O Zona Crítica acabou fazendo parte de um processo de questionamento. Não era só a temática urbana que provocava um debate, mas, a partir desta temática, você discutir a estratégia do movimento, a nossa relação com o governo, as lutas que nós vinhamos priorizando e as lutas que ficavam para segundo plano. Por Nina Fideles e João Campos entrevistados pelo Passa Palavra

O Passa Palavra entrevistou dois dos produtores do documentário Zona Crítica, vídeo realizado em 2008 pelo coletivo Proletas da Quebrada, baseado nos conteúdos propostos pelo curso de Teorias Sociais e produção do Conhecimento, uma parceria entre a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Nesta entrevista, João Campos e Nina Fideles comentam sobre o processo e o contexto em que foi produzido o material, que tinha como objetivo fomentar uma discussão sobre a questão urbana no âmbito dos movimentos sociais, especialmente dentro do MST. De acordo com eles, além de discutir uma suposta tendência de urbanização total da sociedade, o vídeo representa uma tentativa de socializar a producão de conhecimentos que geralmente fica restrita aos espaços acadêmicos.

entrevista_21Passa Palavra (PP): Como surgiu a ideia de fazer o vídeo Zona Crítica e como foi o seu processo de criação?

João Campos (JC): Eu, a Nina e o Jesus estávamos militando no MST, na época, e fazíamos um curso no Rio de Janeiro, na UFRJ, em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes, chamado “Teorias sociais e produção do conhecimento”, e o curso exigia uma monografia final. Nós três estávamos trabalhando, a princípio, individualmente, com temas individuais, mas sugerimos e bancamos [responsabilizámo-nos por] a proposta de fazer o trabalho coletivamente e em formato de vídeo – o que não é um lugar-comum pra Universidade. Então a gente enfrentou alguns problemas com isso. Os temas, o Jesus tinha um, a Nina tinha outro, eu tinha outro, mas que dialogavam com a questão urbana. Ao juntar os três temas e ao se debruçar sobre eles – claro, com orientação e uma pequena pesquisa que a gente começou a fazer – a gente mergulhou no tema do urbano mesmo, de explicar como que o capitalismo tinha necessitado da forma urbana para se solidificar em todos os póros do planeta e o quanto era importante fazer esse debate para dentro do MST, que carregava e ainda carrega alguns limites em relação à cidade por ser um movimento que nasceu no campo, apesar de ter uma atuação na cidade; não é que não tem, mas que tem limites.

Nina Fideles (NF): A gente entendia que o urbano era um tema, talvez, pouco tratado, no mesmo passo em que havia uma ação direta na sociedade. Então, a gente entendeu que era necessário comentar, instigar, provocar esse debate com embasamento, não somente a partir de uma experiência ou experiências, mas a partir de um estudo, de inquietações que são diretamente relacionados ao urbano, instigadas pelo curso.

PP: Qual a importância e a eficiência da utilização de vídeos no cotidiano dos movimentos sociais e em que espaços ele foi apresentado?

entrevista_11NF: Nos últimos três, quatro anos, talvez, ou até mais, os movimentos sociais, e eu posso dizer enquanto MST na época, investiram bastante em produções audiovisuais, considerando uma linguagem rápida, considerando também, em paralelo a isso, um incentivo de projetos de políticas públicas de cinema itinerante. Então, com essa facilidade, se investiu muito em propostas de vídeo que estimulassem o debate. Obviamente, assim como um texto, ou qualquer coisa que a gente produza, ele parte de um objetivo. No nosso caso, acho que foi um objetivo mais de estudo, ele é um filme mais denso, digamos. A gente tinha a ideia, sim, de extrapolar faculdade e paredes, mas a linguagem é de estudo. A gente conversa com muitos cientistas, digamos. Mas eu acho que tem se investido muito, ainda tem se investido muito, pra conseguir levar o debate aonde ele talvez não chegue. O audiovisual chega. As pessoas apreendem mais, eu acredito. Falo até por mim, que me utilizo bastante da ferramenta audiovisual pra aprender, pra estudar. A coisa do texto, né [não é?], a gente está num país em que, infelizmente, a maior parte é analfabeta ou analfabeta funcional, então eu acho que o vídeo é uma linguagem que consegue atingir. Acho muito importante que não sejam só filmes hollywoodianos ou filmes que não falam da gente; que a gente consiga, cada vez mais, estimular que produtores, produtoras, coletivos, movimentos utilizem mais esta ferramenta da melhor forma possível. E que consigam distribuir, o que é um gargalo. A produção, ficou mais fácil o acesso… hoje é muito mais fácil ter uma máquina que filma, faz-se pelo celular, mas um dos gargalos é a distribuição; a gente não consegue distribuir o que produz. Então eu acho que é pensar o processo em sua totalidade: discussão, produção coletiva e uma distribuição.

