Por TPTG (Os Rapazes da Geral) [*]
Leia aqui a 1ª parte deste artigo.
Quando a lei quebra
Como já mencionamos, as principais armas utilizadas pelo Estado são a intensificação do trabalho dos estudantes e professores, o financiamento insuficiente do setor educacional e a seleção mais restrita. Dessa maneira, ele tenta responder à crise da alocação hierárquica da força de trabalho, que se manifestou pela primeira vez nos anos 80 enquanto batalha para a contínua legitimação das relações sociais capitalistas – uma combinação que, vamos dizer mais uma vez, tende permanentemente a criar novas crises e contradições.
A nova lei para a educação de terceiro grau, que foi apresentada inicialmente no meio de 2006 (e foi votada pela última vez em meio à segunda rodada do movimento estudantil em março de 2007) tentou institucionalizar legalmente e promover as tendências privatizantes e empresariais nas universidades. Uma série de estipulações nessa lei promoviam a intensificação dos estudos (por exemplo, através do estabelecimento de um limite máximo de anos de estudo permitidos) e impunham o trabalho estudantil subpago ou mesmo não pago (por exemplo, através da concessão de empréstimos estudantis e bolsas em troca de empregos a tempo parcial dentro da universidade). Além disso, o financiamento universitário está ficando dependente de um processo de avaliação. A tentativa de revisar o artigo 16 da constituição grega, de forma a permitir o estabelecimento de universidades particulares, também tem a mesma finalidade de reestruturar as universidades públicas para que elas funcionem cada vez mais como empresas privadas. Usando a arma do financiamento reduzido e seletivo, o Estado insere as universidades num ambiente competitivo. Isso tem como conseqüência que as universidades são obrigadas a transformar as suas atividades em algo lucrativo onde quer que seja possível. Os critérios básicos para o seu “bom” funcionamento e financiamento estatal adequado serão o tamanho dos seus investimentos, o tipo de pesquisa que realizam e a capacidade de impor as novas regras disciplinares e e os novos regulamentos e de encorajar os estudantes a investir individualmente em capital humano. Por último, mas não menos importante, está a mudança que a nova lei introduz na definição de santuário acadêmico. “Santuário acadêmico” foi o produto legal de um ciclo anterior de lutas de classe na Grécia. Ele foi introduzido no começo dos anos 80 pelo governo “socialista”, em reconhecimento do papel desempenhado pela insurreição “estudantil” em 1973 na derrubada da ditadura, e foi uma das medidas que tinha por objetivo recuperar não apenas o movimento estudantil militante das universidades mas todo o movimento de classe dos anos 70. Graças ao direito de santuário têm ocorrido ocupações constantes de universidades para campanhas políticas e, até certo grau, outros usos sociais dos prédios universitários (por exemplo, salas de universidade no centro de Atenas são usadas para apresentações políticas, festas não-comerciais e assim por diante, sem permissão das autoridades universitárias). A nova lei restringe o santuário acadêmico à proteção do “direito ao trabalho” e estipula penas específicas. De agora em diante, greves do corpo de funcionários ou professores, ocupações estudantis, etc. podem ser consideradas ações que violam a lei do santuário acadêmico e, como tal, poderão ser reprimidas pela polícia.
O movimento de ocupações eclodiu em maio de 2006. Escolas e departamentos entraram sucessivamente em luta, e em muito pouco tempo quase todas as universidades estavam ocupadas. A primeira rodada do movimento estudantil conseguiu atrasar a aprovação do projeto. As ocupações começaram de novo em janeiro de 2007, quando o governo tentou alterar o artigo 16 da constituição, e duraram até o fim de março. O movimento conseguiu atrasar a revisão da constituição pelos próximos dois ou três anos (em qualquer caso, o processo de revisão é lento e requer uma ampla maioria do parlamento). No entanto, o projeto se tornou lei no dia 8 de março, enquanto fora do parlamento ocorria uma revolta feroz, que durou por várias horas. O movimento obteve algumas concessões (nenhuma essencial), mas a nova lei ainda não foi aplicada totalmente. Há sinais de que um novo movimento possa aparecer quando a lei realmente começar a ser cumprida. No que diz respeito às características qualitativas do movimento, é verdade que as ocupações foram mais activas em termos de participação estudantil, organização de apresentações, oficinas e assim por diante, durante a primeira rodada do movimento do que na segunda. Houve apenas algumas ações minoritárias que tentaram espalhar o movimento para outras esferas (como, por exemplo, bloqueios ou intervenções em lugares de trabalho como call centers, onde alguns estudantes são empregados), mas a participação nas manifestações foi realmente massiva em toda a Grécia (no 8 de março calculou-se que quarenta a cinqüenta mil pessoas participaram na manifestação).
