Por TPTG (Os Rapazes da Geral) [*]
O desenvolvimento capitalista na Grécia durante os anos 60 significou o aumento do setor secundário, especificamente na construção e manufatura (baseada principalmente no preço baixo do trabalho e não em grandes investimentos no capital fixo), com o correspondente fluxo de camponeses para as cidades e a erosão das economias de subsistência locais. Gradualmente, esse desenvolvimento criou a necessidade de uma força de trabalho mais apta e diversificada. Como conseqüência, a educação pública expandiu-se, a educação fundamental tornou-se obrigatória e a população de estudantes universitários começou a crescer. Greves não autorizadas estavam na agenda, campanhas sobre questões de bem-estar, de moradia ou locais foram organizadas em quase todos os bairros. Foi nessa época que começaram as lutas por uma “Educação gratuita e pública”.
Lutas de classe reformistas estavam de volta na agenda após a queda da ditadura (em 1974) e a educação – particularmente a universitária – se tornou o principal “mecanismo” de ascensão social desde os anos 70 na Grécia, como era o caso nos países capitalistas avançados desde os anos 50. Estudantes de origem humilde, provenientes de famílias camponesas ou da classe trabalhadora, poderiam encontrar um posto permanente no setor público ou um emprego relativamente seguro no privado se possuíssem um diploma universitário (e além disso, até conseguir uma posição de gerente ou criar seu próprio pequeno negócio bem sucedido, especialmente no ramo da construção). Dessa forma, a universidade pública se tornou uma das mais importantes instituições para a integração e satisfação de “expectativas sociais”, com gastos crescentes para o orçamento estatal.
A integração das demandas “populares” ajudou na legitimação das relações capitalistas de exploração, o que é uma das funções básicas do Estado capitalista democrático moderno – sendo a sua outra função a de garantir uma acumulação capitalista estável, por meio da reprodução expandida de força de trabalho e do capital. Mas as lutas de classe durante os anos 70 tiveram a conseqüência de que no começo dos anos 80 o Estado começou a ter grandes dificuldades em exercer esses dois papéis complementares, mas contraditórios, de uma maneira satisfatória. As “expectativas sociais” não haviam sido reduzidas até mesmo após a introdução das políticas neoliberais nos anos 90, que tentaram resolver essa contradição através do aprofundamento das divisões dentro da classe trabalhadora. Isso é provado pelo constante reaparecimento de lutas no setor educacional.
O que segue é a tradução de partes de textos que nós escrevemos durantes os últimos dois anos. Esses textos foram uma tentativa de análise teórica da crise no sistema educacional, por exemplo, os processos de reestruturação neoliberal que estão ocorrendo desde há anos nesse momento e as lutas contra eles. Além das ocupações universitárias estudantis, uma outra luta recente que inspirou esses textos foi a greve de seis semanas das escolas primárias no outono de 2006. A sua duração, as suas exigências e o fato de que alguns de nós terem participado nessa greve nos motivou a tentar analisá-la no contexto geral da crise educacional.
Apesar dos professores de escola primária na Grécia não haverem sentido ainda a pressão de um processo de trabalho alienado, padronizado e sob constante avaliação – como no Reino Unido, por exemplo – há, no entanto, uma tendência crescente para tornar os cursos escolares cada vez mais intensivos. Os currículos tendem a se tornar mais estritos, novos métodos pedagógicos foram introduzidos e, recentemente, novos livros didáticos foram impostos aos professores e estudantes com material bem mais difícil e mais ampliado do que antigamente. A perda gradual de controle do professor sobre as suas aulas é acompanhada por uma lenta entrada de empresas patrocinadoras vendendo programas educacionais. Acima de tudo isto, tem havido uma tendência crescente de cortar gastos com a educação, como parte de uma política geral de diminuir os gastos do setor público.