JC: Eu acho que tem um outro aspecto aí também, que dialoga com outras questões, que é o seguinte. O Zona Crítica também acabou fazendo parte de um processo – que vinha, e que vem ainda, dentro dessa chamada esquerda social – de questionamento: a relação, a estratégia. Não era só a temática urbana que provocava um debate, mas, a partir desta temática, você discutir a estratégia do movimento, a nossa relação com o governo, as lutas que nós vinhamos priorizando e as lutas que ficavam para segundo plano. Então, nesse sentido, o vídeo acabou dialogando muito com uma parte da militância do MST e de outros grupos, outras organizações, que estavam nessa toada de questionar. Engraçado que a temática urbana acaba aglutinando uma militância que está insatisfeita, estava insatisfeita, né, não só por este tema, mas por outros também. O Zona Crítica acabou cumprindo bastante este papel, dialogando com uma militância que… Porque o próprio curso que a gente fez, e que deu no filme, ele já continha uma discussão interna terrível, pesada. Então, ele serve um pouco pra trazer sistematizado quais eram estas grandes questões: como enxergar a questão campo-cidade, como enxergar o tal sujeito histórico revolucionário, o proletário, o que que é lumpem, o que é classe trabalhadora, as formas de organização, ou seja, organizações de quadro, organizações de massa. Todas estas questões estavam no curso, estavam no debate interno latente das organizações e estão no filme. Então, aonde a gente foi debater isso, isso apareceu. Ele ajudou a trazer estas questões…

NF: Tem dois pontos que não estão, digamos, diretamente relacionados com o filme, mas com o bancar de fazer daquela forma, que é essa coisa de produção individual, essa coisa de elaborar teoria – não é uma tese o filme -, mas eu digo, assim, estudar sempre individualmente, e a gente bancou de fazer em três. E a outra questão é a de fazer uma coisa de estudo num vídeo, que muita gente, inclusive, não acreditou: “não, vídeo é coisa de videomaker, né, de sacar uma câmera, com uma ideia na cabeça e virar aquilo”. Não, a gente se aprofundou em roteiro [guião], se aprofundou em estudo pra fazer um vídeo. São duas provocações também… E uma coisa que me incomoda muito é justamente essa coisa da produção, de que é individual, monografia é você sozinho, é você que criou aquilo. E não é, mesmo que esteja lá o seu nome, é uma coisa sempre coletiva; qualquer produção intelectual eu acho que é coletiva.

campo_cidadePP: E o vídeo foi e está sendo levado aonde, foi só no MST ou também fora dele?

JC: A gente ainda está levando, sexta-feira mesmo fizemos uma apresentação super interessante numa faculdade. É sempre um desafio, pra gente, levar o vídeo pra fora da militância, vamos dizer assim, pra fora desse mundo da militância, que tem o seu próprio linguajar, que tem os seus próprios códigos. Claro que tem um diferença enorme a gente apresentar ele pra meios da própria militância, como, por exemplo, quando a gente ia apresentar nos cursos de base do movimento. A gente apresentou, e aí se desafiava a não somente passar o vídeo, mas a criar uma metodologia de ir descobrindo o filme, de ir trabalhando…

NF: Trabalhando conceitos, porque ele é muito conceitual; então, assim, de esmiuçar o conceito, de não aceitar o conceito como ele nos é dado. Então, isso você desconstrói e constrói o tempo todo, principalmente conceitos, dentro da militância. A gente está acostumado a jargões. Então, pegar aqueles conceitos que são dados como uma coisa e transformá-los em outras, não induzindo, mas provocando o debate, é também o desafio do filme.

