Por Manolo
Na esteira do artigo que escrevi sobre a “geração de acampantes”, resolvi visitar a ocupação da praça de Ondina durante sua assembleia geral do dia 2 de novembro. Dado o fato de a praça ficar relativamente isolada de um maior fluxo de pessoas e recuada relativamente à Av. Oceânica, sempre tive a impressão de que foi o pior lugar que poderiam ter escolhido para iniciar um movimento que pretende abrir-se à mais ampla participação de outros sujeitos, mas era preciso ver na prática como estavam as coisas.
Cheguei por volta das 21h15min. Uma ventania desgraçada, e uma chuva fina cortava o ar. Ao invés de ir direto ao acampamento, fui comer alguma coisa numa lanchonete próxima, pois sequer havia almoçado. Fiquei, enquanto lanchava, reparando se alguém se aproximava do acampamento: nada, nada além da ventania quase amassando as barracas e um ínfimo ruído ao fundo, a indicar quem sabe alguma conversa.
Terminado o lanche, fui ao acampamento. Estava bastante atrasado, mas a assembleia geral estava prevista para terminar às 22h. Vinte e três pessoas (contando comigo) debatiam os rumos do acampamento, cercadas por quatro barracas. Cheguei, dei um “boa noite” tímido e fiquei de pé num canto, calado, olhando e ouvindo. Não sabia se me apresentava ou se esperava que perguntassem alguma coisa, então preferi esperar que parassem a assembleia para que o recém-chegado – eu – se apresentasse. Seguiram adiante com a pauta – um péssimo sinal de acolhimento. Algumas pessoas com livros de faculdade debaixo do braço. Três caras da Bicicletada Salvador. Gente de casaco a tiritar no frio de 21º C. Conversas paralelas a rodo, enquanto as pautas iam correndo. O problema, agora, era o de dividir estas 22 pessoas em grupos de trabalho: Educação, Mobilidade Urbana etc. Muito se falava em “fazer ações diretas”, embora houvesse uma tensão no ar a cada momento em que esta expressão era pronunciada.
Macaco velho de mobilizações, passei a observar a dinâmica do grupo. É fácil saber quem “dá as cartas” nestas horas: se os trabalhos não foram bem divididos e se não há rotação de funções, basta ver quem “facilita” as assembleias, quem tem domínio pleno da pauta em debate e quem controla a divulgação via internet. Se ninguém mais interfere nestas questões, está configurado o domínio sobre o grupo.
Logo vi duas pessoas que se enquadravam perfeitamente neste perfil, G. e R.. O primeiro eu não conhecia. O segundo conheci virtualmente, por ele haver se apropriado do nome de um coletivo – Movimento Exu Tranca Ruas – que existia no atual IFET (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia) e foi um dos muitos embriões do Movimento Passe Livre (MPL) em Salvador; participou ativamente (ao menos no mundo virtual) num debate público sobre o modal de transporte a ser implementado numa das principais avenidas de Salvador – e, em sua inocência, fez lobby em favor da implantação de um projeto apresentado pela Camargo Correia.
R., que já me conhecia das mobilizações contra o aumento de tarifas de ônibus ocorridas em janeiro deste ano, me procurou logo para me apresentar a G.. “Mas por que não me apresentar a todas as pessoas aqui? Ou vocês fazem assim quando chega gente nova que não se apresenta?”, perguntei. “Ah, mas é que ele é quem está mais organizando as coisas, e tal…” Hum, certo, OK, vamos lá, então. Eis o que conversamos depois da assembleia, começando pela pergunta de G.:
– E aí, você está acompanhando o movimento?
– Sim, pelo blog, pelo Facebook etc.
– E está achando o quê?
– Rapaz, repare só, eu não costumo ser um cara de meias palavras quanto a certas coisas. Então, acho que sua escolha de lugar foi totalmente equivocada, péssima mesmo. Ninguém passa por aqui, nem ninguém vê vocês. Sua visibilidade é nula. A repercussão do acampamento é zero. Ou vocês saem logo daqui para outro lugar ou vocês estão fadados ao fracasso.
– É, a gente estava discutindo isso mesmo, tentar procurar outro lugar, ou então fazer o acampamento ser uma coisa mais pontual… Você não tem alguma ideia não?