Mas para entender as razões pelas quais esse movimento ganhou dimensões tão amplas não é suficiente referir somente as mudanças na legislação, porque algumas das mudanças afetavam principalmente futuros estudantes. Só é possível entender esse movimento se o virmos como uma expressão da insatisfação acumulada que uma geração inteira da juventude da classe trabalhadora vem experimentando desde as reformas anteriores, dez anos atrás. Essas reformas foram instrumentais para impor a intensificação do trabalho no ensino e no campo do trabalho assalariado propriamente dito. Não é por acaso que as mobilizações ocorrem no meio de um período de avaliação. Apesar dos porta-vozes oficiais do movimento nunca terem parado de balbuciar que o ano acadêmico “não será perdido” e as provas serão feitas após o movimento, as ocupações também tiveram o caráter de uma “greve de provas”, especialmente em maio e junho de 2006, uma vez que muitos estudantes, tanto participantes ativos como “passivos” da mobilização, não queriam fazer as provas antes das férias de verão, afirmando assim a sua recusa de um ritmo de trabalho intensificado. Além disso, os estudantes mobilizados levantaram a questão da reprodução “gratuita” da sua força de trabalho (mesmo que de uma forma contraditória), através da reivindicação de uma “educação pública e gratuita”. Essa reivindicação foi expressada de forma mais explícita pelas tendências minoritárias no interior do movimento, que exigiram “alojamento e alimentação grátis”, assim como “transporte gratuito para todos”, apoiados por uns poucos bloqueios de ruas e estações de trem e também por algumas intervenções em estações de metrô.
Conquanto a reforma de 1997 tivesse conseguido disciplinar uma geração de estudantes por algum tempo, esta foi uma vitória temporária. Essa geração não podia ser impedida de expressar seu descontentamento com uma vida cada vez mais caracterizado por insegurança e medo. Uma grande parte dos estudantes percebeu que as promessas de uma “carreira bem sucedida” se realizarão apenas para uma minoria. Ao mesmo tempo, revoltavam-se contra uma atividade cotidiana que parece análoga a qualquer outro tipo de trabalho. Essa revolta contra o trabalho estudantil foi estimulada pelo número significativo de estudantes que já viviam diretamente a exploração e a alienação como trabalhadores assalariados propriamente ditos. No entanto, essa não foi a tendência dominante, uma vez que a maioria dos estudantes depende dos seus pais, enquanto muitos outros ainda têm esperança de que de uma forma ou de outra irão se tornar “profissionais”. Dessa forma, os “trabalhadores” foram considerados principalmente como apoiadores externos e eram compostos pelos pais. Claro que a ligação a outros sectores da classe trabalhadora decorre diretamente da existência de lutas fora da universidade. Por exemplo, quando uma luta local por melhores condições de trabalho e de serviço ocorreu num centro de saúde público, num vilarejo perto de Thessalonika, os estudantes da Escola de Medicina, que estavam em greve, expressaram a sua solidariedade.
A greve dos professores da instrução primária foi convocada pelo sindicato dos professores durante a primeira rodada do movimento estudantil, na sequência de uma proposta feita por sindicalistas de esquerda. Deve ser observado que não havia nenhuma ofensiva por parte do Estado antes da convocação da greve. A lista de exigências oficiais incluía tanto demandas salariais quanto de condições de trabalho. Era uma lista bem grande de exigências e apesar de vir “de cima”, e em particular do grupo esquerdista que tomou a iniciativa, ela ainda assim deu voz, de uma forma indireta, às necessidades dos professores.
