Por Prof. Pablo Ortellado
Prezados colegas,
O que os senhores lerão abaixo é um relato em primeira pessoa de um docente que vivenciou os atos de violência que aconteram poucas horas atrás na cidade universitária (e que seguem, no momento em que lhes escrevo – acabo de escutar a explosão de uma bomba). Peço perdão pelo uso desta lista para esse propósito, mas tenho certeza que os senhores perceberão a gravidade do caso.
Hoje [9 de junho], as associações de funcionários, estudantes e professores haviam deliberado por uma manifestação em frente à reitoria. A manifestação, que eu presenciei, foi completamente pacífica. Depois, as organizações de funcionários e estudantes saíram em passeata para o portão 1 para repudiar a presença da polícia do campus. Embora a Adusp não tivesse aderido a essa manifestação, eu, individualmente, a acompanhei para presenciar os fatos que, a essa altura, já se anunciavam. Os estudantes e funcionários chegaram ao portão 1 e ficaram cara a cara com os policiais militares, na altura da avenida Alvarenga. Houve as palavras de ordem usuais dos sindicatos contra a presença da polícia e xingamentos mais ou menos espontâneos por parte dos manifestantes. Estimo cerca de 1200 pessoas nesta manifestação.
Nesta altura, saí da manifestação, porque se iniciava assembléia dos docentes da USP que seria realizada no prédio da História/ Geografia. No decorrer da assembléia, chegaram relatos que a tropa de choque havia agredido os estudantes e funcionários e que se iniciava um tumulto de grandes proporções. A assembléia foi suspensa e saímos para o estacionamento e descemos as escadas que dão para a avenida Luciano Gualberto para ver o que estava acontecendo. Quando chegamos na altura do gramado, havia uma multidão de centenas de pessoas, a maioria estudantes correndo e a tropa de choque avançando e lançando bombas de concusão (falsamente chamadas de “efeito moral” porque soltam estilhaços e machucam bastante) e de gás lacrimogêneo. A multidão subiu correndo até o prédio da História/ Geografia, onde a assembléia havia sido interrompida e começou a chover bombas no estacionamento e entrada do prédio (mais ou menos em frente à lanchonete e entrada das rampas). Sentimos um cheiro forte de gás lacrimogêneo e dezenas de nossos colegas começaram a passar mal devido aos efeitos do gás – lembro da professora Graziela, do professor Thomás, do professor Alessandro Soares, do professor Cogiolla, do professor Jorge Machado e da professora Lizete todos com os olhos inchados e vermelhos e tontos pelo efeito do gás. A multidão de cerca de 400 ou 500 pessoas ficou acuada neste edifício cercada pela polícia e 4 helicópteros.
O clima era de pânico. Durante cerca de uma hora, pelo menos, se ouviu a explosão de bombas e o cheiro de gás invadia o prédio. Depois de uma tensão que parecia infinita, recebemos notícia que um pequeno grupo havia conseguido conversar com o chefe da tropa e persuadido de recuar. Neste momento, também, os estudantes no meio de um grande tumulto haviam conseguido fazer uma pequena assembléia de umas 200 pessoas (todas as outras dispersas e em pânico) e deliberado descer até o gramado (para fazer uma assembléia mais organizada). Neste momento, recebi notícia que meu colega Thomás Haddad havia descido até a reitoria para pedir bom senso ao chefe da tropa e foi recebido com gás de pimenta e passava muito mal. Ele estava na sede da Adusp se recuperando.
Durante a espera infinita no pátio da História, os relatos de agressões se multiplicavam. Escutei que a diretoria do Sintusp foi presa de maneira completamente arbitrária e vi vários estudantes que haviam sido espancados ou se machucado com as bombas de concusão (inclusive meu colega, professor Jorge Machado). Escutei relato de pelo menos três professores que tentaram mediar o conflito e foram agredidos. Na sede da Adusp, soube, por meio do relato de uma professora da TO que chegou cedo ao hospital que pelo menos dois estudantes e um funcionário haviam sido feridos. Dois colegas subiram lá agora há pouco (por volta das 7 e meia) e tiveram a entrada barrada – os seguranças não deixavam ninguém entrar e nenhum funcionário podia dar qualquer informação. Uma outra delegação de professores foi ao 93o DP para ver quantas pessoas haviam sido presas. A informação incompleta que recebo até agora é que dois funcionários do Sintusp foram presos – mas escutei relatos de primeira pessoa de que haveria mais presos.