– Cara, vocês tinham é que estar na praça do Iguatemi. Centro financeiro da cidade, fluxo intenso de pessoas por causa da confluência entre o shopping, a Igreja Universal, a Estação Iguatemi e a Estação Rodoviária. Ou lá, ou na Piedade, que é mais central e garante interface imediata com diversos artistas de rua, poetas e gente bem antenada com movimentos sociais que pode ajudar em muitas coisas.
Aqui entra na conversa uma jovem encasacada e de cabeça enrolada numa echarpe cujo nome, no burburinho pós-assembleário, me esqueci de perguntar:
– Ah, mas na Piedade não dá porque tem grades, fica fechada com grades de noite…
– Sim, então vocês dão um jeito de abrir a grade e entram. Ou só vale acampar em praça aberta?
– Ah, não sei.
– Também tem o Campo Grande, vocês podem tentar no Campo Grande.
– É fechada também…
G. tomou a palavra:
– Pois é, mas tem a questão da segurança, acho que o Iguatemi talvez seja melhor mesmo.
– Deviam ter pensado nisso logo no começo. Se vocês estão assim minguados agora, é porque escolheram muito mal o lugar. Fosse um lugar com mais gente passando, garanto que já teria mais gente aqui.
– É, mas tudo isto é uma experiência, a gente tinha que tentar…
– Sim, mas tentaram errado e insistem no erro. Precisava chamar mais gente, tentar dialogar com movimentos e organizações…
– No dia que a gente fizer isso, o acampamento esvazia. O pessoal tem horror a essa coisa de partido.
– Cara, mas aí vocês precisam ter maturidade suficiente para debater as questões em assembleia. Se vem aqui um cara de partido querendo levantar bandeira, traz o caso para debate e discutam, coloquem o caso em aberto. Não dá é pra ficar se isolando.
– É, mas a gente é tão pouco, não sei se vale a pena…
– Reparem só: São Paulo deve ter começado com umas quinze barracas, Rio de Janeiro com vinte (e hoje está para quase duzentas), todo mundo começou pequeno e foi crescendo porque conseguiram chamar gente, e vocês aqui ficam isolados no meio do nada.
– Pois é, você está certo, no Iguatemi daria mais gente, mas a gente precisa mesmo é ter essas quinze pessoas para acampar por lá e começar tudo de novo.
Enquanto pensava sobre o significado disto tudo – talvez não saibam ainda que qualquer manifestação no Iguatemi é brindada pela presença de dois policiais para cada manifestante – a assembleia se dispersava. Cada um ia para seu canto, e as três pessoas que se dispuseram a ficar para dormir – três pessoas em quatro barracas – foram saindo, cada uma para seu canto. E eu pensava: “esse bagulho não dura muito. Nem eles mesmos estão aguentando mais. Todo mundo com cara de cansado. Duvido que alguém esperasse que fosse chover ou ventar tanto esses dias”. Mudei de assunto, na mesma pegada:
– E só tem vocês aqui?
– É, tem pouca gente ficando, mas tem gente aparecendo durante o dia, a gente teve umas conversas legais com algumas pessoas. Na semana passada apareceu até um sociólogo gringo aqui para fazer uma palestra, a gente saiu daqui e fomos para a Biblioteca Central da UFBA (Universidade Federal da Bahia) para fazer a palestra, foi legal.
– Repara, como é que vocês querem aumentar o número de pessoas aqui se as atividades que agregam pessoas acontecem fora?
– Mas estava chovendo no dia, não tinha outro jeito.
– Mas puta merda, hein? Fazem o acampamento numa praça na beira da praia durante a passagem de uma frente fria e não pensaram nem em algum tipo de cobertura mais resistente?
A esta altura, eu já não sabia mais o que havia ido fazer ali. Tudo girava, girava e girava – não em minha cabeça, como que numa vertigem, mas em torno da indefinição, da profunda indefinição quanto a tudo naquele lugar. Não, não falo daquela indefinição cara aos jornalistas críticos ao movimento dos acampantes, de perguntar sobre uma pauta e nada lhes ser apresentado. Falo da indefinição absoluta, de uma indefinição arraigada quanto a tudo, de um “estar em aberto” permanente que sequer conseguia pautar outra coisa além da própria abertura e dos encontros pessoais.