Dez anos depois
Como já mencionamos, a educação, sendo a principal instituição que forma, qualifica e aloca a mercadoria força de trabalho numa divisão capitalista do trabalho em contínuo desenvolvimento, vem-se expandindo em termos de população estudantil desde os anos 60 na Grécia. Esse desenvolvimento deu vazão a novas demandas “populares”, expectativas, oportunidades de mobilidade social e “sucessos” individuais. Ele também levou à acumulação de tensões e contradições, frustrações e “fracassos” individuais (também chamados “fracassos do sistema escolar”). Em 1998, nós participamos do movimento contra a última tentativa de reforma educacional por parte do Estado, que passou sob o nome aberrante de “Ato 2525”. Naquela época, na sétima edição do nosso jornal nos escrevemos:
“A democratização da educação, que causou uma produção em massa de expectativas (e um correspondente aumento temporário nas camadas de funcionários públicos e da pequena burguesia nos anos 70 e 80; por exemplo, em 1982 68,7% dos graduados universitários trabalhavam no setor público) criou uma inevitável crise estrutural na divisão hierárquica do trabalho e uma crise de disciplina e significado na escola; em outras palavras, uma crise de legitimidade que golpeou duramente a educação estatal”.
Dez anos depois, nos vemos obrigados a dizer que essa crise… continua acontecendo. Seja lá como você chame essa crise – uma “crise de legitimidade”, uma “crise no papel seletivo-alocativo da educação”, uma “crise de expectativa” ou uma “crise na correspondência de qualificações com oportunidades de carreira” – a verdade é que a educação vem sendo seriamente afetada por crises e é razoável dizer que essa situação se manterá nos próximos anos.
É precisamente o fato de a educação estatal ser responsável por suprir um amplo leque de funções com grande importância social que a condena a ficar num estado constante de crise. Na medida em que ela se apropriou e integrou funções que historicamente eram desempenhadas por outras instituições sociais (a família, a comunidade da classe trabalhadora, a oficina, a corporação), todos os conflitos sociais e contradições se manifestam no seu terreno. A socialização não é confinada apenas à família, o estágio como meio de passar conhecimento praticamente deixou de existir como tarefa da guilda/corporação e capitalistas individuais não têm o direito de organizar a educação fundamental da sua força de trabalho. Como o papel da educação estatal está se expandindo, ela se torna inevitavelmente um terreno de conflito social, um terreno de demandas de classe e mobilizações (e frequentemente, ao nível da vida cotidiana, de competição brutal entre indivíduos). Ademais, o fato de que todos esses conflitos têm lugar na esfera das instituições educacionais faz com que eles apareçam como aspectos de uma crise educacional e não de uma crise das relações de exploração de classe. Desse ponto de vista, mesmo tendo perdido o seu monopólio na passagem e gerenciamento de conhecimento frente a competidores poderosos, e talvez mais sedutores, como a comunicação de massa e a internet, ela mantém inteiramente o seu papel social (e não há sinais de que possa ser substituída por quaisquer outras instituições sociais). Por um lado, ela é usada pelo estado capitalista como instrumento de legitimação e reprodução das relações de classe; por outro, é usada pela classe trabalhadora como um instrumento para mitigação das divisões e da seleção. Ambos objetivos antagônicos se dirigem à raiz da reprodução das relações sociais capitalistas.
As tentativas neoliberais de reestruturação educacional ocorridas uma década atrás na Grécia enfrentaram a oposição dos movimentos estudantis e de professores. No artigo citado, nós tentamos fazer uma balanço teórico dessa resposta múltipla e, em maior ou menor grau, contraditória. Um dos nossos erros foi o de tomar por garantido que o Estado capitalista seria capaz de agüentar a sua crise. Nessa época, era visível que o Estado planejava ultrapassar a crise; no entanto, isso ficou no nível das intenções. Pormenorizando a análise, fizemos referência a vários “programas educacionais que relacionam as diretivas do currículo educacional a uma organização pós-fordista do trabalho e alinham qualificações de trabalho com qualificações educacionais de modo a treinar o futuro trabalhador-colaborador multifuncional, que se vê como usuário/consumidor de produtos e serviços tecnológicos […]” Também mencionamos o papel da
“descentralização que se destina não apenas à fragmentação da resistência e das demandas sociais mas também à transferência dos custos educacionais para as comunidades locais, assim como o fortalecimento da ‘autonomia’ da unidade escolar enquanto corpo de professores constituído como unidade ‘auto-avaliadora e colaboradora’ que autogestiona a escola (talvez com a ajuda de financiadores) – possivelmente em competição com outras unidades.”