A greve começou dia 18 de setembro de 2006 como uma ação de cinco dias e durou seis semanas. O sindicato não tinha nenhuma intenção de continuar a greve após o fim da primeira semana, como foi provado pela atitude tomada pelos sindicalistas nas assembléias gerais ocorridas após a primeira semana da greve. No entanto, o fato de que a participação na greve foi muito alta, especialmente em Atenas e outras áreas urbanas (aproximadamente 70%-80%), assim como o fato de que o Ministério não fez nenhuma concessão, dificultou muito que o sindicato recuasse. Nesse ponto pode ser útil observar que alguns professores em áreas rurais não participaram, talvez porque eles tivessem outros empregos auxiliares, por exemplo na agricultura.
Assim, apesar da greve ter sido convocada pela liderança do sindicato, no processo ela se tornou uma ação das bases. A participação continuou bastante alta em algumas áreas urbanas pelo período inteiro de 6 semanas, e durante esse período manifestações massivas ocorreram no centro de Atenas. Por outro lado, a participação nas assembléias não era muito alta com a exceção de algumas seções de sindicato locais. Desde o começo foram organizados comitês de greve. Esses comitês tinham como função principal executar as decisões tomadas nas assembléias locais e não havia nenhuma coordenação entre eles. Como de costume, essas asembléias palco de conflitos. A luta permaneceu sob o controle do sindicato, o que em parte se deveu ao fato de o grupo esquerdista, que de certa forma representa e aglutina muitos elementos radicais nesse setor, ter tomado controle da administração do sindicato durante a greve.
Agora, vamos voltar a nossa atenção para as reais razões da greve e da sua militância. Primeiramente, temos de enfatizar que os professores não podem ser considerados um setor privilegiado da classe trabalhadora: o salário inicial de um professor é mais ou menos 900 euros enquanto o salário mínimo na Grécia é aproximadamente 700 euros. Mas as demandas salariais não ganharam precedência sobre todas as outras. As reivindicações básicas realmente apresentadas pela base do movimento foram principalmente duas:
Maiores gastos estatais com a educação pública; e, em segundo lugar, um fim à “mercantilização da escola”.
A primeira reivindicação expressa uma oposição clara à transferência dos custos da reprodução da força de trabalho para a classe trabalhadora. De certa forma, os professores fizeram uma exigência em prol da toda a classe trabalhadora. As condições mais apertadas e a miséria econômica da escola é identificada aos olhos dos professores com a miséria da falta de significado no seu trabalho. A autopercepção tradicional e positiva do professor entrou em colapso sob o peso da negligência econômica e da alienação. O fato de que tudo isso não foi expresso de forma explícita nas reivindicações enquanto era evidente em várias reuniões entre professores e pais, em alguns textos, em discussões e nas ruas é indicativo da fraqueza das bases de se expressarem de forma substancial, assim como da sua incapacidade de se livrarem do porta-voz oficial do sindicato.