Pensei, num átimo, se não estaria eu na mesma posição que o protagonista errante de Q, o caçador de hereges ao ver-se enredado na voragem anárquica dos loucos anabatistas de Münster, sedentos pela destruição do velho mundo e, alucinados por visões do Apocalipse, incapazes de propor qualquer coisa além do franco delírio autodestrutivo. Mas não. Estes de agora são muito bem comportados, sequer pensam em ocupar uma praça que não esteja, já, prontinha para recebê-los. Jovens de família, bem-vestidos, cada qual com sua casinha confortável e aquecida para a qual voltar quando o frio descer para 20º C. Não. Não era Münster, nem eram loucos, que dirá anárquicos. Estava na verdade entre muitos – ou poucos – Mickeys, os Mickeys de Fantasia, angustiados por haver perdido completamente o controle do feitiço lançado enquanto agitavam desesperadamente suas varinhas no ar antes que tudo piorasse.
Naquele momento, me perguntei sinceramente se tudo aquilo não seria apenas um grande movimento catártico da “ínfima multidão” de que me falou R. ao descrever o acampamento. Um delírio coletivo de um pequeno coletivo, uma alucinação infimamente generalizada, algo assim. Gente que nunca havia feito nada na vida quanto àquilo que os incomodava, e agora tentavam resolver tudo de um só golpe com quatro barracas na praia, casacos fashion, ideias na cabeça e câmeras nas mãos.
Mas não fora eu assim mesmo aos dezessete, dezoito anos? Antes do movimento estudantil, antes dos Dias de Ação Global, antes do CMI, antes da Revolta do Buzu? Não estaria agora eu, aos trinta e três, criticando a mim mesmo por tabela ao ser tão duro e inflexível com pessoas que estavam dispostas a encarar chuva e vento para dizer alguma coisa, mesmo quando sequer sabem direito o que dizer?
Tudo isto me veio em poucos segundos. Na verdade eu sabia bem o que havia ido fazer na praça de Ondina, e estava me deixando perder pela confusão. Precisava saber com que forças contavam realmente, além de alguns cliques no Facebook. Se o “movimento Ocupa Salvador” em que se pretendem transformar, caso o acampamento não prossiga, teria realmente alguma base. Do contrário, correria o sério risco de estar sendo injusto em minhas considerações. Propus, então, fazermos uma atividade, um debate, alguma coisa sobre mobilidade urbana, tema com que posso contribuir com boas informações. Isto puxou, novamente, a discussão sobre as ações diretas:
– Então, a gente estava querendo chamar aí os estudantes pra fazer umas ações diretas, tirar um dia aí pra fazer passe livre, e tal…
– É, a gente deve fazer uma convocatória chamando os estudantes para fechar as ruas e colocar as pessoas para entrar pela frente. (Em Salvador a catraca fica próxima à porta do fundo dos ônibus.)
– Sim, mas quais secundaristas?
– Ah, não sei…
– E convocar como?
– Pela internet, pelo Facebook, a gente vai vendo.
– E vão chamar quantos secundaristas?
– Todos, em potencial.
– De quais escolas?
– De todas, quantos estiverem disponíveis.
– E que contatos vocês têm? Em que escolas?
– A gente consegue, se a gente fizer uma convocatória boa. Sem tanto intelectualismo, a gente tem que ser bem prático mesmo, se a gente ficar com intelectualismo a gente não anda.
Já me arrepiava. Não de frio, mas de horror. “Intelectualismo”, segundo G. pareceu dar a entender, é toda e qualquer tentativa de entender qual a base real do movimento para melhor envolvê-la na luta, ou de pensar a organização de uma ação de forma mais sistemática e concreta para ter alternativas. Ou ao menos foi o que entendi de sua reação às minhas perguntas. Quando esta palavrinha apareceu, pensei comigo mesmo: “deixa quieto, ele precisa ver a trabalheira que dá isto tudo e o quanto a prática precisa também de um mínimo de planejamento”.
Nossa conversa foi saindo para outros cantos, e a chuva, que havia parado, recomeçou, fina, mas cortante. O vento amassava as barracas até quase lançá-las ao chão. Tentando já articular a atividade que propus, R. me apresentou a S. enquanto andávamos para a cobertura da lanchonete ao lado. Conversamos um pouco, eu e S., sobre a máfia dos transportes em Salvador, sobre as obras do metrô paralisadas, sobre o metrô que está para ser construído na Av. Paralela, sobre o SETPS (Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Salvador). Papo vai, papo vem, me perguntou:
– Mas você é como, ligado a alguma universidade, tem algum mestrado?