Finalmente, nos referimos também à transformação da identidade do professor, passando de um “funcionário” do Estado — uma palavra que é raramente usada hoje em dia, enquanto poucos anos atrás ela indicava uma identidade de certo prestígio e uma autopercepção social-democrática e “humanitária”, agora obsoleta — para um “profissional”.
No caso da educação de terceiro grau [ensino superior], nós havíamos pensado que as tentativas de aprofundar a separação entre trabalhadores com baixa qualificação e graduandos das universidades, assim como entre graduandos com baixa/média qualificação e graduandos com “alta” qualificação, seriam bem sucedidas. Mas era errado tomar à letra a propaganda neoliberal na sua tentativa de superar as contradições herdadas do período social-democrata. É verdade que, no começo, nossos adversários tiveram várias vitórias e, ainda mais, vitórias bastante materiais, quando eles promulgaram o Ato 2525 em 1997: a abolição da lista de carreira dos professores significou que havia começado uma era em que o “treinamento vitalício” e a precariedade seriam cumpridos por meio da ideologia da “meritocracia” e da competição, substituindo um status quo de igualdade formal nas relações de trabalho; no caso da educação secundária, a seleção se tornou mais intensiva com a criação da nova Escola Superior Integrada, por um lado, e os institutos técnicos, por outro; no caso das universidades o Estado tentou estabelecer o “treinamento vitalício” por meio de novos programas de aprendizado (chamados “PSE”) impondo mensalidades.
No entanto, seguiu-se uma série de lutas abertas: o movimento dos professores desempregados e as revoltas fora dos centros de avaliação contra a abolição da lista de carreira; em seguida, ainda naquele ano, as ocupações de escolas secundárias e universidades por alunos. Houve também várias reações invisíveis e recusas expressadas por estudantes, professores e pais, que desgastaram a monstruosidade avaliativa que era a Escola Superior Integrada. O resultado foi um afrouxamento relativo do processo seletivo e um abrandamento da separação entre a “elite” entrando na educação de terceiro grau e o “lixo” se formando nos institutos técnicos. Além disso, os programas universitários “PSE” nunca foram realmente implementados e o plano inicial pela abolição da lista de carreira dos professores foi modificado através da criação de um complexo sistema de indicação que era constituído por várias listas que passavam pelas cláusulas do Ato de 1997.
Devido às lutas de classe, ao uso dos fundos provenientes da Comunidade Económica Europeia para estabelecer novos departamentos universitários nas cidades pequenas de modo a fortalecer as receitas públicas locais e à formação e gerenciamento estatal de um reservatório de força de trabalho sofisticada e barata para o setor terciário, houve um enorme aumento no número de estudantes na educação universitária. Em 1993, apenas 26,7% dos cidadãos gregos entre 18 e 21 anos estavam na educação de terceiro grau. Em 2004, esse número havia crescido para 60,3%. De modo a evitar uma crise fiscal, o gasto estatal com educação na proporção do Produto Nacional Bruto continuou no mesmo nível que os dos últimos 15 anos (flutuando entre 3,5 e 4%).
Mas para diminuir as “expectativas sociais” o Estado tinha que fazer algo mais. Então, mudou a sua estratégia educacional rumo à agenda neoliberal mais pura. Os primeiros sinais dessa mudança de direção apareceram no começo desta década. Geralmente, essa reorientação consiste em duas fórmulas simples: mudanças no gerenciamento do sistema educacional (ou, pelo menos, um movimento gradual nesta direção) e financiamento estatal inadequado da educação. Na educação primária e secundária, a implementação da primeira fórmula é, por enquanto, visível apenas na cooperação planejada entre os setores público e privado na construção e gerenciamento conjunto dos novos prédios escolares. Provavelmente irá se manifestar, no futuro, com o aparecimento de companhias patrocinando escolas primárias e secundárias, mostrando dessa forma o seu direito de participar no treinamento da sua futura força de trabalho. A revisão do artigo 16 da constituição grega (adiante escreveremos mais a este respeito) faz parte também do mesmo processo, só que em relação às universidades. A redução do gasto público com o setor educacional é uma característica constante das políticas neoliberais. No entanto, esta é contraditória e está condenada a criar mais problemas do que aqueles que se propõe resolver. Por um lado, ajuda o Estado a diminuir os gastos e a acelerar o processo de reestruturação educacional, alegando se tratar de uma “demanda social”. Por outro, capitalistas individuais (sejam os futuros patrocinadores da educação primária ou donos de universidades particulares) merecidamente têm a má reputação de serem incapazes de ir além de seus interesses individuais e de se colocarem ao serviço dos interesses gerais da acumulação capitalista. Em outras palavras, devido às suas prioridades, uma empresa ou mesmo um setor não podem substituir as funções que historicamente vêm sendo assumidas pelo Estado.