JC: Eu, particularmente, acho que a gente não fez nem metade, nem começou um trabalho de levar o filme ou divulgar. O filme ficou pronto no final de 2008. Nestes primeiros anos, enquanto a gente ainda militava no movimento, ele teve um certo espaço, sim: alguns cursos, algumas pessoas têm ajudado. As pessoas tentaram cavar outros espaços pra gente levar o vídeo, mas, infelizmente, quanto mais o tempo passar, mais o filme vai ficar com os seus temas relevantes. A gente acredita que muita gente ainda vai ver e muita gente vai querer debater o filme. A gente vê necessidade de criar metodologias, criar formas de dialogar com quem está pra fora desse mundo da militância também, que é o desafio mais difícil, eu acho. Sexta-feira a gente teve uma experiência muito rica nesse sentido, lá numa faculdade Anhaguera, com um turma de Direito, numa faculdade particular, ou seja, um pessoal que tem outra “pegada”, né, trabalhador e tal, nem na faculdade eles são familiarizados a temas… Então, quando você solta um rastilho lá, o debate vai. É um caminho, e a gente ainda vai ter que trilhar muito, e até fazer outros.

PP: O título do vídeo é Zona Crítica, um termo que, conforme é definido em uma passagem, exprime uma tendência que, em seu auge, levará a uma urbanização total. De alguma maneira, vocês já falaram sobre isso, mas o que motivou fazer um vídeo com esta temática, dentro de um movimento originariamente do campo? Como conciliar isso dentro do movimento?

NF: Na verdade, era uma inquietação a gente observar que existe uma militância muito grande que é originária do estilo urbano, vamos dizer assim, nasceu e cresceu no urbano, só que encontrou seu lugar de militância num movimento do campo. A questão, que eu acho que pega, é que não há essa separação. Na verdade é terra, o uso que se dá a ela é o que diferencia o que é agrário e o que é urbano. A Ermínia Maricatto questiona isso, e isso naquela época, né? Há uma discussão de fato: o que que é urbano, o que que é agrário? Não são espaços bem definidos. O que a gente entende é que no espaço urbano há uma concentração maior de tudo, ou seja, de mercadoria, e para o capitalismo isso é fundamental. Por isso que o Lefebvre, em 70, falava que se a tendência for esta, acumulação, acumulação, acumulação, a tendência é ter o uso da terra, num sentido urbano, em todos os lugares. A provocação é uma inquietação; a gente vê que tem experiências e que não há divisão do que as pessoas colocam como bem definidas. Se criam movimentos para fazer uma atuação especificamente urbana, quando, na verdade, se a gente for no cerne da questão, discutir terra e o uso que se faz dela, discutir a legislação que a contempla e tudo que está relacionado, a gente resolve as duas questões…

JC: E não é à toa [por acaso] que isso não era um problema teórico: a gente tinha experiências concretas em andamento – ainda tem, ainda existem, não é porque a gente saiu [do MST] que elas não existem mais – que se colocavam como sem terra no urbano, no cenário urbano. O que a gente está discutindo é terra, a forma de produzir, de dividir, de criar riquezas em cima dela. Então não era só uma abstração nossa, um problema teórico, que a gente, dentro de um quarto, ficava “ó, temos campo e cidade”; a gente vivenciava e continua vivenciando esta questão. Eu acho que o que dá pra você diferenciar hoje no nosso cenário é assim: tem vazios demográficos, no Brasil ainda tem vazios demográficos, onde a principal atividade é a agrícola, mas, mesmo assim, a atividade agrícola ajudando a transformar mais vazios, cada vez numa referência a um tipo de agricultura dos Estados Unidos, dos cinturões, onde só tem máquina, um lugar que não é pra se viver, é pra se plantar; e concentrações enormes de pessoas perto do litoral e em outros lugares que estão se expandindo agora… proletarizados; você só tem a sua força de trabalho pra vender, seja na plantação de cana, seja na fábrica, seja como motorista de ônibus, seja como qualquer coisa… Claro, tem outras regiões do Brasil em que você vai identificar vazios demográficos que ainda não foram completamente urbanizados, mas que, logo mais, seja via agronegócio, seja via especulação imobiliária, ou os dois atuando cada vez mais juntos, vão passar pelos mesmos processos que as outras passaram. Aquelas terras vão demandadas ou para a produção ou para alguma forma de exploração, que vai transformar totalmente esses vazios em outra coisa.