– Não, não, eu corro disso.
– Ah, então você é um pesquisador independente.
– Isso. Por aí. A gente fica limitado porque não tem o tempo todo dedicado à pesquisa, tem que dividir pesquisa com trabalho, tem tudo isso, mas é melhor porque a gente não fica preso à burocracia, nem às modas mais novas na universidade, não precisa disputar espaço em departamento, dá pra pesquisar de acordo com nosso próprio tempo e ritmo…
– Legal, legal. Mas você não pensa em fazer alguma coisa, alguma especialização, algum mestrado nisso não?
– Não. Ou ao menos só vou fazer para poder concorrer aí em concursos pra professor, mas já vou entrar com a dissertação pronta, pra não encher meu saco com pitaco de orientador. Se não fizer isso, daqui a dois anos não vai dar pra bancar uma filha e um enteado, e aí me fodo.
– É, isso mesmo. Mas repare, a gente vai chamar também um bróder que faz parte da Bicicletada, ele é engenheiro de trânsito, acho que fica legal, não é?
– Sim, fica.
– E você não tem nada escrito não, que a gente possa dar uma olhada?
– Tenho, escrevi umas besteirinhas aí. Dê uma olhada no Google, procure um texto que escrevi já tem tempo, chamado Transporte coletivo urbano e luta de classes.
– Mas está acessível, assim, na internet mesmo, em alguma revista?
– Não, publiquei ele no CMI.
– O que é CMI? Ah, sim, que besteira. O CMI. Sim, sim, o CMI. Como é que eu vou me esquecer disso.
– Pois é. Tá lá.
– Mas me diga uma coisa: não é você que tem um site, acho que é Passa Palavra, não é? É você que tem esse site?
– Não, rapaz, eu não tenho um site, eu escrevo para lá de vez em quando. Tem mais gente escrevendo para lá.
– E foi você quem escreveu sobre aquela manifestação no Elevador Lacerda?
– Não, não, foi outro cara. Tem mais gente escrevendo para o site.
– E você escreve sobre o quê lá?
– Putz, já escrevi sobre tanta coisa… Transporte, história da esquerda, migrações forçadas africanas, Fórum Social Mundial, dia do trabalhador…
– Ah, tá, legal.
Seguimos conversando sobre outros assuntos, e enquanto S. anotava meus contatos sobre um exemplar de O novo espírito do capitalismo de Luc Boltanski, duas outras pessoas interessadas na atividade perguntavam se eu não tinha mestrado e se não seria interessante trazer algum arquiteto da UFBA, de preferência Ana Fernandes. Nos agendamos para o dia 9 de novembro, às 19h. Não resisti, mesmo conhecendo de antemão a resposta, e perguntei:
– Mas a gente vai fazer a atividade aqui na praça mesmo, não é? Porque senão não tem sentido.
– Cara, a gente pode fazer também na UFBA, na biblioteca.
– Mas como é que uma atividade feita pra trazer gente para o acampamento é feita fora dele?
– Repara, eu posso trazer um sonzinho que eu tenho lá em casa, microfone, isso ajuda, mas se chover a gente tem que ver outro lugar, senão atrapalha tudo.
– Tá, então tá. Vamos ver aí.
Já passava das 23h. Fui-me embora, antes que os ônibus parassem de circular. Ao chegar em casa, conversei com minha companheira sobre esta visita. Ela – que não tem nada de “militante” e é muito mais cética quanto à capacidade de influência de certas mobilizações – me disse secamente:
– Já vi tudo. Não vai dar em nada. Fosse na frente da Prefeitura, fosse no Iguatemi, fosse em algum lugar que incomodasse mesmo, aí até que tinha chance. Mas em Ondina? Na praça da lanchonete? Garanto que quando fizer frio mesmo volta todo mundo pra casa!
– Calma aí, calma aí. Não jogue fora o bebê com a água do banho. Já passei por umas piores, você sabe bem disso, e no final deu quase tudo certo.
– Sei não. Se for que nem você disse, pra chamar gente pra discutir, pra debater, pra conversar, pra pensar alguma coisa, pra tentar fazer o que quer que seja, eles escolheram o pior lugar. Não vai dar em nada.