Adicionalmente, os neoliberais dificilmente podem esconder a sua banalidade no nível ideológico. A “meritocracia” tem sido despojada da mistificação ideológica social-liberal, que afirmava ter uma suposta utilidade social. Para os neoliberais, o direito individual de agir como empresário individual leva à diminuição histórica da ideia de justiça social enquanto a “sociedade” é percebida como um mero agregado de indivíduos (ou famílias, como Thatcher costumava dizer), que supostamente estariam num estado de competição constante. O problema para os neoliberais é que tais ideias minam a base da sua legitimidade política, o que por sua vez traz de volta a necessidade de reforçar o Estado (e consequentemente as estipulações estatais para educação). É um círculo vicioso.
Em todos os níveis da educação a tentativa de transformá-la em uma empresa capitalista é contraditória, mas permanente. Essa tentativa é visível nas escolas de jardim de infância com novas propostas de intensificação do currículo e, logo, a inserção ainda mais cedo das crianças no mundo da avaliação, quantificação e, consequentemente, do trabalho; na educação secundária com a proposta – de novo – do Conselho Nacional de Educação para uma seleção mais estrita dos estudantes nas Escolas Superiores Integradas e a canalização de parte da população estudantil para treinamento precoce através das “novas” escolas técnicas; na nova lei para universidades que intensifica o trabalho no ambiente parcial e silenciosamente privatizado da educação pública de terceiro grau desde os anos 90, ameaçando de expulsão o proletariado intelectual improdutivo (e por isso excedente).
Lutas visíveis e invisíveis nos últimos anos têm colocado limites na valorização capitalista da educação pública e continuam a fazê-lo hoje em dia. O movimento de ocupações universitárias que ocorreu em Maio de 2006 e durou quase um ano é exemplo perfeito de uma luta (espetacularmente) visível. No segundo caso estão processos latentes que sabotam e minam as “inovações” impostas. Por exemplo, as tentativas de transformar professores da educação primária em “profissionais” – executando ordens do Ministério da Educação, programas e projetos de forma a encontrar patrocinadores – depararam com a rejeição. Um programa chamado “Zona Flexível”, que supostamente conectaria escolas com atividades comerciais locais e foi apresentado por intelectuais do Estado como um tentativa de colocar em prático os velhos princípios da educação integral e radical, nunca foi realmente implementado. Da mesma forma, nem as conversas sobre “a ligação da escola à vida cotidiana” nem os balbúcios sobre a “abolição do modelo professorcêntrico” e o “desenvolvimento da colaboração entre estudantes” tiveram qualquer efeito. Em termos simples, a maioria dos professores pôde ver que esses programas aprofundariam as desigualdades entre estudantes uma vez que estavam ligados a novos sistemas de avaliação e, afinal de contas, iriam impôr mais trabalho não-pago para eles. No curso dos acontecimentos, ficou claro para todos que a implementação do programa mencionado era uma questão de imensa importância para o Ministério da Educação, na medida em que incorporava as diretivas básicas da sua política: combinação do controle centralizado burocrático com a descentralização, a redução do financiamento estatal e a internalização da lógica do capital, enquanto a participação de patrocinadores é encorajada de modo a conseguir recursos para a realização de projetos.
Julho de 2008
[*] Ta Paidia Tis Galarias (TPTG) [O nome deste grupo faz referência ao filme do cineasta francês Marcel Carné, Les Enfants du Paradis, traduzido em português como Os Rapazes da Geral e em grego como Ta Paidia Tis Galarias.]
P.O. Caixa 76149
N. Smirni
17110
Atenas, Grécia
E-mail: [email protected]
Tradução: L. M. em Junho de 2010, a partir da versão em inglês.
Versão inglesa aqui.
Todas as ilustrações reproduzem graffiti gregos.
Leia aqui a 2ª parte deste artigo.