NF: Outro ponto desta questão agrário-urbana era a gente se esbarrar no dia a dia em certos preconceitos, também, que existem de entender o trabalhador da cidade – eu digo da população mais pobre da cidade, favelas e comunidades carentes. Ali tem muita gente sofrendo exploração, sofrendo as mesmas coisas que muitos camponeses, e não se conhecendo. É uma coisa de se entender como algo igual, semelhante, atuando em diferentes frentes. Nesse preconceito a gente também se esbarrava e queria romper com isso. No Rio [de Janeiro] mesmo, a gente ia na [Favela da] Maré e algumas favelas próximas de onde a gente fazia o curso e observava que eram as mesmas angústias, os mesmo problemas, mas que eles não se identificam, não se reconhecem. Esse preconceito também é inverso, e, a gente atuando nesse limiar, atuando dentro do Movimento Sem Terra, e atuando com ações pontuais dentro da cidade, a gente observava que existia uma tentativa de separar essas coisas. A mídia cria pra população urbana, que forma sua opinião mais baseada na televisão e nos grandes meios, a imagem de que sem terra é baderneiro [desordeiro], é gente que não sabe plantar… Isso também pega, não só no uso da terra, mas na figura que sobrevive e produz nesta terra. Então, era tentar desconstruir todos esses preconceitos.

entrevista_3PP: Fazendo um gancho com o que vocês acabaram de falar, numa das partes do vídeo, o professor Mauro Iasi observa que, diferentemente do que se verificava até o início dos anos 80, atualmente os vários setores da classe trabalhadora têm enorme dificuldade de se “aglutinar politicamente” em torno de um mesmo projeto. Paralelamente, o vídeo mostra como as relações entre o mundo urbano e o mundo rural são continuamente modificadas conforme as necessidades do processo de acumulação capitalista. Considerando hoje o significativo quadro de crescimento sócio-econômico brasileiro dos últimos anos especificamente, o que inclui o crescimento do agronegócio, e em que assistimos a uma queda percentual da população rural em comparação ao crescente contingente das periferias das grandes cidades, e com base nas experiências militantes de vocês, como os movimentos sociais têm reagido a estas tranformações conjunturais mais recentes, no sentido de articular setores de classe ultimamente tão dispersos?

JC: A gente vive um capitalismo desenvolvido no Brasil, isso é um primeiro ponto. Porque senão fica parecendo que tudo é culpa da esquerda e ignorar que a gente vive hoje uma hegemonia dos caras, que estão por cima da carne seca; não é só uma questão de vontade de lutar contra isso. Realmente, nós percebemos que, hoje, os movimentos, os partidos, as organizações, enfim, que se colocam num horizonte de transformação estão meio sem respostas. Por isso até que, às vezes, a primeira reação é “ó, vamos fazer o nosso feijão com arroz [dia-a-dia] aqui, manter as nossas pequenas forças pra continuar vivo”, enquanto organização mesmo, porque não é fácil. E, de fato, as contradições que o capitalismo traz hoje exigem uma resposta, tanto no campo quanto na cidade, que os movimentos não têm ainda. A gente vê hoje… pra parar de falar do agrário, como se o problema fosse o MST no campo. Não! Na cidade mesmo a gente não consegue, não tem movimentos articulados, com força, com clareza do cenário que tem que enfrentar e com proposta que dialoguem realmente para solucionar problemas, ou mesmo para diminuir os prejuízos, né? A dinâmica da especulação imobiliária, isso que está acontecendo em Itaquera [região de São Paulo] garante mais 50 anos de acumulação, assim, absurda; 50 anos não é brincadeira, sabe? Garantia de que nada vai mudar… Pra melhor? Nada. Eu acho que tem pistas e a responsabilidade só aumenta, principalmente para estes grupos que estão se colocando numa postura de crítica à esquerda majoritária. Essa responsabilidade está aumentando, daqui pra frente, em trazer respostas mais objetivas, não só no campo do que eu acho, mas todas essas intuições nossas precisam se transformar em mobilização, em energia acumulada mesmo, posta em combate contra as forças do capital, que estão nadando de braçada, né? No campo do simbólico e do imaginário, então: vão ter os mega-eventos [campeonato mundial de futebol. etc.], todo um clima de “pra frente Brasil”, “Brasil potência”, que, de fato, coloca a esquerda brasileira numa situação muito difícil. Por isso que tem que ter uma certa responsabilidade ao criticar e tal. Não que a crítica não deva ser feita, mas saber que esta crítica te joga uma responsabilidade grande, porque está todo o mundo querendo saber como é que na cidade nós vamos organizar contra a máfia do André Sanchez, se não for, inclusive, da mesma forma que eles. Vamos formar o quê, milícias populares? Qual que é, entendeu? Se não é no campo institucional (a gente está falando que o campo institucional é completamente vendido), então é onde, de que forma? São perguntas minhas, que estão aí. Hoje você nota uma série de iniciativas pequenas, muitas, muitas, muitas… vão ser aí o que vai trazer alguma pista de aonde a gente deve ir.