Fomos dormir. Mas a visita me deixou, de certa forma, incomodado. Era preciso voltar lá para ver se eu não estava sendo ranzinza demais, exigente demais, casca grossa demais. Tentar entender melhor a dinâmica do acampamento antes de fechar qualquer ideia sobre ele. “Volto lá outro dia”, pensei, enquanto o sono chegava.
Na manhã do dia 7, ainda com este pensamento, me surpreendi enquanto acessava o Facebook: Vladimir Safatle estaria na praça de Ondina às 19h para um debate articulado pelos acampantes. “Bom”, pensei, “parece que as coisas engataram. Conseguiram trazer um cara de São Paulo para debater aqui. Devem estar buscando outros contatos, mais articulações etc. Vou lá”.
Antes de ir, como é inevitável, fui trabalhar, e depois participar de um debate na UFBA para o qual havia sido convidado há alguns meses, sobre a experiência da advocacia popular. Ao terminar, avisei do debate. Reação generalizada: “Hein? Vladimir Safatle por aqui? Onde, que ninguém sabe?” Mau sinal. Arrumei uma carona; no caminho, começou a chover de novo. Ai, ai, ai… Será o bené? Será que o debate vai junto com a enxurrada?
Cheguei novamente à praça da lanchonete. Como, mais uma vez, não havia tido tempo para almoçar, parei para lanchar. Ao lado da lanchonete, um pequeno toldo abrigava uma moquequinha de gente. Será que haviam transferido o debate para algum lugar da UFBA, mais uma vez? Andar da praça da lanchonete até a UFBA debaixo de chuva não ia ser nada interessante para a saúde de ninguém. Terminei de lanchar e fui chegando. Deviam ser umas 19h30min.
– É aqui que vai rolar o debate com Vladimir Safatle?
– Sim, sim, é aqui mesmo, é daqui a pouco. O cara chega daqui a pouco.
Tá bom. Esperar, então. Me encolhi debaixo do toldo enquanto uma discussão quente rolava. Parecia que alguém estava acessando o blog do acampamento para dizer que o PSOL estava por trás de tudo.
– Porra, não tá vendo que o cara tá só de sacanagem? Isso não cola não!
– Sim, mas veja só, quem é que está cuidando do blog?
– Tem G., R., X. e A. alimentando, mas X. não veio hoje.
– E o blog é aberto? Porque se a coisa fica presa na moderação dá problema, porque a pessoa vai depois dizer que a gente está censurando.
– É, hoje eu mesmo fui responder a esse cara anônimo, mas o comentário dele foi aprovado e o meu ficou preso!
– Pois é, tem que ter alguém pra responder a esse cara.
– Não é melhor deixar o blog com comentários abertos?
– Sim, sim, talvez seja melhor isso.
– Mas tem que responder a esse cara logo, rapaz, senão dá a impressão de que tem gente de partido aqui mesmo!
– O cara ainda usa um pseudônimo “negrojóia”, veja só! Eu não preciso ficar dizendo que eu sou “jóia” pra ninguém! Aí tem os albinos, os caras são minoria, sofrem um puta preconceito! Quer ser “negro jóia”, meu irmão? Volta pra África!
Arrepio. Mas deixa quieto, deve ser o estresse. Logo encontrei R., a quem fui perguntar sobre nossa atividade marcada para o dia 9. Do dia 2 para cá, apesar de ter deixado meus contatos, não recebi informação nenhuma, nem mesmo de S., a quem R. me havia apresentado. Perguntei:
– E aí, R., tudo confirmado para o dia 9?
– Rapaz, não, deu problema. Tem uma outra atividade pra acontecer no dia 9, S. e outras pessoas vão estar ocupadas, então a gente precisa ver outra data.
Como o Safatle já estava chegando, ficamos de acertar a data depois do debate. Àquela altura as vinte e poucas pessoas já eram quase trinta, e a chuva prometia apertar. Fomos nos apertando sob o toldo, e o debate começou. Ao que me pareceu, graças à wifi zone da lanchonete, foi possível aos acampantes não apenas gravá-lo em suas quatro ou cinco câmeras, mas transmiti-lo ao vivo pela internet. (O debate está publicado no blog do acampamento, então não será preciso relatá-lo.)
Durante o debate, algumas coisas chamaram minha atenção. Em primeiro lugar, um homem embriagado, dizendo-se artista de rua, entrou sob o toldo instantes após minha chegada. Uma moça repeliu-o:
– Você está fedendo a cachaça, e eu não gosto disso.