A situação, agora, é de aparente tranquilidade. Há uma assembléia de professores que se reuniu novamente na História e estou indo para lá. A situação é gravíssima. Hoje me envergonho da nossa universidade ser dirigida por uma reitora que, alertada dos riscos (eu mesmo a alertei em reunião na última sexta-feira), autorizou que essa barbárie acontecesse num campus universitário. Estou cercado de colegas que estão chocados com a omissão da reitora. Na minha opinião, se a comunidade acadêmica não se mobilizar diante desses fatos gravíssimos, que atentam contra o diálogo, o bom senso e a liberdade de pensamento e ação, não sei mais.
Por favor, se acharem necessário, reenviem esse relato a quem julgarem que é conveniente.
Cordialmente,
Prof. Dr. Pablo Ortellado
Escola de Artes, Ciências e Humanidades
Universidade de São Paulo
Caros amigos,
Amanheceu um dia triste hoje na já tão acinzentada paisagem de São Paulo.
Um dia para se lamentar e mais um dia para se refletir sobre os futuros da política em nosso país, por conseguinte, das nossas próprias perspectivas como intelectuais (pretensos, aspirantes ou crentes que o somos de fato), como estudantes (porque, de uma forma ou outra, nunca poderemos deixar de sê-lo) e como cidadãos (tolhidas, certamente, de cidadania plena).
Um dia para se refletir sobre o papel da universidade na sociedade, sobre o papel daqueles que deveriam juntar forças às aspirações de seus professores, funcionários e alunos; e o papel do Estado, instituição para a qual a universidade deveria ser um de seus mais importantes instrumentos para a transformação da realidade social.
Não quero ser piegas, mas minha história de vida foi transformada radicalmente pela universidade pública. Nela, não somente estudei; mas, vindo do interior e sem nenhum tostão no bolso, morei, comi, vivi na universidade e vivi a universidade! Tenho, para com ela, uma dívida imensa!
Penso isso um depois do impensável!
Se há algumas semanas me dissessem que a reitoria da Universidade de São Paulo requeriria a ocupação do campus central pela Polícia Militar, diria: impensável, de tão irresponsável que soa essa medida! Que o judiciário acolheria o pedido e determinaria a ocupação de fato (isso até que era previsível dada sua qualidade e seu uso político,como no lamentável caso da determinação judicial para demissão de Emir Sader de uma universidade pública!), que o governador do Estado, senhor José Serra, faria pisar as botas da Polícia Militar no campus (desvelando a mais dura face das poíticas tucanas para a educação), e que o comandante das tropas que se depararam com uma legítima manifestação de estudantes, funcionários e professores, pela desocupação do campus pelos milicianos, ordenaria disparos de munições de borracha, bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral, ferindo, dentro de seu local de estudo, um número ainda não sabido de, na mairoria, jovens que cumpriam o seu papel de estudantes e seu compromisso para com a universidade pública… Para tudo isso eu diria: impensável!
Impensável que um dos mais combativos trabalhadortes da universidade tenha sido detido pelos policiais que nominavam, ao vivo para a imprensa, os “próximos da lista”: Magno, Caio… Aqueles que pagam o preço por defenderem uma universidade democrática, aquela que, como disse, transformou a mim!
Impensável! Não por mera ingenuidade; mas porque, em termos políticos, esses homens parecem não saber o significado do desgaste de suas imagens. Notadamente a Magnífica Reitora não sabe! Mas, e quanto aos outros, políticos profissionais?