entrevista_4NF: Vai sair das experiências, não vai ser nada elaborado num grupo de estudo ou outra coisa; as experiências vão dar alguns sinais, não é nem respostas. E mais difícil é, pegando o exemplo de Itaquera, é fazer com que aquela condição, aquela dor, transcenda a dor individual, que as pessoas de Itaquera entendam que aquilo ali está acontencendo em outros lugares de São Paulo, em outros lugares do Brasil, em outros lugares do mundo. E isso é difícil. Não é culpabilizando o indivíduo nem nada, é o processo. A pessoa se mobiliza, num primeiro momento, porque ela está sofrendo, é assim que se movimenta, é a sobrevivência que faz a pessoa correr, entrar numa organização, se mobilizar. No caso de Itaquera, existe de parte das próprias famílias que passam por isso uma certa resistência. Estou pegando como exemplo, mas isso acontece, porque há uma desconfiança, “o que que pode acontecer”, a mídia a todo momento trabalhando que quem se mobiliza está errado. Então, fazer com que isso transcenda a dor individual e se torne coletiva é o desafio maior.

PP: Embora vocês já tenham dado pistas, não custa perguntar. O que o coletivo que fez o vídeo tem feito, tem algum projeto, está atuando de que forma?

JC: O processo foi tão bruto nestes últimos anos [risos] que a gente tem tido dificuldade de se organizar enquanto coletivo. A partir do ano passado que eu e a Nina voltamos a fazer debates com o vídeo, a pensar outras coisas. Então, a gente tem feito coisas que dialogam e tal, mas não aquela ideia original de a gente ter uma produtorazinha. Pretendemos…

NF: É, pretendemos… [risos]

JC: Algumas experiências, mas não dá pra dizer “nossa, como estamos empenhados”. Estamos caçando aí…

NF: Os processos são brutos, não é? Você vai passando… No ano passado a gente voltou a apresentar, a discutir, a se provocar a criar uma metodologia para produzir também; porque, para produzir Zona Crítica, a gente foi religiosamente uma vez por semana se encontrando, estudando, viajando, fazendo entrevistas, enfim. A gente criou durante seis, sete meses uma dinâmica. Então, para a gente conseguir se estabelecer de novo… cada um individualmente tem seus trampos [trabalhos, problemas]… Enquanto coletivo, conseguir se organizar novamente com esta dinâmica, a gente quer, mas talvez não seja agora. E ainda bem que o tema Zona Crítica continua bem atual, então tem bastante coisa pra fazer com ele: estão se abrindo novos espaços, a gente está aproveitando, indo lá, debatendo e vamo-que-vamo.

JC: Sexta-feira, um cara [tipo] lá da faculdade de Direito perguntou: “vocês são radicais, não sei o quê, e não propõem nada no vídeo”. Isso a gente ouve sempre, aliás. Eu falei “ó, o problema não é que a gente não está propondo, o Sarkozy está com dificuldade de propor, o Obama está com dificuldade…” Ninguém sabe direito, tá foda! [está difícil] [risos] Justamente, se os vídeos, se a reflexão coletiva for uma forma de ir jogando [lançando] perguntas, vale mais uma pergunta bem feita neste momento do que uma afirmação leviana.

PP: Vocês tiveram alguma ajuda financeira para fazer o vídeo?

NF: A gente não precisou gastar muito, porque foi meio na garra, assim… A gente comprou uma camerazinha e o resto foi tudo na… A gente viajou uma vez para o Rio [de Janeiro] mas aproveitou tudo também, fizemos umas três entrevistas, batidão [rápido], final de semana. E muitas reuniões que eram lá em casa; então, de financeiro, não precisou gastar muito.

JC: Se fosse por na ponta do lápis, até que daria uma grana [dinheiro]: seis meses de reunião, idas e vindas… Se fosse escrever um projeto, daria pra pedir uma grana.

NF: Daí a gente fez o que chamou de internações, na ENFF [Escola Nacional Florestan Fernandes], que era ficar três, quatro dias seguidos trabalhando no material. Isso foi fundamental. Mas não haveria vídeo se não houvesse nossa intenção, nosso questionamento.