– Ei, mais veija só, er, todu mundu que é daij ruaij aqui tá bêbo, mia fia, cê quiria u quê? A gent’bébi mermo…
– É, mas eu não gosto.
Tudo bem, direito dela não gostar. O homem afastou-se um pouco, depois voltou e sentou-se num dos bancos da praça, ao lado de um professor de Economia da UFBA que chegara pouco após o início do debate. Encostou a cabeça no ombro dele e começou a cochilar. O professor ia saindo de banda, caindo para o lado para ver se o homem largava, mas ele continuava a dormir. Até que acordou, disse duas coisas ao professor, abraçou-o e cochilou novamente em seu ombro. O professor saiu do lugar, ele acordou de vez e levantou-se. Tentou dizer algumas coisas durante o debate, mas mesmo quando sua fala incoerente tinha algum nexo com aquilo que se debatia via-se afogado por um mar de “shhhhhhhhhh!”
Em segundo lugar, as tensões ficaram evidentes durante o debate. Três semanas sob chuva e vento – para os pouquíssimos que permanecem na praça – cobravam seu preço. Um homem insistia a todo o tempo que “vocês precisam ler ‘Abandone o Ativismo’, do Reclaim the Streets, é um clássico”; para ele, “isto aqui não é movimento, eu odeio essa coisa de chamar tudo de ‘movimento’”, mas ao mesmo tempo “isto aqui precisa ser é o ‘movimento do etcétera’, o movimento dos loucos, das putas…” Bastante incisivo em suas colocações, quase como se estivesse profundamente irritado sabe-se lá por quais motivos com o próprio acampamento, chegou a quase impedir no grito que uma moça falasse porque “está distorcendo o que eu disse”. Enquanto ele falava, reprovações espocavam:
– Deixe suas idiossincrasias pra depois!
– Isso é coisa interna, vamos focar no debate!
– Cara, deixa isso quieto, agora não é hora de ficar fazendo provocação!
Essas “coisas internas” devem estar quentes, a esta altura. G., antes de me ver enquanto eu chegava, desabafava como que para terminar uma conversa: “eu não aguento mais tanta cobrança!” Tive ainda mais esta impressão ao conversar com R. após o fim do debate. Doente, voltaria para casa:
– É, rapaz, esse negócio de pegar tanto vento, depois sol, depois chuva, estou é ficando doente. Hoje eu volto pra casa. Vou aproveitar para entrar em contato com pessoas de outras ocupações aí pra ter umas ideias.
Ele conseguiu uma carona para nós. Ainda no carro, enquanto discutiam o que fazer no dia 11, as “coisas internas” ficavam semi-expostas, tantas que nem consegui registrar. O fato é que há descontentamento com o lugar escolhido, com posturas de certas pessoas, com certos becos sem saída em que o acampamento está entrando. Há uma grande esperança que tudo ficará bem depois do dia 11, mas nada é certo. Há a promessa de articulação com outros grupos e pessoas, e isto promete dar novo gás às atividades. Vejamos, então, o que acontecerá.
Som do roque, perguntou se pode ser nessa sexta? pra confirmar tambem com os outros. Perdi seu contato, por isso não mandei na epoca. E só conversamos no dia de Safatle. Na proxima encaminho para a assembleia ao inves de falar só com o grupo de comunicação e ação direta. apesar de serem poucos, né
Quando vi o tamanho do artigo pensei: “pqp, por que o Manolo sempre escreve tanto?” rs. Mas comecei a ler e ficou um relato bem interessante e gostoso de ler.
Bem, mas abri esse comentário para injetar um pouco de intelectualismo. Sobre o fenômeno das acampadas, pego o pensamento de Jean Baudrillard em torno de 1970.
Para ele a mass-mediatização “não é um conjunto de técnicas de difusão de imagens, mas sim a imposição de modelos”. Tomando como exemplo o Maio de 68, Baudrillard afirmava que a repercussão dos acontecimentos através da mídia, a sua difusão na “universalidade abstrata da opinião pública”, impôs-lhe “um desenvolvimento repentino e desmedido” e, através desta extensão “forçada” e “antecipada”, despojou “o movimento original do seu ritmo próprio e do seu sentido”. Isso porque a mídia manteve sua forma (apesar dos conteúdos), e é essa forma, independente do contexto, que a tornaria solidária do sistema de poder. A transgressão e a subversão, segundo ele, não passariam pela mídia sem serem sutilmente negadas enquanto tais, sendo “transformadas em modelos, neutralizadas em signos” e assim esvaziadas do seu sentido.
