leitores, não a autores. É que este texto mexe com coisas importantes demais não apenas para mim, mas para toda uma geração de pessoas que viveu exatamente isto que está dito nas três partes deste ensaio, e muito mais.
Lá em 2003, naquelas semanas de luta, pela primeira vez na vida dezenas de milhares de jovens olharam para uma cidade inteira e disseram, na prática: “é nossa!” Minto. Na verdade não disseram. Ninguém disse. Sentimos isso, ao invés de dizer. Sentimos isso quando, no meio da rua paralisada, a gente se juntava com gente que nunca havíamos visto na vida para, literalmente, fazer o que a gente queria. Passávamos os dias, as semanas, não nos importando com mais nada além de tentar forçar a passagem a baixar. No final, uma só frase, já citada, resumiu tudo: “Infelizmente está se desfazendo, mas eu quero continuar indo para a rua”. Um não-sei-o-quê muito forte nos empurrava para diante, mesmo contra as condições mais adversas.
Um exemplo disso, puxado da memória. No final, já sob o lock-out docente imposto pela Secretaria de Educação, milhares de meninos e meninas continuavam a ir às ruas fardados, como se quisessem afirmar-se estudantes mesmo quando tudo lhes dizia que não adiantava mais disfarçar as coisas. E a polícia dispersava qualquer grupo com mais de três pessoas fardadas. Num destes últimos dias, a PM desceu a porrada em quem quer que estivesse na entrada da Estação da Lapa. Mais particularmente, deram uma rasteira numa menina que filmava tudo, espancaram-na até que ela soltasse a câmera. Ela protegia a câmera com o corpo, aguentando os chutes e cassetetes, até que começaram a bater na cabeça dela e puxar-lhe os cabelos (um policial arrancou tufos inteiros de uma só vez) e ela soltou a câmera, que foi dada a um cara qualquer, quem sabe um policial à paisana, que saiu andando, lépido e fagueiro, sorrindo com seu brinquedo novo, enquanto a polícia ameaçava quem quer que tentasse correr atrás dele. Depois, largaram-na. Fui até ela para ver se estava bem, ela levantou. Nem chorava. Perguntou o que é que ia fazer agora, eu e mais dois que também haviam sido espancados a levamos para fazer um exame de corpo de delito, mas o IML dependia da guia expedida pela delegacia. Enquanto retornávamos ao complexo de delegacias dos Barris, já havia um grupo grande na porta da delegacia protestando enquanto outros registravam queixa. Ela registrou a dela, depois foi entrevistada pelo Carlos Pronzado (ela aparece no vídeo “Revolta do Buzu”) e saímos da delegacia. Enquanto nos preocupávamos com a segurança dela — vai saber se não tinha algum policial de tocaia pra “tirar satisfação” — ela perguntou, serena: “se eles pensam que vou ficar em casa… ah, se pensam… eles vão ver só, amanhã estou de volta…”
Não tiro mais coisas da memória porque tudo o que eu próprio poderia dizer está dito, e já há muito tempo, no longo editorial do Centro de Mídia Independente (que pode ser acessado clicando aqui) que sistematizou tudo o que lá se publicado à época. De certa forma, e guardadas as devidas proporções, foi o “nosso Facebook” de então. Se escrevo este comentário é porque foi sob a inspiração de tudo isto que vivi que, dentre outras coisas, escrevi outro artigo (que pode ser lido clicando aqui) na tentativa de fazer um balanço rapidíssimo de uma série de manifestações iniciadas e inspiradas pela própria Revolta do Buzu. E é sob a mesma inspiração que vejo as tentativas de imitar, em Salvador, a nova onda de mobilizações de ocupação de praças e ruas que rolam pelo mundo afora.
Ainda é cedo para dizer no que vai dar tudo isto. Mas é fato que as ocupações de praças estão hoje acendendo a imaginação das pessoas mais conectadas com tudo isto, tal como, lá atrás, e por motivos diferentes, o fizeram o levante zapatista — sim, sou velho o suficiente para ter visto notícia do levante no Jornal Nacional — e os Dias de Ação Global (inspiração direta para muitos de nós na Revolta do Buzu). Mas será que aqueles influenciados por este “novo entusiasmo” não estão mais preocupados com a forma da manifestação que com seu conteúdo? Ou seja, não estariam buscando trazer para Salvador uma forma de se manifestar que, aparentemente, é abrangente, aberta, democrática, igualitária etc. (no limite da capacidade de cada um de acessar a internet), mas cujos conteúdos são tão pouco atrativos para a população que somente alguns poucos corajosos se dispõem a participar? O que seria preciso agregar a elas para que este “novo entusiasmo” saia de sua própria impotência?
Não tenho respostas. Nem acho que uma pessoa só possa dá-las. Talvez analisar a história da Revolta do Buzu, balanços críticos da experiência da Ação Global dos Povos (como o que pode ser acessado clicando aqui) e coisas semelhantes ajude a abrir os caminhos. Mas que falta algo a este “novo entusiasmo”, ah, isto falta, e falta muito…
Bala!
Eu estava em 2003, estudava na Escola de Engenharia Elétrica da Bahia.
Acredito que precisamos de muitos espaços de formação política que dialogue com o ensino secundarista. Foi algo que senti falta em 2003, quando era 1º ano do ensino médio.
Apesar de procurar estar informado, me sentia perdido, sendo guiado pela massa, mas não como um boi numa manada, e sim como um pato em seu bando. Eu acreditava em quem estava me guiando, pois sabia que era um igual.
Só para comentar que neste mesmo período em Feira de Santana 5 mil estudantes tomaram as ruas também contra o almento da passagem, com confrontos com a polícia e ocupação da Prefeitura Municipal, mobilizações que duraram varias semana…