JC: Zona Crítica foi um belo exemplo de como essa crítica que agora vem à tona a gente tentava fazer internamente também, o quanto era tocado [abordado] neste debate da estratégia, do urbano, campo-cidade e tal dentro do movimento. Isso em 2008!

NF: A gente entendia, assim, que, se a proposta é fazer transformação, não dá pra discutir só uma parte disso…

JC: E não dá pra tentar dividir trabalhador como se um fosse mais puro que outro, porque a síntese da história do trabalhador de duzentos anos é a de um cara que veio do campo para a a cidade; ele é um pouco dos dois, no mundo inteiro. Tudo bem, pode ter, nessas gerações, o cara que ficou mais no campo, mais na cidade, só na rua, enfim. Agora, negar isso, que é a história do campo pra cidade, que é a história do capitalismo? O cara que nasceu na cidade hoje, ele teve alguém que veio do campo na família, entende? Não dá pra separar. Essa é a história da exploração, e você se identifica como trabalhador, não adianta.

NF: E novamente o conceito, né, porque a gente também queria fazer a provocação de discutir quem não está diretamente ligado à produção clássica. Como é que a gente vai discutir a quantidade de morador de rua que os grandes centros urbanos têm, e que é o capitalismo que produz? Como discutir e inserir essa população dentro da discussão de classe trabalhadora, de capitalismo e de luta social? O jovem, que não está inserido no mercado de trabalho, mas que é protagonista. Então, é incentivar o debate sobre todas essas coisas.

entrevista_6-1-copiaJC: Como discutir uma visão de classe, um projeto de classe, se há um abismo incrível entre um cara que ganha 300 reais a menos do que o outro? Essas escadinhas, meu [pá], sabe? Como é que você dá um projeto de classe pra todas estas pequenas frações sendo que é muito grande a diferença do cara que ganha 300 reais a mais do que o outro. Aquela fala do João Bernardo, “até onde vai a classe trabalhadora e onde começa o lumpen numa situação como a do Brasil”, me parece fundamental para se pensar uma estratégia de esquerda, mesmo que seja uma esquerda combalida, apanhando, tomando couro do capital, mas que também se a gente não acertar essas pontas, não saber como trabalhar e para onde ir, não adianta, vai ficar apanhando mesmo e aí já era [e aí acabou-se].

PP: Recentemente surgiu a carta dos 51 dos dissidentes do MST, do MTD e da Consulta. Daria para pensar que o Zona Crítica era algum tipo de anúncio desta crítica?

JC: Não, não era um anúncio. Pra mim, essa carta que saiu é muito mais resultado, do que esta expectativa que estão jogando nela de que ela está abrindo alguma coisa. Não, ela está fechando. Ela é resultado de todo um processo de debate interno que culminou na saída dessa militância. O Zona Crítica fez parte deste debate interno, isso sem dúvida. Agora, não necessariamente tem uma relação direta com a saída dos militantes. Mas, que esse debate vem sendo feito há muito tempo, e que essa carta é resultado desse debate…

NF: E a proposta do filme, na verdade, não é nem dar ponto final ao debate ou marcar uma posição definida, é instigar ainda mais o debate… é simplesmente, talvez, uma síntese do debate, de forma a estimulá-lo ainda mais. Porque a gente sempre entendeu que o debate, a crítica responsável, o respeito às opiniões eram fundamentais para que a gente conseguisse encontrar nas experiências alguns sinais de resposta pra aquilo que a gente estava se perguntando, e continua se perguntando. E, pra mim, não se encerrou, é um debate que ainda vai continuar.

Assista aqui ao documentário Zona Crítica, na íntegra.

1 COMENTÁRIO

  1. Interessante entrevista, e ótimo video, muito bom para engatilhar discussões e fazer formações políticas.
    Mas achei uma pena que os entrevistados não falassem mais sobre o impacto que tal tipo de discussão teve dentro do MST.
    Pois se essa discussão se deu nos próprios cursos de formação e estavam permeando os espaços internos do próprio movimento, podemos entender então que a saída do MST dos 3 autores do video (como está explícito na “Carta de saída das nossas organizações” dos 51) está intimamente relacionada com a derrota (momentânea ou permanente?)dento do MST deste projeto de vincular organicamente as lutas rurais com as urbanas, para além de atos conjuntos com centrais sindicais, partidos políticos e governos? Sendo mais clara, este projeto de luta urbana não teria mais espaço dentro do MST? Ou o movimento continua a fazer esse debate e, sobretudo, a pensar e realizar ações neste sentido?

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