Um exemplo seria encontrado em Maio de 68, para ele: “A [greve geral] de Maio de 68, para a qual os media contribuíram grandemente, exportando a greve para todos os cantos da França, foi aparentemente o ponto culminante da crise; na realidade, foi o momento da sua descompressão, da sua asfixia por extensão, da sua derrota. É certo que milhões de operários entraram em greve, mas não souberam o que fazer desta greve mediatizada transmitida e recebida como modelo de ação (quer pela mídia quer pelos sindicatos). Abstrata em certo sentido, ela neutralizou as formas de ação local, transversais, espontâneas (nem todas). Os acordos de Grenelle não a traíram. Sancionaram essa passagem à generalidade da ação política, que põe fim à singularidade da ação revolucionária”.
As citações se encontram no livro do autor, chamado “Para Uma Crítica da Economia Política do Signo”.
A propósito, eu já sabia que 19°C era frio no Rio, mas não sabia ainda que 21°C era frio em Salvador. To me sentindo morando no pólo sul.
Sobre o texto “clássico” “Abandone o Ativismo”(e me acho bastante culpado pra bem ou pra mal de ele ter se tornado “clássico” em alguns meios brasileiros), seria bom as pessoas conhecerem também um belo artigo em resposta escrito na época por J. Kellstadt: “The Necessity and Impossibility of Anti-Activism” .
Se algum dos dois textos deve ser levado ao pé da letra, certamente é a resposta dada por Kellstadt.
Como acho que não há tradução desse texto ao português, colocarei abaixo algumas das argumentações principais do autor.
Ele aponta que abandonar o ativismo é ao mesmo tempo uma necessidade e uma impossibilidade (como diz o título). Impossibilidade de, simplesmente pelo desejo e vontade do indivíduo, extinguir uma categoria social. Kellstadt lembra que o “papel” de ativista não é simplesmente “auto-imposto”, mas também “socialmente imposto”. A subjetividade ativista e os papéis sociais são fundados em relações sociais objetivas, de onde viria a impossibilidade de “abandonar o ativismo”. Kellstadt propõe então que se abrace simultaneamente a necessidade (posta em “Abandone o Ativismo”) e a impossibilidade de “abandonar o ativismo”, e com um alto grau de ambivalência e habilidade para viver a tensão dessa contradição aparentemente irreconciliável. Abraçar essa impossibilidade uma vez que, a “utopia positiva”, o modo de vida, o estilo de vida, poderia ser revolucionário como demanda e como tensão. Para ele, o projeto de “viver diferentemente” não deveria ser simplesmente descartado e posto de lado como impossível “até que venha a revolução”, mas deveria ser vivido como em tensão, aceitando a impossibilidade funcional de realiza-lo com sucesso no presente, e tentando realiza-lo da forma mais prefigurativa.
O frio daqui é mais pelos fortes ventos e umidade do mar. o salitre tb é outro mal que corroi tudo em questão de dias. Em compensação o ar fica menos poluído na orla.
Abandone o ativismo, grito de um integrante do EVENTO massa critica é mais um convite de Vamos nos abandonar, a festa, ao carnaval!
Leo, você deixou passar a única oportunidade de redimir-se de seu papel de tradutore traditore ao não dar um link para o outro artigo que você falou, por sinal tão “clássico” quanto o “clássico” do Andrew X.. É este aqui: http://libcom.org/library/anti-activism .
Manolo, parabéns pelo relato. Foi interessante perceber como algumas coisas são endêmicas desse fenômeno da acampada, seja onde estiver. Aqui em Sampa estou acompanhando de longe, mas o problema com local e com foco político do acampamento se repetem; assim como os problemas com pessoas em situação de rua. Porém, no centro de São Paulo, são milhares de pedintes e não apenas um bebado que dorme no ombro de um professor. Cracolândia, menores de rua, situação tensa… Enfim, a experiência aqui tá sendo bem mais “hard” do que aí, o pessoal teve um intensivão de como é o dia-a-dia da população de rua.