Os protestos contra a “mercantilização da escola” foram a segunda característica principal da greve. O surgimento de patrocinadores financeiros acumulou toda a fúria dos grevistas, mistificando o fato de que a educação pública já é conectada ao capital e que essa relação não pode ser identificada apenas com os patrocinadores. Se os professores conseguissem superar esse ponto de vista estreito, poderiam dizer muito sobre a sua alienação cotidiana. Além de palavras soltas, esse sentimento contra o trabalho não foi articulado num discurso e foi expresso apenas na grande duração da greve. Slogans como “vamos ficar em greve até o ano 3000” e “nós também desistimos do próximo salário mensal” expressavam o desejo de não voltar à alienação cotidiana da sala de aula. De outra forma é muito difícil explicar o abismo que separa a grande duração da greve e as exigências sindicais mais ou menos previsíveis. Nossa interpretação dos acontecimentos é reforçada ainda pelo fato de que essa foi uma greve ofensiva: na ausência de uma ataque visível do Estado e com uma lista de exigências que apenas indiretamente expressa as necessidades dos grevistas, seria de outra forma difícil entender porque muitos professores não queriam voltar ao trabalho mesmo após seis semanas de greve. Seguindo esta linha de pensamento, podemos entender melhor as exigências salariais. A demanda por um aumento de 500 euros no salário era uma demanda pela compensação da deterioração crescente das condições de trabalho. Como tal, ela era mais setorial e centrada nos professores e menos uma demanda da classe trabalhadora: slogans sobre salários parecem dizer que “o trabalho se tornou impessoal, alienante e intensificado – ao menos não deveria ser tão mal pago”.
No entanto, a necessidade de unir-se aos outros setores da classe trabalhadora (principalmente pais, mas também outros que apoiavam a greve) num terreno comum não podia ser expressa através da exigência por um bom salário para professores (que também implica que o trabalho intelectual é superior ao manual). Esse terreno comum só poderia ser o de necessidades comuns, e é por isto que no meio da greve a reivindicação inicial foi transformada em uma reivindicação por “1400 euros para todos”, aceita então pela maioria dos professores. No entanto, a comunicação real com os “outros” acabou reduzida a manifestações em comum com uma minoria de estudantes e algumas reuniões com pais, organizadas pelos grevistas.
Como já dissemos, a greve terminou após seis semanas. Enfrentando a intransigência do Estado e não sendo capaz de transcender os limites colocados pelo seu papel social e pela representação sindical, os grevistas não conseguiram dar o passo a mais que era necessário. Mas é claro que isso não era fácil: um desafio coletivo e uma crítica da natureza seletiva e alienante da educação, acompanhada por uma crítica ao sindicato, seria muito mais que uma greve; seria uma insurreição.
A greve não conseguiu nenhuma concessão material, mas houve aspectos interessantes nela? Nossa resposta será positiva em dois aspectos.
Primeiro, até certo grau a greve tirou a legitimidade a um Estado neoliberal que afirma garantir um sistema educacional “de qualidade, público e grátis”. Segundo, num nível mais educacional, uma greve de um mês e meio anulou a imagem de um sistema escolar funcionando “perfeitamente”. E o que é mais, quebrou a imagem do professor como um profissional, um órgão do Estado, que zela pelo seu controle ideológico e um “pequeno burguês” que, supostamente, aproveita a sua posição privilegiada.
No entanto, o modo como a greve terminou, sem nenhuma perspectiva para o futuro e sem ganhos materiais, teve conseqüências negativas e mostra claramente que uma parte da classe trabalhadora não consegue alcançar muito se permanecer isolada, por mais militante que seja.
Isso se tornou óbvio no começo deste ano, quando o governo introduziu uma nova lei que punha em causa as prestações do Estado de bem-estar e as pensões. Segundo essa nova lei na seguridade social, haverá um aumento da idade de aposentadoria mesmo para mulheres com filhos menores de idade, uma diminuição no valor das pensões e um aumento na burocracia necessária para o seguro médico, uma medida que atinge gravemente, antes de mais, os trabalhadores jovens, precários e de meio expediente. Apesar do ataque brutal a todos os trabalhadores (estudantes incluídos), a resistência dos professores e dos estudantes foi muito débil.
Julho de 2008
[*] Ta Paidia Tis Galarias (TPTG) [O nome deste grupo faz referência ao filme do cineasta francês Marcel Carné, Les Enfants du Paradis, traduzido em português como Os Rapazes da Geral e em grego como Ta Paidia Tis Galarias.]
P.O. Caixa 76149
N. Smirni
17110
Atenas, Grécia
E-mail: [email protected]
Tradução: L. M. em Junho de 2010, a partir da versão em inglês.
Versão inglesa aqui.
Todas as ilustrações reproduzem graffiti gregos.