Não posso deixar de fora dessas reflexões a imprensa, pois ela responde satisfatoriamente essa pergunta. Os veículos de comunicação de massa, construtores da percepção da realidade social de milhões de brasileiros, trouxeram a verdade dada de cima para baixo: “os estudantes cercaram os policiais”.
Não quero divagar sobre os significados da verdade; mas, enquanto estouravam bombas e jovens eram socorridos ensanguentados, tendo projéteis de borracha encravados na carne, emissoras de televisão e rádio davam, em nome da imparcialidade e da democracia, uma visão dos fatos.
Nem todos, mas muitos, aplaudiram! Inclusive dentro da universidade, como no lamentável caso da aluna que telefonou à polícia para ter aula! “Individualismo associal absoluto”, conforme definira Hobsbawn, expressão de indivíduos egocentrados, que perderam gravemente a percepção de pertencimento a classes de interesse comum e que negam o homem como “animal político”.
Não creio numa “imprensa do mal”, mas não creio do discurso da verdade! Enquanto nove famílias mantêm o monopólio sobre os veículos de comunicação de massa no Brasil, os de baixo, como nos disse Milton Santos, se apropriando de instrumentos que, na origem, pertencem à sociedade de massa, também fazem opinião, desobedecendo.
Se Erich Fromm estiver certo e a desobediência, como ato de liberdade, for mesmo o princípio da razão, aqueles que estiveram ontem sob o ataque do braço armado do Estado não são uma elite de encastelados, agora enclausurados, acoados, reprimidos. Simplesmente explodiram, irradiando uma universidade que quer ser, inclusive, democrática!
Em nome da democracia, os militares deram o golpe em 1964, dizendo perpetrar uma “revolução” que garantiria a vigência de instituições democráticas, mantendo o mais autocrático regime que nossa história política já registrou.
Em nome da democracia, medidas autocráticas tratoram hoje conquistas historicamente sangradas pelos de baixo.
É a retórica de sua defesa permite negá-la, contradizê-la e, por fim, distribuí-la a poucos.
Se a Atenas clássica outorgava cidadania a quem preenchesse certos critérios (ser livre, nativo, homem, adulto); numa sociedade de classes, a democracia (esta “Santa D’Altar”, como disse Saramago), obedece à estratificação derivada da divisão do trabalho social, fazendo de poucos cidadãos e, de muitos, cidadãos abstratos.
Somos livres então?
Para poucos, liberdade e democracia são garantidas pelos cacetetes e bombas do braço armado do Estado.
Rodrigo Medina Zagni
Historiador (FFLCH/USP)
Doutorando (PROLAM/USP)
Acabou o glamour! A universidade, embora tenha sua renda per capta mais elevada, está tão proletarizada quanto vários outros cantos. As bombas e cacetetes são treinamento para quando forem professores e trabalhadores em outros cantos.
Notem: o secretário de Segurança Pública atual foi secretário de Administração Penitenciária e gosta de dar umas pauladas.
É uma sociedade em que se colocou todos sob suspeição, onde todos são tratados como possíveis bandidos pelas empresas e pelo Estado, onde a população é mantida silenciada na base do porrete ou da guetificação das cidades dormitório, das periferias. No meio disso tudo, porrada na USP não é novidade.
O regime da força trabalha em prol das duas éticas existentes. Dos trabalhadores e simples cidadãos não se pode esperar senão honestida, justica, trabalho, produtividade, idoneidade. Para os governantes, empresários, fazendeiros, atores e todos mais que fazem parte dos escolhidos nada é proibido, tudo é aceito, tudo é arranjado.
Quem organizava o povo está agora no poder. Os novos oranizadores estão ainda em fase de gestação. Vão apanhar bastante ainda.
Eu acho que o movimento deu um tiro no pé quando os estudantes cercaram os PMs e começaram a gritar “Fora PM!”. Os caras são corporativistas pra burro, e fazer isso é xuxar a onça de vara curta. Acho que o movimento as vezes não sabe agir bem em relação à polícia.
Concordo que quando eles , policia, vem pra cima, tem mesmo que revidar na pedrada. Mas não pode dar mole assim, porque justifica a repressão!