A contribuição do Léo Vinícius ao citar Baudrillard traz elementos pra uma boa perspectiva de análise 2011 do campo autonomista(tenho total receio de usar esse termo, “campo). Leo complementa e aprofunda o seguinte trecho escrito por Manolo:
“Estava na verdade entre muitos – ou poucos – Mickeys, os Mickeys de Fantasia, angustiados por haver perdido completamente o controle do feitiço lançado enquanto agitavam desesperadamente suas varinhas no ar antes que tudo piorasse.”
Pra mim parece que essa comparação dos “Mickeys” serve pra nós, geração de 2001. Naquela época havia um núcleo duro com um foco e estratégias mais claras (AGP), mas mesmo assim não deixamos de perder o controle do feitiço. E a frustração decorrente dessa perca de controle não nos preparou pra passar a experiência às novas gerações. Agora temos que testemunhar os mesmos erros, mas piorados, nessas acampadas. vale citar a série de artigos escritos por Felipe Corrêa sobre a AGP.
Tanto nós quanto os acampantes não soubemos lidar com um movimento que cresce artificialmente bombado pela mídia.
Leo, acho que até no prórpio “abandone o ativismo” também há, no final, esta noção de necessidade e também impossibilidade da formulação título, uma vez que ele conclui ser necessário quebrar com o ativsmo “até a proporção em que for possível”:
“O ativismo é uma forma em parte imposta sobre nós pela fraqueza. Como a ação conjunta levada pelo Reclaim the Streets e os portuários de Liverpool, nos encontramos em tempos em que a política radical é muitas vezes produto de fraqueza mútua e isolamento. Se for este o caso, pode ser que não esteja sequer dentro do nosso poder romper com o papel dos ativistas. Pode ser que, em tempos de diminuição da luta, aqueles que continuarem a trabalhar pela revolução social fiquem marginalizados e passem a ser vistos (e vejam a si próprios) como um grupo social separado das pessoas. Pode ser que isso só seja possível de ser corrigido por um generalizado ressurgir da luta, quando não seremos mais pessoas esquisitas e loucas, parecendo simplesmente estar carregando o que se encontra na cabeça de todos. No entanto, para trabalhar no sentido de aumentar a luta, será necessário quebrar com o papel de ativista até a proporção que for possível, para constantemente tentar empurrar as fronteiras das nossas limitações e constrangimentos. “
É verdade Júlio, eu não lembrava dessa parte.
Excelente texto, Manolo, tanto pelo conteúdo quanto pelo estilo ágil, de cronista. Também estive na ocupação de Salvador em três oportunidades pra tentar compreender do que se trata e ver se podia ajudar, e minha experiência foi exatamente o que você relatou: na primeira vez que cheguei, veio logo conversar comigo a única pessoa que conhecia virtualmente, o mesmo R. que você cita, que me disse textualmente: “é, eu tô tendo que assumir a liderança porque você sabe como é, o pessoal aqui fica com esse discurso de horizontalidade mas na prática precisa de alguém pra organizar as coisas, o pessoal não tem experiência, então eu que tô organizando tudo por aqui.” Mal começo, pensei. Perguntei então pelo Movimento Exu Tranca-Ruas, que tinha visto no facebook que apoiava a ocupação, e recebi como resposta: “O Exu-Trancas Ruas sou eu”. Na assembléia, também esvaziada, fiquei esperando o momento de me apresentar coletivamente e ninguém se deu ao trabalho de querer saber quem eu era, não tentaram me contextualizar, não pediram minha opinião ou saber em que eu poderia ajudar. O clima estava extremamente tenso, com discussões fortes sobre a dinâmica de funcionamento do acampamento. Não foi uma boa primeira impressão, mas ainda assim voltei dias depois, pensando que podia ter sido azar, e o mesmo se repetiu. Me parece bem simbólico da falta de vontade de dialogar o fato de que ontem, Dia da Consciência Negra, quando tradicionalmente há um grande ato no centro da cidade, eles preferiram organizar o desfile de um tal “bloco da privada” na orla, pra protestar contra a privatização do carnaval… A impressão que me dá é que, na falta de uma razão pra estarem ali, estão desesperadamente “catando” pautas… Sinceramente, essa ocupação de Salvador está tão caricata que não sei até que ponto serve pra avaliar o movimento global de acampadas, que pelo que ando lendo, parece um pouco mais séria e promissora em outros lugares.
Vamos ver, henrique, antes de dar uma de belchior..